sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Que herege era aquele Gramsci liberal*:: Massimo D’Alema**

Quando enfrentamos a grande crise do movimento comunista e a exigência de uma corajosa transformação, Gramsci foi um forte ponto de apoio: sua pesquisa original nos ajudou nos momentos mais difíceis e mais dramáticos de nossa luta. Ele nos permitiu ostentar no socialismo europeu o melhor patrimônio do maior Partido Comunista do ocidente, fez com que fôssemos recebidos como companheiros que, embora vindos de uma história difícil e dramática, tinham algo a trazer à casa comum: algo de original e de útil.

A nosso ver, Gramsci foi um grande pensador comunista herético, numa época em que qualquer desvio da ortodoxia soviética custava um preço dramático. Creio que a heresia de Gramsci no movimento comunista seja algo de muito mais radical no tocante à diversidade de avaliação e julgamento do curso que o movimento comunista assumiu a partir da década de 1930. Uma diversidade que, sob certos aspectos, coloca Gramsci numa dimensão própria, distinta tanto da experiência leninista quanto da experiência social-democrata, em aberta polêmica a respeito de alguns pontos que, no curso deste século, se tornarão comuns à cultura de uma e de outra. Em particular o conceito da função do Estado. Certamente não seria correto transportar a uma época anterior as escolhas e estratégias que a esquerda italiana realizou muitos anos mais tarde. Mas hoje podemos dizer que em Gramsci estavam os instrumentos para que algumas mudanças e certas rupturas pudessem acontecer até algum tempo antes. Tínhamos em casa um tesouro de pensamento, de idéias, de antecipações, que podia ajudar-nos a escolher e, se tivéssemos mais coragem, poderíamos ter escolhido antes.

A peculiaridade do Gramsci está naquilo que Mario Telo define como seu paradoxo. Um paradoxo dramaticamente vinculado mesmo a sua condição humana, àquela condição de isolamento do movimento coletivo e da luta política, durante o seu confinamento no cárcere de Turi. Sozinho em sua cela – enquanto, no inicio da década de 30, a Europa era dominada pelo advento dos grandes totalitarismos e por uma crise, vivida pelo movimento comunista como o anúncio do fim do capitalismo – Gramsci entende não apenas que essa interpretação da crise estava equivocada, mas também que estava surgindo uma nova sociedade e uma nova hegemonia – a do fordismo e do americanismo – E o destino da Europa teria sido o de entrar na esfera hegemônica da nova forma, expansiva, de capitalismo.

Em contraposição com todo o movimento comunista, não apenas nas suas correntes mais ortodoxas e estalinistas, mas também nas suas versões mais abertas, Gramsci lê a crise como o prelúdio de uma grande e extraordinária transformação em escala mundial.Ele está convicto de que a racionalização americana representará o horizonte de referência para o desenvolvimento histórico da Itália e da Europa. Isso tornou-se um ponto central da reflexão sobre a atualidade de Gramsci porque é um aspecto rico de sugestões, mesmo do ponto de vista humano, porque descreve o mundo moral de Gramsci e sua extraordinária capacidade de olhar além do seu tempo. Graças a essas suas qualidades, Gramsci consegue transmitir ainda hoje uma grande emoção.

Na análise de Gramsci, existe uma modernidade, uma capacidade de diálogo com nosso tempo que parecem verdadeiramente extraordinárias. O cosmopolitismo econômico, a grande transformação capitalista em escala mundial são vistas por Gramsci como o verdadeiro teatro – muito além do Estado nacional – no qual o movimento operário deve travar a “guerra de posições” e suas lutas pela hegemonia. Ao analisar a “grande transformação capitalistica”, Gramsci coloca-se ao lado da modernidade. Encara-a como um novo campo de possibilidades.

Hoje, um dos grandes problemas da esquerda é exatamente este: certa resistência diante da nova “grande transformação”. Vejamos o caso das concepções estatizantes e corporativas, tanto em nosso país como em outros grandes países europeus, em contraposição com a idéia liberal do Estado ligada à inovação. Gramsci não faz parte daquela esquerda impregnada de espírito conservador, em confronto com os que consideram a expansão das funções estatais como uma garantia de igualdade. (visão própria do comunismo e da democracia social, em formas políticas profundamente diversas, mas, do ponto de vista cultural, substancialmente semelhantes), ele se coloca numa perspectiva diferente.

Em Americanismo e Fordismo existem páginas de extraordinário interesse. A americanização – diz ele – exige um determinado ambiente, uma determinada estrutura social e um determinado tipo de Estado. O Estado é o Estado liberal, “não apenas no sentido do liberalismo aduaneiro e da efetiva liberdade política, mas no sentido mais fundamental da livre iniciativa e do individualismo econômico, que, com meios próprios, como sociedade civil”, pelo mesmo desenvolvimento histórico, chega ao regime da concentração industrial e do monopólio“. O desaparecimento do tipo semifeudal do rentista é, na Itália, uma das condições da revolução industrial, não uma conseqüência. Há – em Americanismo e Fordismo – um capítulo que considero sugestivo até por sua impressionante contemporaneidade, intitulado Ações, Obrigações e Títulos do Estado. Aqui Gramsci coloca o seguinte problema: ”Quando a poupança depende mais da garantia pública do que dos riscos do mercado, transforma-se em parasitismo e comprime o lucro industrial e o trabalho.” E é um comunista da década de 30 que escreve tais coisas!.

