sábado, 14 de maio de 2011

José Roberto Afonso :: O gordo e as (falsas) magras

O endividamento total da economia brasileira, comparado ao de outros países, revela aspectos que raramente são comentados. O nosso diferencial não está tanto no tamanho da dívida, mas, sobretudo, na sua composição. É interessante esmiuçar alguns números e aprofundar reflexões.

Um estudo comparado da alavancagem de 14 economias (10 maduras mais os chamados Brics) foi publicado pelo McKinsey Global Institute. Somando as dívidas de governos, empresas, famílias e também das instituições financeiras, estimaram que a do Brasil ficou em 142% do PIB, em 2008. Volume maior do que o da Índia e o da Rússia (129% e 71%) e aquém dos observados na China (159%) e nas dez economias mais avançadas (de 245%, no Canadá, até 469% do produto, no Reino Unido). Como o foco dessa pesquisa era medir o risco de redução da dívida financeira (desalavancagem) depois da crise, pouca atenção foi dada às economias emergentes, consideradas mais conservadoras nas práticas de empréstimos, com exceção do acesso ilimitado ao crédito pelos governos indiano e brasileiro.

Em relação à composição da dívida em 2008, porém, o Brasil exibe um endividamento mais alto no segmento governo e mais baixo nos de famílias e empresas, em comparação com os outros Brics e os países desenvolvidos. Para o McKinsey, nossa dívida governamental bruta (conceito utilizado nas comparações internacionais) - 66% do PIB - equivalia à indiana, era o dobro da chinesa e da coreana e superava a espanhola, a inglesa e a norte-americana. Mais ainda, o governo respondia por 46% da dívida total no Brasil, proporção muito acima dos 10% na Rússia e na Coreia; dos 20% na China e nos EUA; dos 25% na Alemanha e na França; e superior, mesmo, aos 41% do Japão, que detém a maior dívida pública do mundo.

Na composição da dívida privada brasileira, 33% do PIB ficava por conta das instituições financeiras, 30% das empresas e 13% das famílias. A dívida dos bancos brasileiros era bem superior à dos congêneres emergentes. O mesmo quadro valia para as famílias: já deviam mais do que no resto dos Brics, embora bem menos do que nos países mais ricos - de 40% do PIB, na Itália, até 118%, na Suíça.

O grande diferencial aparecia nas empresas. As brasileiras são as que menos deviam entre os 14 países pesquisados: menos de um quarto da dívida total, em comparação com os 40% do PIB na Rússia até os 136% do PIB na Espanha. Tal cenário não mudou muito, mesmo em face da retomada acelerada do crédito: no Brasil, entre 2008 e 2010 (dezembro a dezembro), o endividamento das empresas e das famílias cresceu 3,5 e 2,1 pontos do PIB, respectivamente, enquanto a dívida governamental bruta aumentou 3 pontos no período.

Na verdade, há um arranjo peculiar entre os setores público e privado no Brasil. As empresas acumulam cada vez mais disponibilidades financeiras, aplicadas em títulos do governo, seguros e rentáveis. Esses títulos, recentemente, passaram a ser usados como fonte para créditos concedidos aos bancos oficiais, que, por sua vez, financiam capital de giro e investimentos para empresas. Mas essas empresas têm liquidez crescente, que é canalizada, direta ou indiretamente, para a dívida pública. O dinheiro volta para onde saiu e, no meio do caminho, fica um diferencial de taxas, pois a remuneração oferecida pelos papéis públicos é bem superior à cobrada nos empréstimos concedidos com aquela fonte de recursos. Isso sem mencionar o descasamento de prazos, pois o setor privado aplica em papéis de curto e médio prazos, enquanto toma crédito nos bancos públicos a longo prazo.

Como argumentamos em mais detalhes no e-book Crise, Estado e Economia Brasileira (a ser lançado brevemente pela Editora Agir), são cada vez mais estreitas e complexas as relações entre Fisco, juros, câmbio e, depois da crise global, também crédito. São duas faces da mesma moeda: de um lado, um governo gordo e, sobretudo, espaçoso no mercado de dívida; do outro, empresas que detêm dívidas magras e esbanjam liquidez, preferindo emprestar mais para o governo do que para outras empresas ou bancos privados.

Economista, doutor pela Unicamp

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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