domingo, 10 de julho de 2011

Verba de reconstrução é desviada para propina

Em depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), o dono de uma construtora revelou que, na chuva que há seis meses matou mais de 900 pessoas na Região Serrana, um acerto entre empreiteiras e autoridades de Teresópolis subiu a taxa da propina de 10% para 50%, como revelam os repórteres Antonio Werneck e Waleska Borges. Em Friburgo, o município mais atingido pela enxurrada, uma empresa ganhou um contrato de mais de R$ 900 mil para prestação de serviços, apesar de estar proibida de participar de licitações. Até agora, o MPF da cidade já instaurou mais de dez inquéritos civis públicos para apurar denúncias de corrupção. "Ninguém da prefeitura apareceu por aqui para oferecer um saco de cimento", disse Josias Simões, morador de Teresópolis, que vive numa casa parcialmente soterrada

Depois da tempestade, vem a corrupção

Investigação do MPF revela que, na época das enxurradas, funcionários e empresas elevaram de 10% para 50% a propina para contratos sem licitação

Antônio Werneck

Em janeiro deste ano, as imagens do maior desastre natural já ocorrido no país comoveram os brasileiros, provocando uma onda de solidariedade em direção à Região Serrana do Rio. Passados seis meses das enxurradas, que mataram mais de 900 pessoas, uma investigação protegida por sigilo de Justiça, em curso no Ministério Público Federal, revela o pior do ser humano: enquanto equipes trabalhavam dia e noite nas buscas por sobreviventes, um grupo de funcionários públicos e empresários teria acertado o reajuste de propinas para aprovar contratos sem licitação, embolsando verba liberada para ajudar sobretudo os mais necessitados. A investigação mostra que o percentual da propina, que normalmente era de 10%, na tragédia quadruplicou, passando para 50%.

As investigações começaram com o relato de um empresário ao MPF de Teresópolis. Disposto a contar tudo o que sabia em troca de perdão judicial e proteção para sua família, ele recorreu à delação premiada (quando um criminoso faz acordo com a Justiça, ajudando nas investigações) para revelar um suposto esquema de corrupção que funcionava na prefeitura, envolvendo empresas que atuaram em pelo menos quatro municípios da Região Serrana na época da tragédia.

Segundo ele, na semana das enxurradas - ocorridas em 12 de janeiro -, empresários e secretários municipais se reuniram num gabinete da prefeitura, administrada pelo PT, para dividir os contratos sem licitação e os recursos federais. O dinheiro, um total R$100 milhões, foi enviado ao Estado do Rio pelo Ministério da Integração Nacional, por determinação da presidente Dilma Rousseff.

O empresário revelou ainda que secretários de Teresópolis na época - José Alexandre (Governo) e Paulo Marquesine (Obras) -, com o auxílio do então presidente da Comissão de Licitação do município, surpreenderam ao impor outro valor de propina. "Em 2010, eles exigiam de 5% a 10%, pediam presentes e adiantamentos para escolher as empresas que venceriam a concorrência. Na semana da tragédia, anunciaram um reajuste: o valor cobrado passaria para 50%", contou o empresário em depoimento ao MP. José Alexandre e Paulo Marquesine foram procurados pelo GLOBO, mas não foram encontrados.

Três empresas seriam as mais beneficiadas

Segundo o denunciante, três empresas (RW de Teresópolis Construtora e Consultoria Ltda; Vital Engenharia Ambiental S/A, do grupo Queiroz Galvão; e Terrapleno Terraplanagem e Construção Ltda) seriam as principais beneficiadas. Ainda de acordo com o seu relato, a RW e a Vital ficariam encarregadas da retirada de entulho e da desobstrução de ruas. Já a Terrapleno ficaria com a coleta de lixo, com auxílio da Vital, que cuidaria da instalação de um aterro. Uma quarta empresa, a Contern Construções e Comércio Ltda, de São Paulo, também teria recebido recursos do município, mas não é citada pelo empresário.

As denúncias foram feitas na sede da Procuradoria da República de Teresópolis, aumentando o número de informações de um inquérito civil público que já apurava o suposto desvio de dinheiro público e a não realização de obras contratadas na cidade. O procurador da República Paulo Cezar Calandrini, que cuida do caso, disse que não poderia falar do assunto porque o inquérito corria em segredo de Justiça.

Denúncias de irregularidades e suspeitas de corrupção também atingiram Nova Friburgo, o município que mais sofreu, em área urbana, com o temporal do início do ano, tendo recebido R$10 milhões - a maior fatia das verbas federais enviadas às cidades da região. Até agora, o MPF na cidade já instaurou mais de dez inquéritos civis públicos e promete outros, cobrando explicações da prefeitura. O caso mais grave aponta para funcionários da Fundação Municipal de Saúde (FMS), que autorizaram, no meio tragédia, o pagamento, sem licitação, de mais de R$900 mil a uma empresa do Rio, a Spectru Instrumental Científico Ltda. O contrato previa que a empresa faria a manutenção e a conservação de equipamentos da rede municipal de saúde atingidos pela enxurrada.

Os procuradores da República que atuam no município descobriram que a Spectru já tinha vencido, em 2010, uma concorrência para prestar basicamente os mesmos serviços (manutenção de equipamentos hospitalares) por um terço do valor total. O processo seletivo acabou anulado porque empresas participantes provaram na Justiça que a Spectru estava impedida de concorrer em qualquer licitação no estado - por não ter cumprido os termos do contrato de outra concorrência.

Em abril, o MPF de Friburgo já havia instaurado um inquérito civil público para apurar a lentidão da prefeitura para informar como estava usando verbas federais no município. No mês passado, em outra ação do MP, a Justiça determinou que a Fundação Municipal de Saúde suspendesse o pagamento de quase R$ 2,9 milhões a quatro empresas para obter material médico-hospitalar. Os procuradores da República também descobriram que as compras foram autorizadas sem um pedido prévio do chefe do almoxarifado central da FMS.

- A grosso modo, é o mesmo que você ir ao supermercado e encher um carrinho de compras sem antes saber o que realmente está faltando em sua casa - disse o procurador Marcelo Borges de Mattos Medina.

As suspeitas de fraudes com o dinheiro público recaem ainda sobre outros cinco municípios da região atingidos pelas enxurradas: Petrópolis, Sumidouro, Areal, Bom Jardim e São José do Vale do Rio Preto, que teriam recebido um total R$13 milhões do governo federal, mas até hoje não prestaram contas de como gastaram a verba. As investigações sobre possíveis irregularidades respingam ainda nas secretarias de Obras e de Assistência Social e Direitos Humanos do governo do estado. Os dois órgãos ficaram encarregados de aplicar nos municípios serranos recursos da ordem de R$70 milhões enviados pela União. Segundo procuradores do MPF que atuam da região, somente na última sexta-feira o governo estadual enviou informações sobre os serviços que contratou. Esses dados ainda serão analisados. Já os municípios não prestaram informações satisfatórias.

FONTE: O GLOBO

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