Gramsci encara o problema da penetração do Estado nas atividades industriais, destacando as vantagens disso – o Estado pode investir nos setores mais arriscados, com utilidades prorrogadas, portanto mais inovativas -, mas ao mesmo tempo, afirma que esse processo não está absolutamente isento de perigos, porque determina o agravamento dos regimes aduaneiros e das tendências autárquicas, que se opõem à globalização e induzem ao dumping, ao resgate das grandes empresas sob ameaça ou em perigo de falência – fenômenos todos que Gramsci condena. Referindo-se depois, a gusa de exemplo, a algumas características da Itália, Gramsci afirma: “Uma outra fonte de parasitismo absoluto sempre foi a administração do Estado e ainda hoje acontece que homens relativamente jovens, com ótima saúde, no pleno vigor das forças físicas e intelectuais, depois de 25 anos a serviço do Estado, não se dedicam mais à mesma atividade produtiva, mas vegetam com aposentadorias mais ou menos satisfatórias.” Essa forma de assistencialismo é considerada por Gramsci como um fato corruptivo. Do comunismo ele retirava o senso do processo histórico e do interesse coletivo, mas, por outro lado, estava ligado a uma cultura liberal e até liberalista, que exalta o indivíduo e sua função: o famoso “otimismo da vontade”, que encarava o profissionalismo, o trabalho, a capacidade de competir como valores positivos, como a moda de um progresso social. Nem estatismo, portanto, nem igualitarismo nivelador e parasitário.

Nós vivemos a época da crise do modelo fordista que Gramsci analisou no seu nascedouro, no momento em que assentava as bases de uma nova hegemonia. Ao mesmo tempo, vivemos numa época em que o processo de unificação do mundo parece caminhar também sobre a onda de uma nova grande revolução industrial técnica, científica, com um ritmo e uma força desconhecida no tempo de Gramsci. A globalização da economia dos mercados, da produção, a livre circulação dos capitais com os efeitos confusos que produz: a crise dos Estados nacionais e o prelúdio da tentativa de encontrar uma resposta para essa crise pelo surgimento de instituições regionais, supranacionais. Uma das mais importantes é a União Monetária Européia: a Europa unida com seus instrumentos.

Estamos imersos nessa fase histórica e diante de nós – antes de tudo, diante da esquerda – se coloca uma grande pergunta cultural: devemos ler também essa passagem histórica com as lentes de Gramsci? Se pensarmos essa grande mudança em termos dogmáticos, surge diante de nós uma situação sem saída: o fim do fordismo é o fim geral do socialismo, seja na forma do movimento comunista, seja na forma do Welfare e do reformismo nacional. É o advento de um pensamento único, de um liberalismo absoluto, alheio a qualquer ordenamento político. Essa visão é sustentada não apenas pelos profetas da nova direita, mas também, no campo da esquerda, existem aqueles segundo os quais o fim do fordismo assinala inexoravelmente o declínio da esquerda, de suas idéias, de seus valores e, conseqüentemente, não restaria outra opção senão a de resistir à transformação, tornando-se assim uma força conservadora, estacionária, destinada com o tempo a ceder diante das razões prepotentes da inovação e da modernidade.

Mas se, ao invés, lermos a “grande transformação” à maneira de Gramsci, com os instrumentos conceituais que ele nos deixou, veremos esta fase de mudanças como uma fase cujo desfecho está ligado à ação das forças históricas em campo. A palavra-chave é “cultura”. Em vez de defender de maneira rígida as velhas formas de proteção social ligadas ao Welfare State nacional, uma esquerda moderna deve pôr em discussão o problema de um Welfare, que tenha no centro a cultura, a formação, a educação permanente dos indivíduos: condições para que o processo inovativo não empurre as pessoas para as margens, mas ofereça-lhes a possibilidade de viver melhor e de realizar plenamente a própria personalidade. Creio que Gramsci nos ajuda a ler, usando essa chave interpretativa, as transformações do mundo de hoje e podemos entender por que nesse momento ele não é apenas uma glória nacional, mas um pensador sempre mais presente no processo de revisão da esquerda em escala mundial.

* Este artigo é um resumo, feito para o jornal “II Sole-24 Ore”, de um discurso pronunciado recentemente em Cagliari por Massimo D’Alema , secretário-geral do Partido Democrático de Esquerda (PDS)
** Massimo D’Alema, ex- secretário-geral do Partido Democrático de Esquerda (PDS), ex-Primeiro Ministro e atualmente vice-chefe de governo e Ministro das Relações Exteriores da Itália.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO, 30/8/1997

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