quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Razão, religião e democracia:: Rubem Barboza Filho *

Ao encerrar a introdução a uma nova edição de seu Habits of the Heart, e lamentando o espírito que atormentava os Estados Unidos na era Bush, Robert Bellah escrevia:

Under the conditions of today’s America, we are tempted to ignore Winthrop’s advice, to forget our obligations of solidarity and community, to harden our hearts and look out only for ourselves. In the Hebrew Scriptures God spoke to the children of Israel through the prophet Ezekiel, saying, “I will take out of your flesh the heart of stone and give you a heart of flesh” Ez. 36:26). Can we pray that God do the same for us in America today?

Duvido muito que um cientista social brasileiro seja capaz de se cobrir com as vestes de um profeta para um apelo ao sentimento religioso da sociedade, mesmo com o objetivo de fortalecer nossa democracia. O agnosticismo é uma das marcas de nossa academia, do mesmo modo que a desconfiança em relação ao papel cumprido pela religião em nossa história. Mas antes de discutir o que se passa nestes nossos trópicos, gostaria de explorar, rapidamente, alguns pressupostos que poderiam justificar esta interpelação de Bellah à religião dos norte-americanos, e a sua esperança de encontrar nela um antídoto à era Bush. Imaginemos que ele esteja a mobilizar a religiosidade da sociedade a partir da idéia do overlaping consensus do Liberalismo Político de John Rawls, ou do procedimentalismo habermasiano, com a finalidade de conferir maior densidade à vida democrática norte-americana. Nesta perspectiva neokantiana – ou póskantiana -, a democracia consistiria fundamentalmente em procedimentos para a formação discursiva de vontades e opiniões livres, adotados por cidadãos definidos como seres morais e racionais (ou razoáveis). Ela estaria desprendida de concepções fortes a respeito de um bem, ou seja, estaria desatada de quaisquer configurações éticas e atrelada à aposta ou numa razão moral universal ou na razoabilidade de seres morais concebidos de um ponto de vista universal. Seus procedimentos garantiriam a todos o uso público da razão, em um diálogo cujo resultado seria a elaboração de uma Constituição como o modo legítimo de normatização da sociedade.

A teoria procedimentalista, ou o Liberalismo Político, se vê como o fruto de um aprendizado ontogenético das sociedades pós-tradicionais e pós-seculares, aprendizado que teria engendrado seus próprios fundamentos e sua própria legitimação. No entanto, dado o seu escopo, ela não pode exigir que os participantes da sociedade não estejam comprometidos com concepções morais abrangentes e fortes, de qualquer natureza.

Assim, admite e estimula o fato do pluralismo, mas endereça a estas configurações uma exigência: a de que sejam “razoáveis”, ou seja, que moderem suas ambições éticas para o fortalecimento do próprio pluralismo e dos procedimentos para a formação da vontade livre de cidadãos. Desse modo, as crenças e concepções morais e pré-políticas “razoáveis” seriam ou aceitas ou convocadas como fundamentos culturais externos, adicionais e bem vindos à democracia, dela participando ativamente. Em princípio, seria com esta perspectiva que Habermas participou do conhecido diálogo com Ratzinger.

Bellah poderia estar mirando precisamente o overlaping consensus rawlsiano ao dirigir-se à religiosidade da sociedade norte-americana para a reativação da democracia, tendo em vista o estrago produzido pelos interesses que passaram a ocupar e dirigir a Casa Branca com o bushismo. Contudo, esta não parece ser a real motivação de Bellah, como também não parece ser a posição de Ratzinger no debate já mencionado.

Robert Bellah é dos mais argutos estudiosos do que Tocqueville chamou de “religião civil” dos Estados Unidos, e acaba se reconhecendo como um “comunitarista”, por oposição às teorias procedimentais da democracia. Na angulação do comunitarismo, a democracia não se reduz a um módulo racional e quase abstrato da sociedade, a uma espécie de estação orbital cujo movimento é determinado por seus próprios instrumentos formais e racionais.

