quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Em seu centenário, Nelson Cavaquinho é reverenciado em shows, CDs e livro



Luiz Fernando Vianna

RIO - As flores em vida que ele, em parceria com Guilherme de Brito, pediu no samba "Quando eu me chamar saudade" foram dadas - ainda que sempre haja quem diga que o reconhecimento não foi à altura. "Depois da vida", para citar uma de suas tantas músicas que falam de morte, as flores continuam a ser depositadas. Começou ontem uma série de homenagens a Nelson Cavaquinho em função de seu centenário, que se completa no próximo sábado.

A primeira é um debate ontem, às 20h, no Instituto Moreira Salles, com Sérgio Cabral, João Pimentel e José Novaes (autor de "Nelson Cavaquinho: luto e melancolia na MPB") mediados por Rosa Maria de Araújo.

- Vou manifestar um profundo remorso por uma maldade que cometi: arrumei um emprego para ele no "Jornal do Brasil" - adianta Sérgio Cabral. - Ele entregava o jornal do dia para os funcionários. Eu nunca o vi tão triste quanto naqueles dois ou três dias atrás do balcão. Depois, sumiu. Abandono de emprego.

A história reforça uma das características que Nelson Antônio da Silva manteve até a morte, em 18 de fevereiro de 1986: seu amor pelas ruas, pela boemia, pelas margens da vida, de onde extraía a matéria-prima de sua música.

- Nelson era um clochard brasileiro - resume Elton Medeiros, citando a palavra francesa para tipos como o Carlitos de Charlie Chaplin.

Amigo por três décadas, seu colega nas noites do Zicartola (1963 a 65) e no disco "Quatro grandes do samba" (1977), Elton participará na sexta-feira, às 18h30m, de um show da Velha Guarda da Mangueira em homenagem ao compositor, abrindo a série Som em 4 Tempos da Sala Funarte Sidney Miller.

- Eu o conheci depois de ele ser expulso da polícia (por atitudes como jogar baralho e beber fardado). Fazia parte do regional da zona do Mangue, com Cartola e outros, e eu ia vê-lo tocar. Ele gostava de cantar em rendez-vous, com aquele cheiro de álcool, todos os tipos de álcool.
Os serões nos botequins mais vagabundos não o impediam de ser altamente religioso, ainda que não gostasse de entrar em igreja. Rezava antes de comer e enquanto bebia, mesmo no meio de uma quadra de escola de samba "com uma cuíca roncando sobre sua cabeça", como lembra Elton.

- Ele tinha muita intimidade com Deus. Falava de Deus como de um amigo - lembra Carlinhos Vergueiro, que produziu o disco "Flores em vida" (1985), em que vários cantores interpretavam Nelson, e lança em novembro um CD todo dedicado à obra do sambista, com participações de Chico Buarque, Wilson das Neves, Cristina Buarque e Marcelinho Moreira.

É uma obra em que opostos se atraem: flor e espinho, festa e pranto, mocidade e cabelos brancos. Nada em Nelson é moderado, dos porres às paixões, da obsessão pela morte à compulsão pela vida.

- Ele falava da morte para falar da vida. Não queria morrer, não era um suicida. Gostava muito de viver - ressalta Carlinhos.

Por obra do acaso, o cantor redescobriu, para seu disco, um samba em parceria com Guilherme de Brito que só tivera uma esquecida gravação - de Ari Cordovil, em 1957 - e que Beth Carvalho também interpreta no CD que sairá em novembro. "Palavras malditas" é um Nelson típico: "Eu não perdoo a tua ingratidão/ No nosso coração/ Nem tudo é como se deseja/ Eu não errava quando te dizia/ A mão que acaricia é a mesma que apedreja".

- Nelson é o meu xodó maior. Passou até Natal na minha casa. Ele me deu "Folhas secas", e eu passei a gravar sempre as novas. Era até um incentivo para ele continuar compondo - lembra Beth.

Foi a cantora quem apresentou Moacyr Luz ao compositor, numa noite de 1984. Ao produzir dois CDs de Guilherme de Brito, ele se aproximou mais da obra, que interpretará na quinta-feira, no Instituto Moreira Salles, ao lado de Gabriel da Muda, e no sábado, no Espaço Cultural dos Correios, em projeto que também terá Claudia Telles na quinta e Jards Macalé na sexta.

- Passei a estudar as harmonias surpreendentes dele e, muito modestamente, seguir o mesmo caminho - diz Moacyr.

O conjunto Galo Preto acompanhou Nelson Sargento e Soraya Ravenle no CD "O dono das calçadas" em 2001, quando dos 90 anos de Nelson Cavaquinho. Afonso Machado, bandolinista e responsável pela maior parte dos arranjos do grupo, pretendia ter publicado naquela época sua pesquisa sobre o autor de "A flor e o espinho". Como não houve dinheiro, ficou para o centenário a homenagem, que será lançada pela ND Comunicação na quinta-feira, a partir das 19h, no Museu da República. O Galo Preto também lança um CD tocando a obra do compositor.

- Não tem a pretensão de ser uma biografia. É um painel da vida dele com histórias que muitas pessoas me contaram - diz Afonso.

Como as entrevistas são daquele momento (1999 a 2001), há depoimentos de Guilherme de Brito, Jair do Cavaquinho e João Nogueira, que morreram $tempo depois. O músico dividiu o livro em pequenos capítulos, registrando histórias famosos, como a do sonho que Nelson teve de que morreria às 3h da manhã, o que o levou a atrasar o relógio para impedir que a hora chegasse logo.

Ou aspectos menos conhecidos, como sua relação com o instrumento que lhe deu sobrenome artístico. Nelson tocou muito cavaquinho, compôs choros com ele - quase todos perdidos, sendo que Afonso localizou "Nair" na Biblioteca Nacional -, mas depois tornou-se exclusivo do violão, criando o estilo de tocar apenas com dois dedos da mão direita, o polegar para os bordões, o indicador para as primas.

Em novembro, as homenagens continuam no Festival Villa-Lobos: Zé Renato e Leandro Braga farão um show no dia 26, no Espaço Tom Jobim. E o filme de Leon Hirszman sobre ele será exibido no dia 15, no Instituto de Educação de Surdos.

FONTE: O GLOBO

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