sábado, 2 de julho de 2011

O bom cidadão :: Cacá Diegues

Uma coisa aprendi com meus filhos pequenos, quando tratava de tentar educá-los: meus discursos e conselhos não lhes causavam efeito algum, o que importava mesmo era o exemplo que lhes dava nas diversas situações concretas testemunhadas por eles. Por uma virtude qualquer da natureza humana, sabemos que o outro nem sempre é o que diz, mas sim aquilo que faz.

Entre as pessoas que conheci, o cineasta Gustavo Dahl, falecido essa semana, era um dos poucos em que quase nunca a fala e o ato estavam distantes. O que não queria dizer que se deixava emparedar pelas ideias que o levavam à ação. Muito pelo contrário, ele sabia que o Ser não existe - só existe o Sendo, aquilo que somos no constante embate com as circunstâncias.

Um dos fundadores do Cinema Novo, o movimento cinematográfico brasileiro de nossa geração, Gustavo sempre foi, de todos nós, o mais culto, o que mais conhecia cinema e o que melhor se expressava. Bonito, elegante, de hábil sociabilidade, sua aparência de dândi e a permanente ironia de seu pessimismo construtor o diferenciavam de nosso ardor juvenil, de nosso entusiasmo mágico pelo que construíamos. Faziam dele o mais adulto de todos nós.

Seu primeiro longa-metragem, "O bravo guerreiro", belo e rigoroso filme político desprovido das ilusões políticas, inaugurou, ao lado de "O desafio", de Paulo César Saraceni, a segunda fase do movimento, aquela da desilusão e da necessária reflexão sobre nós mesmos, que teria em "Terra em transe", de Glauber Rocha, seu ápice.

Tendo sido, antes de tudo, um fino pensador e um artista delicado, Gustavo acabou escolhendo a gestão pública como destino de sua vida. Não como sacrifício, mas como missão.

E, como tal, sempre esteve na liderança da modernização do cinema brasileiro, desde seus textos e articulações nos primeiros passos do Cinema Novo, até a recuperação, o fortalecimento e a democratização do Centro Técnico Audiovisual (CTAv) que dirigia agora, passando pela montagem da distribuidora da Embrafilme, uma das maiores da América Latina em seu tempo, e pela criação e comando inaugural da Agência Nacional de Cinema (Ancine), na aurora do século 21.

Em suma, a obsessão de sua vida foi a de que o cinema brasileiro tinha que dar certo e, com ele, o próprio Brasil. Gustavo Dahl é um dos heróis da cultura desse país e não se impunha limites nesse heroísmo, como numa citação de Niesztche que lembrava sempre: "Não é porque estamos esgotados que nossas tarefas se esgotaram."

Acho que Gustavo sabia que não adianta procurar o sentido da vida - ele não existe, ela não tem nenhum. Mas essa procura é o único sentido que a vida pode ter e dela construiu seu amor ao cinema e a aprovação unânime de seus pares.

Foi como testemunha dessa aprovação que me emocionei em seu velório, no início da semana, ao ver ali uma multidão reunida para se despedir dele. Gustavo Dahl foi, durante toda a sua vida, um guerreiro provocador e polêmico. E, no entanto, ali estavam todos os lados e partidos do cinema brasileiro, todas as suas tendências, todas as gerações de cineastas, como a dizer que havíamos entendido não apenas os discursos, mas sobretudo os gestos exemplares que vencem as paixões do tempo.

Não pude evitar lembrar-me do episódio recente da carta da presidente Dilma Rousseff a Fernando Henrique Cardoso, na celebração de seu aniversário, e as consequências políticas dessa distensão. Um gesto generosamente democrático que engrandece a presidente e nos faz ter confiança em sua sensatez e liderança. Afinal de contas, não é preciso eliminar a diferença para fazer valer nossa fé. Se num discurso não houver um mínimo de possibilidade de o outro estar certo, esse discurso será sempre autoritário, excludente e impositivo, não serve para nada.

Há, na história moderna, outros gestos exemplares de democracia consolidada, parecidos com esse.

Secretário-geral do Partido Comunista Francês desde 1930, Maurice Thorez fez dele o PC mais stalinista do ocidente. Em 1939, apoiou o pacto germano-soviético, tendo por isso que deixar o país, sendo chamado de traidor e desertor pelo general Charles De Gaulle. Mas, quando as tropas de Hitler ocuparam a França, Thorez voltou clandestinamente e incorporou-se ao movimento de Resistência que o mesmo De Gaulle coordenava. Com o fim da guerra, coube ao general organizar um governo de união nacional e Thorez se tornou ministro por dois anos. Na década seguinte, porém, quando De Gaulle voltou ao poder, o chefe comunista levou o PCF à liderança da mais contundente e impiedosa oposição.

Eu tinha 24 anos e estava em Paris pela primeira vez quando Thorez morreu, em julho de 1964, e fiquei impressionado com o que então aconteceu. Primeiro, De Gaulle expediu nota oficial lamentando o falecimento de seu adversário. Em seguida, para escândalo geral, o general apareceu de surpresa no cemitério de Père Lachaise, assistindo pessoalmente ao enterro do seu eterno inimigo politico.

O bom cidadão deve ser sempre lembrado e reconhecido como tal, não importa em que partido esteja. Como meu querido e inesquecível amigo Gustavo Dahl.

Cacá Diegues é cienasta.

FONTE: O GLOBO

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