terça-feira, 29 de março de 2011

Gorbatchov, o devido valor::Pável Palájtchenko

Já é uma banalidade afirmar que Gorbatchov é venerado mundo afora e até hoje não foi devidamente levado em conta na Rússia. Quando se interessam saber sua posição sobre o assunto, ele responde que não pode guardar ressentimento, e, além disso, pode compreender as razões para tal comportamento. A transição para a democracia levou milhões de cidadãos russos a sofrerem grandes privações. Gorbatchov não nega também sua responsabilidade no caso, reconhecendo os erros e fracassos do período da perestroika.

Todavia, é impossível explicar a grande diferença como Gorbatchov é recebido na Rússia e no resto do mundo sem tomar em consideração as particularidades do caráter nacional russo e da história do país.

Quando Gorbatchov chegou ao poder todos queriam mudanças. Mas a maioria esmagadora não fazia ideia quais haviam ser essas mudanças. Dominavam as tradicionais esperanças russas do “bom senhor” e do “bom tsar”. Quase todas medidas do líder significavam um novo início.
Não se pode dizer que Gorbatchovnão teve alternativa. Naquele período, os altos funcionários do Partido Comunista gostavam da chamada “ideologia de sombra” que reunia em si os elementos do nacionalismo russo e da geopolítica imperial. Seria ainda mais evidente a necessidade de reforçar a disciplina o que levaria gradualmente a uma “Ceausescusação”, referente ao ditador comunista romeno, do regime soviético.

Aprovada pelo Politburo conservativo do comitê central do Partido, a escolha de Gorbatchov não foi a mais evidente. Ela pretendia que a perestroika não fosse apenas aprovada por unanimidade, mas sim apoiada pelo povo. Inicialmente, o estadista tentou pôr esse plano em prática nos limites do sistema já existente.

Mas, passados dois ou três anos, chegou à ideia da democratização. Também fez com que ela fosse aprovada pelo Politburo. Pouco tempo depois, verificou-se que esse não estava pronto para mudanças dolorosas, surpresas e instabilidade - fatores inevitáveis.

A maior parte do povo também não estava pronto para tudo isso. Recebendo cada vez mais liberdade, o povo depositava esperanças não nas suas próprias forças, mas na mão firme e no líder decisivo. Foi esse o motivo da ascensão radical da popularidade de Iéltsin e da rejeição de Gorbatchov, conservada até hoje.

É paradoxal que a parcela mais ativa e instruída da sociedade tenha sido a primeira a abandonar Gorbatchov e aderir a nacionalistas nas repúblicas e a Iéltsin na Rússia. Os intelectuais, aos quais a liberdade vinda de cima trouxe as maiores e mais instantâneas vantagens, aproveitaram-na para organizar uma grande festa da desobediência.

Na agitação desta festa, os novos líderes admitiram sem hesitações que a União Soviética fosse extemporaneamente dissolvida. A medidafoi prematura porque a democracia não tinha se tornado uma instituição política, social ou econômica em nenhuma das repúblicas. Passados vinte anos ficou claro que a disssolução da União Soviética não acelerou, mas sim freou o processo de formação dessas instituições, gerando regimes de democracia limitada. Mas são poucos os que se atrevem a reconhecê-lo. E, se para os cidadãos das ex-repúblicas as privações das últimas duas décadas são compensadas pelos sentimentos nacionais gerados na conquista da independência, na Rússia não é assim: aqui, a dissolução da União Soviética significa a derrota da grande Pátria.
Na busca por um culpado, as mais diferentes pessoas apontam o dedo para Gorbatchov - tanto os comunistas que no Soviete Supremo votaram nos acordos de Belovejskaia Puscha, como os radicais que apoiaram tudo o que enfraquecia o poder soviético, e os cidadãos comuns que não se preocuparam muito quando seu país deixou de existir. Alguns o acusam de não ter usado força para reprimir o separatismo, outros (eu mesmo o senti) afirmam que a URSS poderia ser conservada se depois da tentativa de golpe do GKCP (Comitê Estatal de Emergência), em 1991, Gorbatchov tivesse transferido o poder a Iéltsin, e outros ainda simplesmente sentem antipatia pelo homem.
Todos, porém, gozam dos direitos e liberdades obtidos nos anos da perestroika. A liberdade de imprensa, de expressão, a abertura das fronteiras (nos limites definidos pelas autoridades) e a liberdade de reunião são recebidas como um presente pelo qual ninguém precisa agradecer - e pode até ser repudiado, como fez o escritor Soljenítsin, declarando que “tudo foi arruinado pela glasnost de Gorbatchov”.

Soljenítsin não foi o único a não notar a contradição entre as demandas impacientes do início dos anos 90 e a repreensão que caiu sobre Gorbatchov após sua saída do poder. Essa mesma partida salvou o país de problemas ainda mais graves, mas, uma vez mais, não foi devidamente apreciada pelo povo e pela elite, para os quais as personalidades mais notáveis da história russa são Ivan, o Terrível, Piotr I e Stálin, e não Aleksandr II, o qual libertou os servos. Essas afirmações não pretendem de maneira alguma censurar o povo. A História nos fez desse modo. A mentalidade e as particularidades nacionais modificam-se muito mais rápido que a cultura material. Mas não se pode começar a estudar um problema se não nos damos conta de sua existência. A enorme diferença constatada na recepção de Gorbatchov na Rússia e na maioria dos outros países é, sem dúvida, um problema. Não um problema para Gorbatchov, mas para a Rússia. E colaboração do restante mundo na valorização de seu papel na história seria um grande passo para a integração da Rússia na comunidade internacional.

Isso, porém, não pode se dar de forma independente. A Rússia deve fazer um esforço mais para passar à democracia real. E seu sucesso não é garantido. Um líder que se atrevee a fazê-lo enfrentará muitas dificuldades, mas sua estrada será mais fácil que aquela inciada por Gorbatchov, com transformações de um gênero que ainda não foi bem compreendido por nenhum de nós. Estamos buscando um caminho para a democracia junto com dezenas de outros países e milhões de pessoas. Quando alcançarmos este objetivo, aí sim, poderemos dar o devido valor a quem nos deu essa chance.

Pável Palájtchenko foi tradutor de Mikhail Gorbatchov e do ministro das relações exteriores Eduaard Shevardnadze

FONTE : GAZETA RUSSA, 5/3/2011

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