segunda-feira, 4 de abril de 2011

Outras reformas :: Eduardo Graeff

Falou em reforma política, pensou no Congresso Nacional, não é? Como se a reforma política fosse problema só do Congresso. Ou, pior, como se o Congresso fosse "o" problema da reforma política.

Quem trata o Congresso como a Geni da República tem seus motivos. Nem sempre são os melhores. Um dos mais típicos e tortos é desviar as pedras do seu próprio telhado de vidro. Pense nos políticos que mais prejudicaram o País. A sua lista pode ser muito diferente da minha. Mas duvido que tenha mais congressistas que presidentes. Trezentos picaretas no Congresso (se Lula contou direito) incomodam muita gente. Mas, convenhamos, um picareta no Planalto incomoda muito mais.

A democracia tem dois remédios básicos para corrigir os erros dos governantes: eleições livres e divisão de Poderes. Nossa jovem democracia tem passado razoavelmente bem no teste das urnas. No teste da divisão de Poderes, nem tanto. O que torna o Planalto, e não o Congresso, na minha opinião, o foco das nossas mazelas políticas é a concentração excessiva do poder nas mãos do presidente.

Uma reforma eleitoral vale a pena se fortalecer o Congresso com uma injeção de legitimidade. Mas há outras formas de atacar a concentração do poder. Cito três.

O excesso de cargos de livre nomeação no Executivo é um convite ao loteamento político e um perigo para a boa gestão. Chamá-los "cargos de confiança" é brincadeira de mau gosto. Grande parte deles é ocupada por tipos suspeitos com uma única missão: arrecadar fundos para seus padrinhos. A lei precisa limitar o número desses cargos e estabelecer critérios e procedimentos transparentes para o preenchimento dos que restarem, tanto nos Ministérios como nas empresas estatais. O presidente deveria ser o primeiro a agradecer se puder invocar limites da lei contra exigências descabidas dos aliados, a começar por seu próprio partido. Lula talvez não mergulhasse tão fundo, primeiro no "mensalão", depois no loteamento político, se não tivesse de saciar o apetite do PT em primeiro lugar. E por que os outros aliados deixariam por menos?

As medidas provisórias continuam a ser uma excrescência numa Constituição democrática. Na língua da burocracia que as inventa, os critérios de urgência e relevância traduzem-se por negligência e prepotência. Transparência? Esqueça. Como as comissões especiais do Congresso nunca se instalam, as medidas provisórias são emendadas e votadas sem terem sido discutidas publicamente. O resultado são leis quase sempre mal feitas e às vezes mal-intencionadas, com penduricalhos que aparecem misteriosamente pelo caminho. Não sei se o melhor seria acabar com elas ou tentar mais uma vez disciplinar seu uso, o que a Emenda Constitucional n.º 32 não conseguiu. O que não dá é para ignorar o problema.

Depois dos avanços da Constituição e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), está em curso um retrocesso em matéria de controle das despesas públicas. O Executivo refaz o Orçamento por medida provisória, ignorando a Constituição e driblando o Congresso. A explosão dos restos a pagar, os furos na meta de superávit primário, a emissão de dívida pública camuflada de injeção de capital nos bancos federais criaram um orçamento por fora do Orçamento. É preciso dar um freio de arrumação nessa "contabilidade criativa". O governo federal enquadrou os Estados e municípios, mas até hoje não quis enquadrar a si mesmo nos limites de endividamento previstos pela LRF. Falta uma resolução do Senado para isso. Talvez tenha chegado a hora de pensar seriamente em trocar o Orçamento autorizativo (o Congresso aprova e o Executivo gasta se quiser) por um Orçamento impositivo (o Congresso aprova e o Executivo é obrigado a gastar).

Sei das dificuldades para uma pauta como essa avançar no Congresso. O único projeto político real do PT é a sua própria hegemonia. Independência e equilíbrio de Poderes, só para os Estados e municípios onde ele é oposição. Os demais partidos governistas são, sabe como é, visceralmente governistas. Podem recobrar algum brio se o governo tropeçar na economia ou em algum escândalo mais escabroso. Mas, fora exceções honrosas, os parlamentares "da base" trocam sem problema as prerrogativas do Congresso por favores do Executivo.

Sobra a oposição. Hoje ela não tem número para fazer a pauta de deliberações do Congresso. Mas tem recursos para ao menos provocar o debate e manter acesa a expectativa de mudanças. Tem convicções autenticamente democráticas, para começar; acredita mais em alternância e divisão de Poderes do que em hegemonia. Tem acesso à tribuna e à mídia, tanto mais quanto mais consistentemente for capaz de criticar o atual estado de coisas. Tem a atenção da opinião pública que se importa com coisas como democracia e transparência; mais que isso, tem a responsabilidade de não deixar órfão politicamente quem acredita nesses valores. Por último, mas importante, a oposição tem o que mostrar nos governos que comandou e comanda.

Mais de 20 anos de experiência da democracia deixaram o cidadão eleitor mais cético. Não basta falar contra o loteamento político, o desrespeito às instituições e a falta de transparência. Também não basta propor alternativas. É preciso mostrar vontade e capacidade de fazer.

Os partidos hoje na oposição ao governo do PT podem legitimamente reivindicar a paternidade de quase todos os avanços e inovações democráticas que o Brasil experimentou desde a Constituinte. Transformar esse patrimônio histórico em ativo político presente não deveria ser mais difícil do que vender bravatas e clichês ideológicos surrados. Principalmente se a oposição for capaz, como em geral tem sido, de produzir mais avanços e inovações nos Estados e municípios onde é governo. Quem quer liderar mudanças dá o exemplo.

Cientista político, foi Secretário-Geral da Presidência da República (governo FHC)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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