terça-feira, 4 de outubro de 2011

Soros e as vacilações da eurolândia :: Por Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo

Em artigo publicado no "Financial Times" de sexta-feira, 29 de setembro, George Soros recomenda que autoridades da eurolândia se entendam a respeito da criação do Tesouro Comum. Enquanto esse acordo não for celebrado, diz o financista, três providências devem ser tomadas: 1) os bancos seriam colocados sob a direção do Banco Central Europeu (BCE) em troca de garantias temporárias e permanente capitalização; 2) o BCE obrigaria os bancos a manter as linhas de crédito e os empréstimos existentes; 3) o BCE permitiria o refinanciamento temporário a baixo custo de países como Espanha e Itália. Soros conclui: "Essas medidas acalmariam os mercados e dariam tempo para a Europa desenvolver um estratégia de crescimento, sem a qual o problema da dívida não pode ser resolvido".

George Soros pensa o impensável, diz o que está interditado no debate sobre as causas e as curas da doença europeia. Ousa revelar o que deveria ser óbvio para qualquer cidadão medianamente informado: a crise da dívida soberana europeia é, sobretudo, uma crise grave do sistema bancário europeu, com reverberação nos bancos americanos.

No auge da crise de 2008, os bancos centrais da cúspide capitalista cumpriram seu dever e impediram que o crash financeiro degenerasse numa Grande Depressão. Tão logo o pânico deflagrado pela quebra do Lehman Brothers cedeu, saíram das sombras os estoques de dívida soberana acumulados na Europa durante o período de subavaliação dos riscos. Vitimas e protagonistas da farra financeira, os governos da eurolândia fecharam os olhos para a orgia de endividamento privado (depois público) promovida pelos (saltim)bancos da desregulamentação financeira. Estimulada e celebrada por muitos, a desregulamentação abriu caminho para a "invasão" do risco sistêmico nas engrenagens da finança capitalista.

Emergência da crise da dívida soberana exige uma intervenção não convencional das autoridades monetárias

Vou citar o insuspeito e temerário Alan Greenspan: "O risco sistêmico é quase exclusivamente um fenômeno das instituições financeiras. A inadimplência de grandes instituições pode desmantelar o sistema financeiro e com ele o resto da economia, devido às múltiplas e intrincadas relações entre a finança e a atividade econômica... Os riscos gerados por empresas não financeiras - independentemente de seu tamanho - ficam restritos aos seus credores, fornecedores e clientes. Raramente têm impacto mais amplo."

O sistema de crédito moderno tem a função de ampliar e antecipar no tempo a capacidade de investimento e de consumo das empresas, das famílias e dos governos. Ele opera como uma central privada de administração monetária e de alocação da riqueza líquida coletiva. Nessa função, os bancos (e, hoje, os demais intermediários financeiros que se abastecem nos mercados monetários) são provedores da rede informacional do mercado: definem as normas de acesso à liquidez, ao crédito e administram o sistema de pagamentos.

Gestores privados da forma geral da riqueza, os bancos, em princípio, deveriam regular o estado da liquidez e do crédito de acordo com a evolução dos balanços inter-relacionados de empresas, famílias, dos governos e das próprias instituições financeiras. Mas, a crise recente demonstrou que essa pretensão é irrealizável em um ambiente em que prevalecem a concorrência e a busca desaçaimada por resultados entre as instituições financeiras privadas. No período que antecedeu à crise - na esteira da integração global dos mercados financeiros - a "centralização privada" da moeda e do crédito nas instituições "grandes demais para falir" alastrou o processo competitivo de geração e distribuição de ativos com precificação enigmática em moedas distintas.

Quando a roda da fortuna girou em falso, com colapso de preços e ampla flutuação das moedas, foi inevitável o recurso à "centralização estatal", única forma de contornar a destruição do crédito e da moeda, ou seja, da rede informacional da economia monetária da produção. A ruptura nas articulações do sistema de provimento de liquidez, de gestão da riqueza e de pagamentos acarretou a quase paralisia do metabolismo econômico.

Os bancos centrais, portanto, estão condenados a cumprir a missão de reverter a deterioração generalizada dos balanços. Esses desequilíbrios financeiros e patrimoniais revelam-se ainda mais severos e difíceis de "digerir" na posteridade de um ciclo de crédito apoiado na valorização fictícia de ativos.

A emergência da crise da dívida soberana a partir do colapso do endividamento privado exige uma intervenção não convencional das autoridades monetárias. Só elas são capazes de ampliar os seus balanços para absorver o choque entre credores e devedores. Deixados à sua própria sorte, os bancos privados não podem explicitar a desvalorização que contamina seus ativos e os devedores não suportam a insistência dos "mercados" em manter o valor nominal das dívidas.

As recomendações de Soros serão certamente desqualificadas como radicais pelos tíbios e vacilantes. Mas, elas vão à raiz dos problemas que afligem a economia europeia. Na Europa, a encrenca é sistêmica: o crédito está travado porque os bancos desconfiam de tudo e de todos, inclusive deles mesmos. A rede de pagamentos e de provimento de liquidez formada pelo sistema bancário europeu está à beira da hecatombe. Esse colapso da confiança não pode ser superado sem a centralização das decisões na autoridade monetária encarregada de zelar pela higidez das relações interbancárias e, portanto, pela "normalidade" das operações de crédito. Na ausência de um programa de refinanciamento e de transferências confiável, a "saída" mais provável é o default desorganizado da Grécia, a derrocada do valor dos títulos soberanos e a insolvência de grandes instituições financeiras europeias - não só as gregas, portuguesas e espanholas - mas também francesas e alemãs.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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