segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Entramos em uma nova era? :: Paul Kennedy

(The New York Times)

A queda no valor do dólar, a desintegração dos sonhos europeus, a corrida armamentista na Ásia e a paralisia da ONU são indicadores de mudanças

Pela definição do dicionário, divisor de águas é uma linha imaginária que separa rios diferentes. A expressão também pode ser usada para descrever um fenômeno histórico e político. Um marco, um momento transcendental, o instante em que as atividades e circunstâncias humanas atravessam a linha divisória que separa diferentes eras.

Quando isso ocorre, poucas pessoas percebem que entraram em um novo tempo. A não ser, é claro, que o mundo esteja saindo de uma guerra catastrófica, como as napoleônicas ou a 2ª. Guerra.

Transformações históricas tão bruscas não são o objeto desse artigo. O que nos interessa é o lento acúmulo de forças modificadoras, na maior parte invisíveis, quase sempre imprevisíveis, que cedo ou tarde acabam transformando uma época em uma outra bem distinta.

Ninguém que viveu em 1480 conseguia reconhecer o mundo de 1530, 50 anos depois. Um mundo de Estados-nação, da ruptura da cristandade, da expansão europeia para a Ásia e para as Américas, a revolução de Gutenberg no campo das comunicações. Talvez tenha sido a linha divisória da história mais importante de todos os tempos, pelo menos no Ocidente.

Existem outros exemplos, obviamente. Quem viveu na Grã-Bretanha em 1750, antes do uso da máquina a vapor se tornar comum, teria ficado estupefato ao ver o seu uso 50 anos depois, com a disseminação da Revolução Industrial.

E o que ocorre hoje? Muitos jornalistas e especialistas em tecnologia falam entusiasmados da atual revolução das telecomunicações - celulares, iPads e outros aparelhos - e de suas consequências para os Estados e povos, para as autoridades tradicionais e para novos movimentos de libertação. Há provas evidentes, por exemplo, na primavera árabe, em todo o Oriente Médio e também no movimento Ocupe Wall Street.

Seria o caso de questionar se alguns dos profetas das altas tecnologias, que proclamam uma nova era na política internacional, algum dia se preocuparam em estudar as repercussões da imprensa de Gutenberg ou as conversas radiofônicas de Franklin Roosevelt, que eram ouvidas por milhões de americanos nos anos 30 e no início dos anos 40.

Cada período fica fascinado por suas próprias revoluções tecnológicas, de modo que vou me concentrar em algo bastante distinto: os indicadores que assinalam que estamos nos aproximando - ou talvez já tenhamos cruzado - algumas linhas divisórias históricas no difícil mundo da economia e da política.

O primeiro indicador é a corrosão constante do dólar americano, como divisa de reserva única ou dominante no mundo. Ficaram para trás os tempos em que 85% ou mais das reservas internacionais eram moeda americana. As estatísticas flutuam enormemente, mas hoje o porcentual atual se aproxima dos 60%.

Apesar dos problemas econômicos da Europa e também da China, já não é mais uma fantasia imaginar um mundo em que existam três grandes divisas de reserva: o dólar, o euro e o yuan, com algumas alternativas menores, como a libra esterlina, o franco suíço e o iene japonês.

A ideia de que as pessoas seguirão procurando "refúgio" no dólar não se sustenta, ao ver que os EUA estão cada vez mais endividados com seus credores estrangeiros. A questão é a seguinte: um mundo com diferentes divisas de reserva proporcionará uma maior ou menor estabilidade financeira?

União Europeia. A segunda transformação é a corrosão e a paralisia do projeto europeu, ou seja, do sonho de Jean Monnet e de Robert Schuman de que os heterogêneos Estados da Europa passariam por um sólido processo de integração comercial e fiscal, primeiro, e depois, por meio de uma série de compromissos sérios e irreversíveis, trabalhar para um continente politicamente unido.

As instituições encarregadas de tornar o sonho realidade - o Parlamento Europeu, a Comissão e o Tribunal de Justiça da Europa - já existem, mas a vontade política de conferir-lhes uma existência autêntica desapareceu, tristemente debilitada pelo simples fato de que políticas fiscais nacionais muito diferentes são incompatíveis com a moeda europeia comum.

