domingo, 5 de junho de 2011

Ares de transição:: Maria Celina D"Araujo

Já se diz que o governo de Dilma é um interregno até a volta de Lula ao poder. Mas ainda há tempo de reverter, avalia especialista

Os acontecimentos políticos das últimas semanas representaram os primeiros questionamentos sérios acerca do que esperar do governo Dilma. Qual a gravidade da doença da presidente? Quais as razões da tensão entre PT e PMDB? E, mais importante, quem é Dilma Rousseff? Se estivéssemos na França a primeira questão ficaria restrita à esfera privada, mas estamos no Brasil.

Por razões óbvias, vou me deter nas outras duas. Começo afirmando que o governo Dilma tem sido visto até agora como um governo de transição e este é seu maior fardo. Não é um fim em si mesmo. Desde a campanha, assim tem sido entendido, até mesmo com a cumplicidade da presidente. É um governo tampão. Sem muita cerimônia, tem se admitido que é um interregno até o retorno de Lula ao poder. Nada pior para o governante do que ter caráter transitório. Tira-lhe legitimidade e autoridade.

Se é tampão, que interesse teria o PMBD em criar crises? Ora, se o governo for bem-sucedido, os ganhos não serão do PMDB e sim do PT. Se for um fiasco ou medíocre, o PMDB, nas vésperas das eleições de 2014, passará para a oposição, como fez nos governos Sarney e Collor. Seus compromissos são pragmáticos e eleitoreiros, valem enquanto for bom para o sucesso eleitoral do partido. Os embates do PMDB com o governo visam fundamentalmente a conseguir cargos e verbas. Trata-se do exercício de forte poder de chantagem com vistas ao controle de posições importantes na máquina pública em termos de prestígio e orçamento. Nada, portanto, que dignifique o partido e o País.

O PMDB, no entanto, tem razão quando reclama da concentração de poder nas mãos do PT. Dados parciais de pesquisa que venho realizando mostram várias evidências a esse respeito. Entre os altos dirigentes públicos, apenas 21% e 29% eram filiados a partidos, respectivamente, nos governos FHC e Lula. No entanto, os dados são expressivos quando se olha o partido de filiação desse grupo: no governo FHC, 30% pertenciam ao PSDB e 20% ao PMDB, os partidos mais representados. No governo Lula, a parcela do PT representou 60% e a do PMDB caiu para 15%. Os dados do governo Dilma parecem indicar situação ainda mais desfavorável ao PMDB e a todos os partidos da coalizão. Quando miramos o ministério, a situação é também emblemática: o PT controla metade das pastas e o PMDB mal chegou a um quinto no governo Dilma.

Do ponto de vista da biografia política, Dilma é uma outsider, embora conte com a pajelança de governadores e com um padrinho de peso. Pelo menos por enquanto. Politicamente fraca, não soube ainda construir sua popularidade, expressa-se mal, não tem o encantamento verborrágico de Lula. Não tem experiência de negociação parlamentar e conta com um quadro de amadores na política, ao lado de um grupo de raposas mofadas e de bancadas moralistas que a fazem refém de oligarquias e credos.

Dilma tem tempo para reverter esse quadro. Tem tempo, mas não se sabe se tem vontade e autonomia. Creio mesmo que é difícil. Ela é parte de uma "obra", é criatura, não criador. Está limitada pela vontade de seu chefe político, Lula, pela falta de compostura de colegas como Palocci, pela falta de escrúpulos do PMDB em usar seu descontentamento como chantagem explícita. Sua fragilidade a torna presa fácil de outros grupos organizados no Congresso que começam a lhe impor derrotas vergonhosas. Derrotas em duplo sentido: ou porque perde votações, como no Código Florestal, ou porque tem que ceder ouvindo ameaças grotescas de garotinhos da política.

O PMDB quer partilhar poder e se sente, com razão, legitimado para solicitar uma partilha mais equilibrada de cargos. Por outro lado, não é infundado falar de possível petização do Estado. Mais do que isso, é nosso ofício pensar nessa hipótese como parte de cenários no horizonte. O PT é o mais organizado de todos os partidos, o que mais tem controle sobre a atuação e perfil de seus quadros. Além do mais, é o partido que mais tem filiados entre os funcionários públicos, que por sua vez são a categoria com maiores taxas de sindicalização no País. Nossos servidores federais têm taxas escandinavas de filiação sindical: em torno de 75%. Esse capital associativo dá ao PT recursos de poder inéditos quando se trata da ocupação de cargos estratégicos na máquina estatal e de controle político dos sindicatos. É uma rede de interesses que beneficia o corporativismo, o aparelhamento do Estado, e o partido tem sabido usá-la com competência.

Enquanto Lula era presidente foi possível beneficiar o partido e fazer acordos no Congresso, até mesmo jogar o mensalão para baixo do tapete. Foi possível conviver com a ética da frouxidão moral sob o argumento de que todos roubam, todos fazem a mesma coisa. Lula tinha popularidade e o benefício da dúvida. Com Dilma é diferente, pelo menos por enquanto. Sendo uma liderança fraca, precisaria de bons articuladores políticos, de bons auxiliares. Não parece ser o caso.

Sabemos com objetividade que política se faz com negociação e acordos. Que nada há de espúrio em dividir cargos, em premiar aliados. No entanto, em meio a essas negociações e "crises" pouco se avança em termos de melhorar os controles sobre uma máquina pública deformada que mantém o Brasil como um caso notório de corrupção, impunidade no campo e nas cidades e deficiência nos serviços públicos.

Dilma tem a seu favor a Copa do mundo de 2014. A privatização dos aeroportos atende a uma causa popular e não será vista como estelionato eleitoral, muito menos como desvio neoliberal. E ela poderá ser lembrada como a presidente da Copa no país do futebol.

Maria Celina D’Araujo é doutora em ciência política e professora do departamento de sociologia e política da PUC-Rio. Autora de A elite dirigente do governo Lula (FGV)

FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO

Nenhum comentário:

Postar um comentário