terça-feira, 3 de maio de 2011

Mais real que o casamento Real:: Cláudio Gonçalves Couto

Antes que a morte de Osama Bin Laden nos brindasse com mais uma notícia bombástica na política internacional, grande parte da cobertura da mídia mundial na última semana ficou voltada ao casamento do herdeiro do trono britânico, príncipe William, com a plebeia Catherine Middleton. Por um lado, boa parte dessa atenção não passa de uma amplificação do oba-oba habitual que alguns setores da imprensa devotam ao jet set; e nisto, a preocupação do público e dos jornalistas não é muito diferente daquela que eles normalmente dedicam às peripécias de figuras como Paris Hilton, Elton John ou Adriano. Por outro lado, é impossível não reconhecer a relevância da monarquia como uma instituição de Estado que tem operado de forma bastante eficaz para conferir estabilidade às democracias mais avançadas do planeta - tema analisado com maestria por Renato Janine Ribeiro no "Eu &" deste fim de semana.

A despeito de sua importância histórica e da popularidade que a monarquia ainda goza entre muitos súditos britânicos, é fato que os questionamentos e, sobretudo, a indiferença a uma instituição de funções meramente protocolares só fazem crescer. De tal modo que se a monarquia acabasse hoje, quase nada mudaria na forma como o Reino Unido é governado e como a efetiva representação dos cidadãos se dá. Mais reais do que a realeza (pois realmente afetam a vida dos cidadãos) são as regras de eleição dos membros do Parlamento, isto é, de sua Câmara dos Comuns (os plebeus), já que a Câmara dos Lordes tem hoje funções apenas residuais e quase tão protocolares quanto as da Rainha. E apesar dessa relevância efetiva muito maior da política parlamentar britânica do que de sua realeza, pouquíssima atenção tem sido dada pela imprensa mundo afora a um fato importantíssimo em curso: o plebiscito sobre o sistema eleitoral parlamentar que ocorrerá no dia 5.

Nessa data os cidadãos do Reino Unido decidirão se continuarão a eleger seu Parlamento com base no sistema distrital de maioria simples (the-first-past-the-post) ou se adotarão um sistema igual ao da Austrália, de voto alternativo. É uma decisão crucial, pois pode por abaixo o mais tradicional sistema de representação em vigência no mundo, que se tornou modelo para um grande número de democracias mundo afora - o assim chamado Modelo de Westminster. Essa discussão é de particular interesse para nós, já que no Brasil o cerne do debate sobre uma eventual reforma política centra-se na mudança do sistema eleitoral e uma das opções de mudança reiteradamente apresentadas é o chamado "voto distrital" que nada mais é do que o sistema hoje adotado no Reino Unido, ora questionado. O voto alternativo proposto no plebiscito sequer é considerado em nosso debate, embora também seja um tipo de "voto distrital" - razão pela qual ele (e não opções de sistema proporcional) foi proposto pelos partidos historicamente minoritários no Reino Unido. Ele manteria a lógica "distrital" do voto (um representante por circunscrição territorial), mas tornaria a disputa menos hostil às preferências dos grupos minoritários, pois permitiria que suas segundas preferências fossem consideradas no cômputo dos votos.

No atual sistema, ganha o mais votado, ainda que com menos de 50% dos votos e mesmo que uma maioria absoluta dispersa entre outras alternativas esteja contra essa escolha. É como se num grupo de dez amigos, sete preferissem tomar cerveja, mas divergissem quanto ao pub ao qual ir, dividindo-se entre quatro opções, enquanto três pessoas preferissem ir tomar café num certo lugar. Se votassem sobre aonde ir com base no atual sistema britânico, a maioria dos cervejeiros acabaria tomando café, mas teriam ido tomar cerveja se suas segundas escolhas fossem consideradas. Essa imagem bem-humorada foi usada pelos defensores do voto alternativo para demonstrar a iniquidade do sistema em vigor (ver o link www.opendemocracy. net/ourkingdom/anthony- barnett/vote-yes-for-change).

Pelo voto alternativo, gera-se um "segundo turno instantâneo", pois após indicar sua primeira preferência, o eleitor indica ordinalmente suas segunda, terceira alternativas e assim por diante. Ao iniciar-se a apuração dos votos contam-se inicialmente apenas as primeiras preferências de todos os eleitores e, se algum candidato obtiver mais que 50% dos votos, será eleito; caso contrário, eliminar-se-á o último colocado e as segundas preferências de seus eleitores serão contadas. Se ao computarem-se esses votos um candidato atingir os 50% mais um, então haverá um eleito; caso contrário, elimina-se sucessivamente os piores colocados, computando-se as segundas preferências de seus eleitores até obter-se uma maioria absoluta para alguém, que será eleito. Tal como no atual sistema britânico, um representante será gerado por distrito, mas evita-se a eleição de candidato rejeitado por uma maioria dividida, assim como se dá mais espaço a grupos hoje sistematicamente excluídos do Parlamento, apesar de preferidos por contingentes significativos do eleitorado.

Os opositores à mudança alegam que o sistema atual é mais simples, facilmente entendido pelo eleitor, faz parte das tradições britânicas copiadas mundo afora, assegura estabilidade ao sistema e garante a governabilidade, pois cria maiorias claras, evitando a necessidade de coalizões gerada por parlamentos divididos - como, excepcionalmente, é o caso hoje. Tal argumentação despreza o fato de que os eleitores abdicam de expressar-se sinceramente na eleição, tendo de sacrificar suas primeiras preferências em prol de um voto útil naquilo que para eles é um mal menor. Todavia, esta deverá ser a posição vencedora no plebiscito, pois as pesquisas de opinião têm mostrado um eleitorado muito reticente em arriscar-se numa mudança de instituições tão tradicionais, ainda mais para um sistema de maior complexidade que os desatentos, de fato, terão dificuldade de compreender. Sobretudo ao terem sua atenção capturada por outras coisas, como o casamento Real. Hora ruim para fazer um plebiscito sobre algo tão importante. Ou terá sido uma hora ruim para casar celebridades?

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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