Em poucas palavras, Alemanha e Grécia, com seus respectivos históricos orçamentários, não podem ingressar juntas em um eventual bloco dos Estados Unidos da Europa. Entretanto, ninguém parece ter uma resposta para essa dicotomia, salvo para encher as fendas com mais eurobonds e empréstimos do Fundo Monetário Internacional.

Ou seja, os europeus não têm tempo, energia nem recursos para se dedicarem a nada que não sejam seus próprios problemas. Isso significa que existem poucos observadores no continente que tenham estudado o que poderia ser considerada a terceira grande transformação dos dias de hoje: a enorme corrida armamentista que está se desenrolando na maior parte do Leste e do Sul da Ásia.

Avanço bélico. Enquanto os Exércitos europeus estão se tornando uma espécie de polícias locais, os governos asiáticos estão construindo verdadeiras armadas para navegar em águas profundas e investindo em novas bases militares, adquirindo aviões cada vez mais avançados e testando mísseis de alcance cada vez maior.

Os escassos debates que ocorrem tratam principalmente do aumento das forças militares da China, mas ignoram o fato de que o Japão, a Coreia do Sul, a Indonésia, a Índia e até mesmo a Austrália estão seguindo o exemplo chinês.

Se a desaceleração do crescimento econômico, os danos ao meio ambiente e o desgaste do tecido social na China impelem seus futuros dirigentes a fazer demonstrações de força no exterior - por enquanto, na verdade, seus líderes se mostram muito cautelosos -, seus vizinhos estão se preparando para responder com firmeza.

Alguém em Bruxelas sabe - ou se preocupa em saber - que os 500 anos de história que representam o mundo de 1500 estão prestes a se acabar? Nesse cenário, a Ásia se dispõe a dar um passo à frente, enquanto a Europa se torna um coro distante. Esse fenômeno não será considerado, para os historiadores futuros, outra linha divisória de imensa importância no contexto internacional?

Inatividade da ONU. A quarta mudança é, desgraçadamente, a lenta, firme e crescente decrepitude da ONU, particularmente de seu órgão mais importante, o Conselho de Segurança. A Carta da ONU foi redigida com extremo cuidado para ajudar os países a terem paz e prosperidade depois dos terríveis males da 2ª. Guerra.

A Carta da ONU, porém, era um risco calculado: ao reconhecer que as grandes potências de 1945 tinham direito a desempenhar um papel desproporcional (como o veto e a cadeira permanente no Conselho), os redatores, entretanto, confiavam que os cinco governos soubessem trabalhar juntos para tornar realidade os elevados ideais da instituição mundial. A Guerra Fria acabou com as esperanças e a queda da União Soviética as reviveu, mas agora estão voltando a desaparecer pelo cínico abuso do poder de veto.

Quando a China e a Rússia vetam qualquer medida para impedir que o repugnante regime sírio do presidente Bashar Assad continue matando seus próprios cidadãos e quando os EUA vetam qualquer resolução para deter o avanço de Israel em terras palestinas, a ONU perde sua razão de ser. E dá a impressão de que Moscou, Pequim e Washington acham isso certo.

Vimos a queda do valor do dólar, a desintegração dos sonhos europeus, a corrida armamentista na Ásia e a paralisia do Conselho de segurança da ONU cada vez que há uma ameaça de veto. Será que essas coisas não indicariam que estamos penetrando em território desconhecido, em um mundo agitado? Que, se comparada a ele, a visível alegria dos consumidores que saem de uma loja da Apple com um aparelho novo parece boba e sem importância?

É como se estivéssemos novamente em 1500, saindo da Idade Média para o mundo moderno, quando as multidões se maravilhavam diante de um arco novo, maior e mais poderoso. Não deveríamos levar o nosso mundo um pouco mais a sério?

Paul Kennedy é professor de História e Diretor de Estudos de Segurança Internacional na Universidade Yale.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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