terça-feira, 8 de março de 2011

Carnaval rural :: Xico Graziano

Dizem aqui, no Brasil, que o mundo somente volta a funcionar após o carnaval. Parece verdade. Desde meados de dezembro, tudo anda devagar. Mas o dito vale apenas na cidade. Porque lá, no campo, exatamente esse período do ano configura um pega no serviço. Época de correria brava na roça.

O motivo se relaciona com a safra agrícola. Normalmente plantadas entre meados de outubro e início de dezembro, as lavouras se encontram em processo final de desenvolvimento. Primeiro, floresceram seus cachos, agora maturam seus frutos, logo secam as sementes. Nenhum descuido se permite ao agricultor nesta hora para garantir boa colheita de grãos.

Grãos alimentícios se denominam aquelas culturas temporárias, de ciclo curto, semeadas todos os anos. Algumas são também conhecidas por cereais (arroz, milho, trigo e feijão), outras, como oleaginosas (soja e amendoim). Mais difícil de catalogar é o algodão, planta notoriamente fibrosa, mas cujo caroço oferece bom óleo e excelente ração animal. Vacas adoram sua torta no cocho.

Essas culturas anuais se distinguem das lavouras permanentes, como a laranja ou a maçã, cacau e café, cujas mudas crescem e viram pequenas árvores que permanecem produzindo por décadas. Azeitonas também vêm de árvores longevas, centenárias.

Há, ainda, aquelas lavouras de duração intermediária, a exemplo da cana de açúcar, cujo ciclo de produção demora ao redor de sete anos. Nesse caso, os colmos açucarados são seccionados todos os anos da planta mãe, que rebrota novamente e lança novos perfilhos, a serem cortados no ano seguinte. Algo semelhante à cultura da bananeira.

Existem nuances, claro, como em qualquer sistematização. Certas frutas, como o mamão ou o maracujá, apresentam ciclos de produção bem mais curtos que os da fruticultura em geral. As plantas, mais frágeis, sofrem o ataque de terríveis viroses, impedindo sua permanência no mesmo terreno por um longo período. Podem ser apelidadas de rotativas.

As plantações, na agronomia clássica, sempre foram muito dependentes das estações climáticas. Na Europa, por exemplo, aguarda-se o degelo do inverno para semear o trigo e o centeio. No Sudeste brasileiro, a safra de grãos normalmente se inicia quando as chuvas, trazidas pelo calor da primavera, chegam. Mas a evolução da tecnologia anda alterando tal determinismo climático.

Vários fatores contribuem para romper o fatalismo natural que amordaçava a roça, destacando-se a irrigação, o melhoramento genético, a mecanização intensiva e sistemas de plantio. Atuando em conjunto, a tecnologia foi alterando os costumes antigos. Surgiram variedades de ciclo mais curto ou mais longo, outras precoces ou tardias, algumas resistentes ao frio ou ao calor e à seca. Chegou o plantio direto na palha.

A revolução verde ocorrida permite que hoje os agricultores de ponta sequenciem plantios na mesma área. A soja precoce, colhida cedo em fevereiro, permite ainda o plantio do milho chamado "safrinha", que amarelará em maio. Em algumas regiões do Paraná, uma terceira lavoura, chamada de inverno, é semeada - quase sempre o trigo. Já no Cerrado, após o cultivo do grão, entra a semente da braquiária, gramínea que troca a lavoura pela pecuária. É incrível.

Em suma, alternativas foram surgindo, tornando mais autônoma, porém mais complexa, a produção rural. Antes, podia-se dizer que o agricultor vivia mais calmo, embora mais apreensivo.

Ele preparava o terreno e aguardava a hora de o trovão anunciar a semeadura. Depois, acendia vela contra a seca, rezava para chover no momento certo da florada e torcia contra as pestes agrícolas. Dizem, aliás, que por motivos religiosos tantas fazendas foram no passado batizadas com o nome da fé: Fazenda Sta. Clementina, Fazenda S. Rafael...!

Com a modernidade produtiva, porém, o credo cedeu lugar ao conhecimento tecnológico. E, na labuta rural, o aumento das áreas plantadas pressionou a ecologia, resultando, como consequência, no aparecimento de pragas e doenças inusitadas, algumas estrangeiras, resistentes aos agrotóxicos, difíceis de controlar. Haja trabalho no campo.

No mercado, então, nem se fale. Antes, bastava colher e enviar para a feira ou o armazém.

Agora, na gôndola dos supermercados, a qualidade se impõe na produção, donas de casa refugam defeitos na mercadoria, certificação se requer. Por essas e outras, o agricultor abandonou o amadorismo e engraxou as canelas para enfrentar a correria da plantação e do comércio. Vida nada fácil.

Repare nisso. Ao contrário da cidade, onde fábricas e lojas fecham suas portas no fim de semana e nos feriados, no campo nunca cessa a produção. As plantas não deixam de crescer no domingo de carnaval, nem o gado para de pastar na quarta-feira de cinzas. Nas granjas, frangos e suínos desconhecem desfile de fantasia.

Noutro dia me irritei, novamente, com um jornalista noticiando que iria chover: "tempo ruim", disse o rapaz. Ora, depende para quem, conversei tolamente sozinho, virando-me para o rádio.

Nas férias, carnaval rolando, o pessoal da cidade quer curtir a praia, desfilar bonito na passarela, namorar no portão de madrugada. Torce para não chover, quer secura na rua.

Acontece que lá no interior, não sendo brava tempestade, a chuva é uma dádiva. O solo úmido garante fartura para abastecer a turma da cidade. Além do mais, é exatamente naquela horinha boa da chuva que, sem poder trabalhar o trator por causa do barro, o homem do campo dá uma pausa para descansar na varanda. Depois, sol a pique, retoma a vida corrida.

Na brincadeira do samba, espiando a farra na televisão, pense um pouco: será que essa turma da folia conhece a dureza do carnaval rural?

Vai saber.

Agrônomo, foi Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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