quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Estudantes chilenos: pais de uma nova democracia? :: Alberto Aggio

Começou com os estudantes universitários marchando diariamente e cantando y va caer, y va caer, la educación de Pinochet. Familiares, secundaristas e professores logo engrossaram os protestos. Na semana passada, trabalhadores da iniciativa privada e do setor público organizaram uma greve geral que paralisou boa parte do Chile. E os milhares de chilenos, origens distintas, que tomaram conta das ruas da cidade de Santiago nos últimos meses, em passeatas, panelaços e comícios gigantescos, conseguiram finalmente alcançar uma relevante vitória política ao obrigar o governo do país a abandonar a posição inicial de intransigência para abrir canais de diálogo com os manifestantes.

Acuado e pressionado, forçado a compreender a capacidade de resistência, o alcance e os significados dos protestos, o presidente Sebastián Piñera tomou a iniciativa de sugerir e de agendar, para esta terça-feira, dia 30 de agosto (agora adiada para sábado, 3 de setembro), o que chamou de uma audiência de trabalho com a líder Camila Vallejo, da Confederação dos Estudantes do Chile. Será mais um capítulo da queda de braço que coloca em campos antagônicos o mais impopular presidente do período da redemocratização chilena, que já afirmou que “nada na vida é de graça” e que conta com apenas 26% de aprovação da sociedade, e o movimento estudantil, que exige ensino público, gratuito e de qualidade.

Para Alberto Aggio, professor titular de História da América Latina da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca), o que estamos acompanhando atualmente no Chile é um amplo movimento social e político de descontentamento generalizado com o modelo de educação básica e universitária que o país adotou há 30 anos, durante a ditadura do general Augusto Pinochet. “O movimento estudantil faz um questionamento profundo ao sistema educacional, que se ampliou fantasticamente, até respondendo à demanda. Ocorre que a resposta a essa pressão da sociedade se deu por meio de universidades privadas, que custam muito caro e que na maior parte das vezes não garantem qualidade de ensino. Mesmo as públicas, que ficaram em segundo plano e tiveram a expansão contida, são pagas. O governo oferece financiamentos, mas o que acontece é a reprodução de uma situação de injustiça gravíssima, pois há famílias que levam até 15 anos para conseguir saldar os compromissos e quitar esses cursos. O índice de evasão é alto”, explica o pesquisador, em entrevista exclusiva ao Blog.

Ele conta que tem amigos chilenos que, quando os filhos nascem, já abrem poupança com objetivo exclusivo de financiar futuros estudos universitários. Os bancos disponibilizam linhas de crédito específicas para essa finalidade. “Quem leva vantagem clara com essa mentalidade selvagem mercantilista e de lucros são os ricos, os mais abastados, que podem pagar para estudar. A situação tornou-se explosiva, insustentável. Há muita gente de fora. O que pode ser considerado um paradoxo, pois a economia chilena vai relativamente bem, mas não há perspectiva de futuro para os jovens. O sistema de proteção social foi totalmente destruído. Tinha restado a Educação. Hoje, nem mais”, completa Aggio. Para lembrar: o Chile foi um dos pioneiros na implementação das políticas neoliberais e um dos mais aplicados alunos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Nesse processo de desmantelamento do aparato social do Estado, não há como isentar de responsabilidade a Concertación, aliança de centro-esquerda que comandou o Chile até a recente eleição de Piñera, legítimo representante da direita. A coalizão optou por uma saída da sangrenta ditadura militar que não representasse ruptura de fato com o modelo anterior. Temia-se que a redemocratização pudesse ser sabotada ou retroceder e, em nome da governabilidade do país, não foram profundas as mudanças promovidas pelos governos democráticos. “Nesse momento, a juventude critica nas ruas tanto a direita pinochetista quanto a esquerda da Concertación. Os estudantes levantam a bandeira de uma outra transição, com força e sustentação para confrontar o modelo, que foi pensado para garantir estabilidade econômica, mas não equidade social”, avalia Aggio.

Mas ele faz um alerta: é precipitado e temerário afirmar que as manifestações ignoram os partidos. No Chile, há ainda uma profunda identificação com forças organizadas. Para o professor da Unesp, o que se nota é uma cultura política que se expressa como antagonista do modelo herdado da ditadura e reforçado pela democracia, mas as lideranças do movimento atuam no sentido de ampliar os canais e espaços de negociação — ou seja, reconhecem a legitimidade das instituições. “Não há discursos que terminem em propostas como ‘sem Estado, sem partidos, sem organizações’”, completa. De outra forma, ele concorda que as mobilizações no Chile fazem parte de um processo mais amplo — de uma crise geral da democracia representativa, que dá sinais de esgotamento.

“Não dá mais conta do dinamismo que as sociedades estão vivendo, fomentado pelas tecnologias. Há demandas novas, que o processo eleitoral e as velhas lideranças não são capazes de acompanhar. As mobilizações e os protestos ganham as ruas e se expressam dessa maneira, no espaço público. É um movimento que faz sacudir a democracia chilena. Há uma faixa em frente a uma universidade que diz claramente: ‘Não somos filhos da democracia. Somos pais de uma nova democracia’”.

De qual democracia estamos falando? Para Aggio, de um regime que resolva o dilema da educação, mas que também busque uma nova institucionalidade, com potencial para enfrentar não apenas a exigência de estabilidade, mas principalmente para estabelecer políticas públicas de equidade e de justiça social. O pesquisador avalia que, a depender dos rumos encaminhados, o movimento pode abrir uma nova vertente, a saber: um poder constituinte. Afinal, há grandes déficits na transição chilena, que saiu e voltou para a democracia, mas não idealizou nova ordem constitucional. A Carta em vigor é a de 1980, dos anos Pinochet. “Em algum momento, pode ser colocada na ordem do dia a refundação das instituições do Estado, para estabelecer nova Constituição”, admite Aggio.

Esse é o dilema que está colocado. Os próximos dias — e o que vai sair das conversas que serão travadas entre o governo e a liderança estudantil — serão decisivos para indicar se o movimento terá forças para fazer nascer essa nova democracia ou se vai arrefecer e se restringir ao espaço educacional e universitário. “Os atores políticos podem compreender que há limites. Os estudantes são capazes de liderar o movimento, mas não de segurá-lo isoladamente. Na semana passada, a greve foi representativa no setor público, mas fraca no privado. Se for assim, mais localizado, podemos chegar a um cenário em que o movimento pulsa e arrefece, pulsa e arrefece...”.

Aggio critica duramente o comportamento da polícia chilena que, convocada por Piñera e sustentada por leis da ditadura, não hesitou em agir de forma truculenta e repressiva, com condutas muito próximas das adotadas nos anos Pinochet. Durante a greve geral, o estudante Manuel Gutiérrez, 16 anos, foi morto com um tiro no peito, disparado pelas forças policiais. O episódio colaborou para que o governo acendesse o sinal de alerta e decidisse negociar com os estudantes. Sobre esse diálogo, Aggio lembra que os estudantes já pressionam as lideranças do movimento a não ceder a pressões de Piñera. Segundo o pesquisador e professor da Unesp, não adianta alocar mais recursos para a Educação. É preciso mudar o modelo. “Os donos de universidades particulares não podem ganhar essa exorbitância dos alunos e do governo, via financiamentos. Esse sistema privado é selvagem. Precisa ser radicalmente substituído”.

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Entrevista originalmente concedida ao Blog do Chico.

Fonte: Blog do Chico & Gramsci e o Brasil.

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