sábado, 26 de março de 2011

De volta à racionalidade monetária::José Márcio Camargo

A crise no norte da África já se tornou uma tragédia humana. E, se persistir por muito tempo, pode se transformar num pesadelo econômico. Após a queda dos governos da Tunísia e do Egito, a turbulência se deslocou para a Líbia, gerando violenta reação da parte do governo local, com grande número de mortos entre a população civil e interrupção da produção e da exportação de petróleo pelo país. A possibilidade de que a crise se desloque para outros países do Oriente Médio, principalmente para a vizinha Arábia Saudita, fez com que os preços da commodity subissem para níveis acima de US$ 100 o barril.

O aumento do preço do petróleo pode atingir a recuperação da economia mundial por pelo menos três canais importantes. Primeiro, como a elasticidade preço da demanda por combustíveis é baixa, um aumento dos preços tem um efeito similar a um aumento de impostos sobre a renda dos consumidores. Aumentam os gastos com combustíveis e gera uma transferência de renda dos grandes consumidores de petróleo (os países desenvolvidos) para os grandes produtores (norte da África e Oriente Médio). O resultado é um menor crescimento da demanda nos países desenvolvidos e queda do crescimento econômico.

O segundo canal é o aumento das incertezas e da aversão ao risco, com a possível queda dos preços dos ativos de risco (ações). Como o mercado de trabalho americano continua relativamente fraco, a retomada do crescimento do consumo no país, que se observou no final de 2010 e no início de 2011, se deve principalmente ao efeito riqueza gerado pelo aumento dos preços das ações (como as pessoas se sentem mais ricas, elas decidem poupar menos e consumir mais). Uma queda dos preços das ações antes de o mercado de trabalho ganhar tração teria o efeito de reduzir o crescimento do consumo e, portanto, do crescimento da economia americana.

Finalmente, o terceiro canal é o efeito do aumento do preço do petróleo diretamente sobre a inflação. Apesar do crescimento ainda fraco no mundo desenvolvido, caso as pressões inflacionárias se aprofundem, os bancos centrais desses países poderiam ser forçados a aumentar agressivamente as taxas de juros, caso se vejam "atrás da curva", gerando uma situação de estagflação como nos anos 70. Exatamente por essa razão o Banco Central Europeu já havia começado a sinalizar para um aumento de juros nos próximos meses para conter o aumento da inflação advinda dos aumentos dos preços das commodities em geral.

O cenário ainda é positivo para a economia mundial, apesar das incertezas recentes. Porém, a política de excesso de liquidez promovida pelo Federal Reserve desde meados do ano passado, combinada a taxas de juros próximas a zero e elevadíssimos déficits fiscais no mundo desenvolvido e políticas monetárias lenientes e controles de capitais nos países emergentes, desencadeou uma forte pressão sobre os preços das commodities inclusive dos preços dos alimentos (que já subiram mais de 50% nos últimos seis meses) que, além de ter sido um dos principais fatores que geraram os levantes no mundo árabe, começa a potencializar pressões inflacionárias generalizadas em todo o mundo, com importantes repercussões negativas para o bem-estar das populações mais pobres, e ameaça a retomada do crescimento da economia mundial.

Pressionado pelos países no norte da Europa e pela Alemanha, o Banco Central Europeu já deu sinais de que pode ser o primeiro a começar o processo de normalização da política monetária, com um aumento da taxa de juros na zona do euro, com todos os riscos de curto prazo que podem advir dessa decisão (como o possível agravamento da crise fiscal na periferia europeia). Essa decisão, além de pressionar a autoridade monetária americana a reverter sua política de aumento excessivo de liquidez, é uma condição indispensável para que a retomada da economia mundial não seja abortada por pressões inflacionárias. A racionalidade monetária parece, finalmente, estar de volta.

Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio,

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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