domingo, 14 de agosto de 2011

Lições da beira do abismo? :: Pedro S. Malan


O pânico que assalta os mercados financeiros e as bolsas de valores neste início de agosto é de natureza distinta - embora relacionada - da do pânico avassalador que se instaurou nos mercados e nos governos dos principais países desenvolvidos após o colapso do Lehman Brothers, em setembro de 2008. Ali ocorreu um gravíssimo colapso de confiança no sistema de intermediação financeira do mundo desenvolvido, de consequências imprevisíveis - não fora a, historicamente sem precedentes, resposta dos governos em termos de estímulos fiscais (mais gastos, menos impostos, mais dívida) e monetários (taxas de juros reais negativas e expansão inédita dos balanços de bancos centrais).

Essas respostas à crise levaram a uma acentuada e simultânea elevação de déficits fiscais e de estoques de dívida pública em praticamente todos os países desenvolvidos. Além disso, há dívidas privadas, particularmente de instituições financeiras e de famílias que estão em áreas não claramente mapeadas, que podem representar passivos contingentes do setor público em muitos países.

Como notou Gustavo Franco em entrevista recente à Folha de S.Paulo, "o que estamos vivendo é o esgotamento do crescimento do Estado nas grandes democracias ocidentais e no Japão, onde os níveis de endividamento público ultrapassaram medidas habitualmente aceitas de responsabilidade fiscal. (...) O enredo do impasse americano é global, e, por isso mesmo, foi tão impactante. É uma prévia do que vai ser visto em muitos países. É como se fosse o fim de uma era de keynesianismo fácil, onde tudo sempre se resolve com o gasto público, socializando perdas, ou acomodando sucessivas e inesgotáveis "conquistas", e coalizões cada vez maiores".

Qualquer semelhança com outros países não é mera coincidência. Mas o que importa é que, na fase em que estamos, os impasses e as disfuncionalidades do mundo político, que eram, na prática, desconsiderados pelo mundo econômico, passaram a despertar uma inusitada atenção - particularmente nos EUA e na Europa, por seus efeitos potencialmente negativos sobre expectativas quanto ao curso da atividade econômica, do investimento, do emprego e do crescimento no médio e no longo prazos, que não dependem apenas das políticas macro (monetária e fiscal), mas de fatores como infraestrutura (física, humana e institucional), inovação, produtividade, ambiente geral de negócios, confiança da economia privada.

O ex-ministro Delfim Netto expressou com clareza a questão básica em artigo no jornal Valor Econômico, na semana passada: "É preciso insistir que o aumento da demanda pública (pela ampliação do gasto) pode ser eficaz para ampliar o uso dos recursos "desempregados" pela queda da demanda do setor privado se, e unicamente se, estimular um aumento do consumo ou do investimento do próprio setor privado. O problema com um certo keynesianismo é esquecer Keynes. O resultado final do aumento da demanda pública só será funcional se alterar as "expectativas" do consumidor (...) e recuperar o espírito animal do investidor".

O que aconteceu no mundo desenvolvido ao longo destes últimos quatro anos (agosto de 2007 a agosto de 2011) foi 1) um dramático encurtamento do espaço para medidas adicionais de expansão fiscal e monetária e 2), não menos importante, uma crescente percepção da necessidade de reformas em outras áreas para que o crescimento de médio e longo prazos possa ser retomado em bases sustentáveis. Esses fatos encerram importantes lições para o Brasil - que, felizmente, ainda tem margem de manobra na área macro e deveria, agora, aproveitar as janelas da oportunidade para incluir nas suas "respostas à crise" mudanças mais estruturais, das quais depende nosso desenvolvimento futuro.

A esse respeito, não creio que o Brasil tenha adotado medidas "keynesianas" apenas como resposta à crise. Na verdade, a decisão de expandir fortemente o gasto público antecede a crise e remonta àquilo que muitos denominam "inflexão desenvolvimentista pós-março de 2006". A crise constituiu um bom álibi para justificar uma política fiscal expansionista, que já vinha sendo praticada - e foi acelerada como "resposta" à crise (como vários outros países estavam fazendo). E, mais importante, continuou sendo praticada mesmo depois que a crise foi tida como superada em meados de 2009, levando a um superaquecimento da economia em 2010 e ao aumento das expectativas inflacionárias.

No Brasil de agosto de 2011, a crise atual está sendo vista por muitos como uma histórica janela de oportunidade... mas para uma significativa redução dos juros. A possibilidade certamente existe, dependendo do contexto internacional e da extensão na queda da taxa de crescimento da economia global e dos preços de commodities. E a crônica da redução antecipada dos juros é vista como iniciando uma espécie de círculo virtuoso: redução do custo da dívida pública, potencial aumento do espaço para gastos públicos e para uma eventual diminuição da carga tributária. Em suma, pela segunda vez a crise internacional oferecendo ao País um álibi para que este fizesse aquilo que gostaria de fazer de qualquer maneira.

Discute-se pouco a possibilidade de tentar recuperar, ainda que sob outra roupagem, o espírito de uma proposta, então tida como rudimentar, de fins de 2005. Não seria a hora de aproveitar a janela de oportunidade histórica e as "lições da beira do abismo" de europeus e americanos, e repensar a ideia de um controle de médio e longo prazos da velocidade do crescimento dos gastos do governo e de seu continuado aumento em relação ao produto interno bruto (PIB)? Se apresentado de maneira crível, com base legal, compromisso firme do governo e de uma presidente que sabe o que quer, isso seria de inestimável, fundamental ajuda para uma queda expressiva das taxas de juros nominais e reais, nosso não obscuro objeto de desejo.

Economista, foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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