quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O BC e a subversão dos fatos - a mais longa marcha :: Lourdes Sola

Os "Fatos são Subversivos" é o título de um livro de Garton Ash, um dos mais lúcidos "historiadores do presente". É um chamado à responsabilidade histórica dos formuladores de políticas públicas que se valem de conjunturas de grande incerteza para fazer valer suas prioridades. "Os fatos são subversivos (...) porque subvertem os argumentos dos líderes democráticos eleitos tanto quanto dos ditadores (...), porque subvertem as mentiras, as meias-verdades e os mitos de todos aqueles de fala fácil". O argumento reporta-se a um contexto de incerteza ainda mais extremo do que o atual cenário econômico. Mira as mentiras e meias-verdades oficiais que levaram o povo e o Congresso americanos a legitimar a invasão do Iraque e à guerra no Afeganistão em resposta ao 11 de Setembro. Sem esses recursos, retóricos, mas nada inofensivos, a História mundial teria sido outra.

O que dá um sentido trágico a essa constatação é a impossibilidade de reverter o que foi consumado com apoio em meias-verdades e mitos. Restam dois recursos corretivos: as lições de História que os fatos propiciam e a oportunidade para uma correção de rumos. Mesmo assim, há uma boa dose de otimismo na constatação de Garton Ash, porque ancorada num suposto forte: a vigência de instituições democráticas e de uma mídia investigativa, graças às quais cedo ou tarde os fatos virão à luz. No essencial, tem razão, pois toda tentativa de impedir que os fatos venham à tona traz à luz também um déficit democrático. Que as decisões da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, ilustram. Ao subtrair da agenda pública a disparidade entre a taxa oficial e a taxa efetiva da inflação, com medidas legais restritivas à autonomia de consultores e jornalistas, lança luz sobre a subordinação do Judiciário ao Executivo - e sobre indícios anteriores de regressão autoritária.

No novo contexto de incerteza global voltam a entrar em pauta entre emergentes temas correlatos, como inflação, disciplina fiscal e monetária, papel do mercado interno e crescimento. No Brasil volta à cena um velho espectro - a questão da autonomia do Banco Central (BC) - que os mercados e os analistas julgavam exorcizado desde 1999, graças ao mandato (informal) para exercer sua autoridade no marco de um conjunto de regras e normas, caracterizado como regime de metas de inflação. O debate que se seguiu à redução abrupta da taxa de juros interbancária dá o que pensar. Há convergência entre analistas quanto aos rumos da política econômica: substituição do regime de metas de inflação por metas ad hoc para a taxa de juros, adoção de uma banda oculta para as variações na taxa de câmbio. Dá o que pensar, também, sobre o modo de fazer política do governo. Por um lado, há elementos que reforçam o contraste entre a nossa trajetória e a da Argentina. O presidente do BC, o ministro da Fazenda e assessores informais do governo vieram a público legitimar tecnicamente as medidas mencionadas - sob o escrutínio dos seus pares. Com isso atestam a vigência (tênue) de um requisito democrático: a prestação de contas pelos decisores e a chance de responsabilização futura por suas apostas. Isso compõe o quadro de credibilidade econômica acumulada ao longo dos últimos anos, graças à qual foi afastada a possibilidade de reproduzirmos o padrão errático da Argentina - o "efeito vodca".

Há duas questões intrigantes a respeito. Em que momento definidor se consolidou a divergência de rumos entre os dois países? Além disso, o argumento sobre a função subversiva dos fatos pressupõe que, uma vez revelados, a capacidade para elaborá-los está dada e bem distribuída. Seria assim sempre? A resposta à primeira questão é simples: os momentos definidores foram as decisões políticas tomadas em duas encruzilhadas, em resposta aos choques externos de 1999 e 2002-2003. Respectivamente, a adoção do tripé regime de metas de inflação-flutuação cambial-superávit primário e a opção pela continuidade em 2002-2003 e nos anos seguintes. Esse rumo é posto em causa pelo governo, de forma concertada e pouco transparente. Baseia-se na aposta numa crise sistêmica internacional deflacionária, que estaria a exigir políticas fiscal e monetária expansivas aqui e agora. É uma questão em aberto, mas não se esgota nisso. Vale a pena refletir também nos termos de Garton Ash. Na hipótese de que o horizonte de crescimento dos emergentes seja menos negro do que o suposto, quais as chances de que uma nova onda inflacionária em 2012-2013 tenha um efeito subversivo sobre os mitos, as ideologias e meias-verdades de curso oficial?

Há razões para ceticismo, estruturais e históricas. As democracias de massa, num mundo globalizado, caracterizam-se pela existência de um hiato entre a democratização das informações, por um lado, e a capacidade de elaborá-las adequadamente, por outro. A experiência da inflação e das flutuações no poder de compra internacional da moeda é imediata, brindada por indicadores diários nos jornais televisivos. Dependemos da intermediação de vários atores sociais para elaborar o que significam - incluídos os que detêm o saber especializado, os ideólogos, os legisladores.

A experiência histórica também justifica o ceticismo. Uma das características da trajetória econômica brasileira é a opção pelo que caracterizo como "fuga para a frente". Diante da falsa disjuntiva estabilidade ou crescimento, reapresentada em encruzilhadas históricas como 1956-1957, ou quando dos choques do petróleo no governo Geisel, ou no Plano Cruzado, recria-se um impulso inexorável: por políticas expansionistas, ponto. Hoje enfrentamos um teste de estresse. Mas se explica a resistência à institucionalização da autonomia do Banco Central. É histórica, mas contou com a cumplicidade dos mercados para os quais essa é uma questão residual - até evidência em contrário.

Lourdes Sola, ph.D em Ciência Política pela Universidade de Oxford, professora aposentada da USP, é membro da Academia Brasileira de Ciências

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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