quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Câmara ignora propina e livra deputada

Filha de Roriz escapa de cassação com apoio de 265 parlamentares, apesar de flagrante de corrupção

Flagrada recebendo propina de R$ 50 mil, em 2006, no esquema do mensalão do DEM, a deputada federal Jaqueline Roriz (PMN-DF), filha do ex-governador Joaquim Roriz, foi absolvida pela Câmara. Dos 451 presentes, 265 votaram contra a cassação; 166, a favor; e 20 se abstiveram. Prevaleceram o espírito de corpo - pois, se ela fosse cassada por crime anterior ao mandato, abriria precedente - e o fato de a votação ser secreta. Um projeto para acabar com o voto sigiloso em casos de cassação está parado há cinco anos. Desde 2005, de 33 deputados processados, só quatro perderam o mandato. Diretora do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), Jovita José Rosa classificou o resultado como um conchavo para favorecer outros parlamentares em futuros processos de cassação.

Só a Câmara não viu

Apesar de vídeo com flagrante de propina, deputados livram filha de Roriz de cassação

Isabel Braga e Gerson Camarotti

Mais um caso de impunidade na família Roriz, mesmo diante de imagens de desvio de dinheiro público em benefício próprio. O espírito de autopreservação dos deputados federais e a votação secreta foram determinantes, ontem, para que a deputada Jaqueline Roriz (PMN-DF) escapasse da cassação do mandato, apesar da divulgação, em março deste ano, de vídeo em que ela recebe R$50 mil em dinheiro vivo do delator do esquema do mensalão do governo do Distrito Federal, Durval Barbosa. Sem negar o desvio do conhecido mensalão do DEM no governo de José Roberto Arruda, Jaqueline Roriz se apegou ao argumento de que o malfeito aconteceu antes de sua eleição para a Câmara dos Deputados. E deu certo.

Tranquila desde o início da sessão, a deputada alternou momentos em que ameaçou choro, com sorrisos a cada afago recebido de parlamentares de vários partidos. E o resultado não fugiu ao script: conseguiu a seu favor uma margem confortável de apoio para ser absolvida. Apenas 166 deputados votaram a favor da cassação, quando era preciso pelo menos 257 votos "sim". Votaram contra a cassação do mandato 265 deputados e outros 20 se abstiveram. A deputada nem esperou o resultado. Após falar na tribuna, foi acompanhar o resultado com a família, em casa.

Em plenário, antes mesmo do resultado, deputados já davam como certa sua absolvição. Apesar de Jaqueline não ter sido eleita por uma sigla grande e nem ser considerada como aliada do governo, o maior receio dos deputados era que a votação abrisse um precedente para que outros parlamentares sofressem também processos de cassação por atos cometidos antes do mandato. Segura de que seria absolvida, Jaqueline deixou o Congresso por volta das 20h, para evitar constranger os colegas, ao comemorar a votação. Na galeria, um grupo pequeno de aliados comemorou efusivamente.

Ao falar pela primeira vez depois que o vídeo veio a público, Jaqueline tentou demonstrar humildade, fez um discurso emotivo, apelando para o sentimento dos parlamentares. Atacou duramente a mídia e também o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, acusando-o de denunciá-la quatro dias antes do julgamento sem ao menos ouvi-la. Na única referência ao vídeo em que foi flagrada recebendo dinheiro vivo de Durval, Jaqueline limitou-se a dizer que foi gravado fora do contexto do mandato parlamentar.

- Fizeram isso comigo, com minha honra, e mais uma vez me calei. Venho agora quebrar esse silêncio. Sofri e vi minha família sofrer comigo. Em 2006, eu era uma cidadã comum, não era deputada, não era funcionária pública - leu Jaqueline, com voz chorosa.

Assim que terminou o discurso, alguns aliados dela nas galerias aplaudiram. Manifestantes, que usavam camisetas com os dizeres "Fora Jaqueline Roriz", vaiaram.

Eleitores não souberam de conduta, diz relator

Primeiro a falar, o relator do processo, Carlos Sampaio (PSDB-SP), defendeu a tese de que a imagem da Câmara foi comprometida quando o vídeo foi divulgado, em março deste ano, apesar de ter sido gravado em 2006. Ele enfatizou que nem os eleitores de Jaqueline souberam de sua atitude antes das eleições, por isso, para ele, cabe a cassação do mandato por quebra de decoro. Até como forma de tentar espantar o grande receio de deputados que têm problemas na Justiça cometidos antes de eleitos, Sampaio enfatizou que o caso de Jaqueline era diferente, porque só tinha vindo à tona este ano, mas que nenhum parlamentar seria julgado por fatos pretéritos.

Sampaio afirmou ainda que, se o vídeo, mesmo que antigo, flagrasse um assassinato, um estupro ou ato de pedofilia anterior ao mandato, o entendimento seria também o de que tratava-se de ato anterior ao mandato, que não poderia ser julgado pela Casa.

- Se viéssemos a saber, no dia de hoje, que determinado parlamentar praticou pedofilia, que ele matou, que ele estuprou, o que esta Casa iria dizer à sociedade? - questionou o relator.

Carlos Sampaio explorou ainda o fato de que Jaqueline pedia clemência dos colegas parlamentares, apesar de ela ter chamado de "mau caráter" e "cara de pau" a deputada distrital Eurides Brito, cassada por ter sido flagrada em vídeo recebendo dinheiro, como Jaqueline Roriz.

- Não é hora de falar em espírito de corpo, mas de espírito público. É a imagem do Parlamento que está em jogo. Aconteceu em 2006, mas só veio a público em 2011 - disse Sampaio.

- Quanta desfaçatez, chamar de cara de pau, de mau caráter, dizer que a cidade sangra por alguém que cometeu a mesma conduta (Eurides Brito) valendo-se apenas do privilégio de que as imagens não teriam sido divulgadas à época - concluiu o relator, referindo-se à parlamentar, que foi flagrada colocando R$50 mil na bolsa no escritório de Durval.

Tanto o advogado de defesa da deputada, José Eduardo Alckmin, quanto a própria Jaqueline deixaram claro aos deputados que eles poderiam ser os próximos a serem afetados se a regra que permite processar um parlamentar por fato cometido antes do mandato fosse ratificada.

José Eduardo Alckmin citou relatório de 2007, do então deputado federal e atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, sobre o caso envolvendo o deputado Raul Jungmann. O deputado sofreu processo de quebra de decoro no Conselho de Ética com base em acusações de atos cometidos quando era ministro. Cardozo afirmou que não é possível quebrar o decoro parlamentar quando ainda não se é parlamentar.

- É um precedente da maior valia, que foi aprovado pelo Conselho de Ética. Ato praticado fora do exercício parlamentar não tem poder de configurar um ato atentatório ao decoro e à ética parlamentar - disse Alckmin.

O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) fez uma intervenção dizendo que a deputada, sendo absolvida, não significaria a criação de uma jurisprudência de que fatos anteriores ao mandato não podem determinar cassação:

- Quero deixar claro que, mesmo que a deputada Jaqueline seja absolvida, não se criará jurisprudência sobre a atemporalidade.

Jaqueline chegou à Câmara um pouco antes das 16h. Foi ao plenário e, com amigos e assessores, sentou-se em um cadeira próxima ao corredor central. Alguns poucos deputados presentes foram cumprimentá-la. Vestindo um terninho bege, a deputada tentou mostrar compenetração e adotou postura de vítima. Em vários momentos, limpou o rosto com as mãos. Enquanto Sampaio falava, ela permaneceu em pé, prestando atenção às palavras ditas contra ela.

FONTE: O GLOBO

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