A recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da união civil homoafetiva manifesta uma tendência de longa duração na democracia brasileira. Não é de hoje que aquilo que a literatura especializada denominou como “judicialização” da política e das relações sociais emerge em diferentes episódios e ocupa, cada vez mais, a percepção da opinião pública em geral. O fenômeno, talvez diagnosticado desde a década de 1980, traduz entre nós certa passividade do Legislativo, por um lado, e um super-dimensionamento da atuação dos operadores do direito, por outro, sem que tenhamos nitidez acerca das suas causas. Certo é, no entanto, que sentimos suas conseqüências no decorrer dos anos, observando “arriscadas” experiências institucionais e “perigosos” precedentes na interpretação da Constituição.
Isso porque, ao declinar do seu papel constitucional o Legislativo abre mão do lugar no qual a luta pela democracia na história do Ocidente o colocou. A produção legal, associada ao processo de fiscalização do Executivo, sobretudo pelo controle orçamentário, constituem tarefas que deveriam resultar da escuta da sociedade, em seu anseios e demandas, elevando o Parlamento ao posto de “representante”. Rótulo que envolve o inescapável embate de propostas, buscando consensos, contrariando interesses, desafiando, quando necessário, o que está estabelecido em nome da mudança. No limite, o Congresso deve dar respostas à sociedade no que ela questiona a partir das inevitáveis transformações do tempo.
É truísmo dizer que não é isso o que vemos. Receosos de perderem preciosos votos em possíveis reeleições, ou mesmo imbuídos de sinceras posições conservadoras, deputados e senadores se esquivam do embate de interesses em questões polêmicas, privilegiando votações orçamentárias ou, o que é mais costumeiro, o jogo de “gato e rato” entre governo e oposição. No presente, o caso envolvendo suposto enriquecimento ilícito do ministro-chefe da Casa Civil, Antônio Palocci (PT), é o melhor exemplo de uma oposição que aparenta ter se esquecido de fazer oposição, tragada por um projeto “inconteste” de Brasil que não permite a construção de modelos alternativos de país. Amarrados na agenda do governo, sobra aos opositores a agenda menor de buscar fissuras em prováveis deslizes morais na base governista.
Não afirmo, com isso, que trazer à tona crimes de corrupção, ou mesmo promover uma inflexão sobre o papel dos interesses privados na política, a partir da reflexão do desempenho no mercado de ex-ocupantes de cargos públicos que detenham informações privilegiadas, seja do interesse de todos. Entretanto, contornar o lobby no Congresso não parece, à primeira vista, ser o objetivo central da oposição no caso Palocci.
E o que resta? Críticas. Muitas delas sintetizadas na recente constatação de que o Congresso parou. Ao invés de assumir seu papel constitucional e canalizar para dentro da dimensão política os interesses da sociedade, ele tem se mostrado surdo ao que ela anseia de mais premente. Sem falar, é claro, no tabuleiro que se forma a partir da distribuição de ministérios, primeiros e segundos escalões, jogo no qual a estratégia melhor sucedida envolve negociar matérias e demonstrar força na aprovação ou não de leis que deveriam, é bom lembrar, “representar”. O Código Florestal, capitaneado pelo PCdoB e encampado pelo PMDB, dois aliados até que se prove o contrário, foi aprovado na Câmara como parte dessa estratégia.
Mas o mundo não para. A sociedade civil, agora instrumentalizada pela internet e outros canais de comunicação, se move com uma feliz intensidade. Ainda que caibam críticas, o projeto de iniciativa popular que torna inelegíveis políticos condenados ou que tenham renunciado para fugir da cassação, mais conhecido como lei da “ficha limpa”, veio de “baixo”, nascido do anseio por uma reforma política, necessidade essa reforçada quase como um mantra entre os analistas, mas nunca iniciada pelo Congresso. Em outras palavras, ainda que o Congresso não escute, a sociedade não cessa em falar, buscando, sobretudo, outras formas de ser ouvida.
Uma delas, talvez a principal nos dias de hoje, tem sido o Judiciário. Nunca antes a presença de seus operadores nos noticiários se viu com tanta freqüência, tendo os ministros do Supremo assumido destacado papel em diferentes matérias. No caso da união civil homoafetiva encontramos apenas mais um exemplo, ainda que muito significativo para a compreensão dessa tendência, de suas vantagens e seus problemas.
Sem dúvida o posicionamento do STF sobre a matéria é uma conquista contra a intolerância. Muito mais pela interpretação favorável e pela construção de argumentos que podem, de alguma forma, subsidiar lutas futuras do que pela transformação da lei. Isso porque, o Judiciário não é o encarregado da produção legal e sua interpretação esbarra na própria Constituição, já “defasada” conforme decisão do Supremo.
Ainda assim, o Congresso não se move, assumindo a passiva postura de não enfrentar questões polêmicas e delegando, tacitamente, por certo, seu papel constitucional ao Judiciário. Não enfrentamento que ocasiona soluções pontuais, além da aparente inutilidade da política na vertebração da vida social. Um duplo equívoco, a meu ver: por um lado, questões substantivas, como a criminalização da homofobia, por exemplo, permanecem fora da agenda pública; por outro, operadores do direito se materializam na percepção comum como os sujeitos da democracia, responsáveis idôneos pela imaginação de mundos e construção do futuro. À política compete a corrupção, os interesses menores, o privatismo, no limite, a inutilidade.
Homofobia e união civil homoafetiva surgem, aqui, como manifestações de uma tendência. Surgem como indicadores de que a sociedade se transforma, cobrando respostas legais para anseios concretos. O episódio envolvendo os vídeos educativos produzidos pelo Ministério da Educação, numa campanha pela tolerância contra a homofobia, vídeos que receberam o singelo apelido de “kit gay” pela bancada conservadora e seu epíteto, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), é prova disso. Os vídeos tiveram sua distribuição suspensa pela presidenta Dilma, alegando ser o MEC e o governo incapazes de deliberar unilateralmente sobre questões morais, como a opção sexual, no caso. Quem seria capaz, então? Creio que o Congresso.
Longe de defender os vídeos em questão, mesmo porque questiono sua qualidade, defendo a concretude de um problema para o qual o Legislativo de fecha, ensejando soluções pontuais – oriundas, em sua maioria, do STF –, reações descabidas – como as protagonizadas pelo deputado Bolsonaro –, ou mesmo suspeitas perigosas – como ter Dilma vetado os vídeos como moeda de troca com a bancada evangélica, visando escudar o ministro Palocci.
Ou o Congresso reassume o seu papel de protagonista no embate de interesses, superando a passividade e omissão em que se encontra no presente, ou a crescente descrença acerca do seu papel delegará a política ao plano da permanente inutilidade, eliminando da agenda a possibilidade de grandes inflexões sobre o futuro.
Agora, meu amigo, parece que, com os últimos acontecimentos, a situação se inverteu: o Congresso se levanta e fragilizado está o Judiciário. É preocupante, já que, no meu ponto de vista, nossas instituições estão numa encruzilhada muito perigosa.
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