segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Besserman: 'Não cabe ao comandante da PM o papel de árbitro'

Economista prega necessidade de integrar comunidades na tomada de decisões

Em entrevista ao GLOBO em agosto de 2007, o economista Sérgio Besserman, ex-presidente do Instituto Pereira Passos, alertou para a importância de o Estado restabelecer o monopólio da força nas favelas. Agora, ele celebra a recuperação de territórios, elogia a prisão do chefe do tráfico da Rocinha, Nem, com o uso de operações de inteligência, mas adverte que o exercício de poder nas comunidades não pode caber exclusivamente à PM:

- Cabe ao Estado criar conselhos comunitários de representantes locais. Seria um primeiro passo.

SÉRGIO BESSERMAN: retomar territórios tem "importância extraordinária"

Mauro Ventura

Como vê a operação na Rocinha? Em que uma UPP na favela se diferencia das demais?

SÉRGIO BESSERMAN: Em primeiro lugar, há um aspecto distinto já na própria operação policial. Desta vez, a forma de reduzir os custos de um ocupação incluiu operações de inteligência que capturassem os principais líderes anteriormente. O objetivo central era fazer o ocupação a um baixo custo de vidas, de sofrimento, de sustos.

Há outras diferenças?

BESSERMAN: O aspecto mais importante é que não estamos falando apenas da vida da comunidade, mas da cidade toda. A Rocinha tem uma dimensão simbólica por seu tamanho, sua história e sua localização, que encontrou uma contrapartida na forma como o poder criminal lá instalado desafiou o poder público. Para a história e o futuro do Rio, há ainda o valor intangível na captura do chefe do tráfico de lá, que é a sinalização de que as liberdades públicas fundamentais não podem ser ostensivamente desqualificadas e ameaçadas, seja por quem for. Não é aceitável que ele reúna os moradores e avise que todos os votos devem ser para o candidato tal, como noticiado pela imprensa. Que o desfecho da ocupação tenha incluído uma afirmação do Estado e da democracia sobre esses desafios lançados pelo poder criminal lá instalado é um ganho para a cidade.

E como avalia a libertação desses territórios?

BESSERMAN: Esse processo que se iniciou no Rio de priorizar a retomada dos territórios onde o Estado havia perdido o monopólio da força é de importância extraordinária, não só para o desenvolvimento econômico e social da cidade e do estado, como para a própria democracia brasileira. Um milhão de moradores vivia ou ainda vive sujeito a regras que não são as leis do estado de direito democrático. Eles estão fora da órbita da Constituição.

Como era anteriormente?

BESSERMAN: Havia um conformismo com o fato de nesses territórios o Estado não exercer o monopólio da força. Esse conformismo inevitavelmente vai corrompendo, degradando as normas de convivência democrática. Foi preciso coragem para assumir o foco correto de desestruturar o poder que existia antes. Quando, com as UPPs, o Estado assume esse foco de retomar o controle, não vai eliminar o crime. Os ilícitos, e ocasionalmente o tráfico, vão continuar existindo, da mesma forma como existem em Botafogo ou Copacabana. Mas ninguém mais vai andar armado pela rua, e o sujeito não vai mais exercer um poder exorbitante sobre as pessoas. Demos apenas o primeiro passo de uma longa caminhada, mas, na medida em que o Estado se faz presente, passa a ouvir as demandas sociais, culturais e políticas da comunidade. Gera-se uma interlocução. Quando o Estado retoma o controle, não pode mais recuar. Essa hipótese é politicamente impossível.

E qual é o próximo passo?

BESSERMAN: Para implantar a UPP, o Estado chega à comunidade via ocupação militar. É preciso que a PM entre na favela. Durante um certo tempo, o comandante está lá para desestruturar o poder anterior. Mas, assim como foi preciso uma ocupação militar para que as regras do estado de direito se afirmassem, seria um grande equívoco considerar essa situação como dentro da normalidade. Não cabe só à PM o exercício do poder. Se ela puser nas suas costas o peso do exercício de todo o poder de Estado, vai gerar muito espaço para desvirtuamentos. Vira o guarda da esquina decidindo sua vida. A ideia de que as liberdades democráticas se afirmarão dentro de uma comunidade exclusivamente por uma força militar não nos levará longe. Só construindo um outro poder, mais democrático, é que se volta à normalidade. A chave do problema é política.

E como se faz isso?

BESSERMAN: É preciso que as forças vivas da comunidade, apoiadas pelo Estado, iniciem um processo de construção institucional. É um passo necessário para que as UPPs não se desvirtuem. Cabe ao Estado criar conselhos comunitários de representantes locais, como o presidente da associação de moradores, as mães, líderes das igrejas, empresários e empreendedores. Seria um primeiro passo. O comandante da PM não vai se reportar ao conselho, mas vai interagir, prestar contas a ele. O judiciário também tem que estar presente, seja por juizados de pequenas causas, seja por juntas de conciliação. Não cabe ao comandante da PM exercer o papel de árbitro. É um desvio da democracia.

FONTE: O GLOBO

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