Ao contrário, ela só existe como expressão concreta de uma tradição ética e histórica baseada em valores de liberdade, de solidariedade, de tolerância, de vida em comum. Longe de se abastecer instrumentalmente de configurações “pré-políticas”, a democracia seria a expressão política de uma configuração de valores éticos entranhados na experiência de um povo. De fato, Bellah não postula uma atividade reformista e racionalista, de caráter institucional, como resposta à era Bush, mas dirige seu apelo a um povo contaminado por uma desregrada linguagem dos interesses. O que lhe interessa é a re-conversão de um povo aos seus valores originais e identitários – originados do protestantismo e depois laicizados -, sem os quais a democracia se transforma num mero jogo entre interesses e gangues. Por isso anima-se a dar um passo além da condição de cientista, assumindo, ainda que fugazmente, a identidade de um profeta que se vale do imaginário bíblico e religioso que habitaria o fundo da experiência norte-americana.

Na verdade, esta aparente oposição entre comunitaristas e procedimentalistas foi ultimamente suavizada no que se refere às relações entre democracia e religião. Após os atentados de 11 de setembro, dos graves problemas decorrentes da reação européia à migração, sobretudo islâmica, e dos efeitos do processo de globalização, a diferença entre as duas angulações parece ter sido substituída pela percepção do mundo contemporâneo, sobretudo o ocidental, como um mundo pós-secular. Nesta sociedade pós-secular e pós-metafísica, que deixou seus gritos de guerra contra a religião, a razão ocidental seria – ou deveria ser - mais sensível à dinâmica das religiões, dizem os procedimentalistas e humanistas como Habermas. Há algo além ou fora da razão que não pode ser simplesmente descartado, e que deve ser reconhecido como fonte de aprendizado para a vida em comum, para uma democracia verdadeiramente pluralista.

Este movimento, de certa forma, altera a imaginação a respeito do overlaping consensus, estabelecendo uma certa equivalência funcional entre culturas religiosas e procedimentos racionais. Não por acaso Charles Taylor, reconhecido como um dos papas do comunitarismo, já pode lançar mão do mesmo conceito, como faz numa entrevista concedida ao The Utopians, aproximando, não necessariamente os pressupostos teóricos, mas a imaginação prática de comunitaristas e procedimentalistas no que se refere às relações entre fé, razão e democracia. Razão, racionalidade, fé e religião podem ser apreendidas como jogos de linguagem, e não haveria nenhuma razão metafísica para a superioridade de um sobre o outro, apenas a história concreta, as circunstâncias históricas das relações que se estabeleceram e restabeleceram continuamente na narrativa ocidental.

Uma razão bem compreendida, um reino do simbólico que se volta sobre mesmo examinando-se, para usar os termos de Lacan, é substantivamente ou praticamente relativista no plano das configurações éticas ou morais. Por isso passa a depositar sua força e concentrar as expectativas práticas e utópicas do Ocidente nos procedimentos, a exemplo do próprio Habermas, em discordância com Weber. Esta percepção enquadra a dimensão da política como um módulo da sociedade, de acordo com Rawls, destinado à formação livre das vontades de sujeitos morais. Um módulo a conviver com outros, como os subsistemas autopoiéticos do dinheiro e do poder na perspectiva habermasiana, ou com configurações morais e éticas abrangentes. É por esta fresta, concedida pela reflexão da razão sobre si mesma, que se insinua um discurso católico e crítico sobre a modernidade, ou sobre a razão ocidental e moderna, tornando ainda mais complexo o tema das relações entre razão – e seus frutos mais vistosos, como o procedimentalismo ou uma ciência indiferente ao sentido – e religião no Ocidente, com conseqüências globais. A intervenção de Ratzinger no debate com Habermas é exemplar desta complexidade adquirida pelo tema.

Ratzinger mostra-se disposto a aceitar Habermas como o representante da razão ocidental – e de uma vertente humanista e democrática da razão - apresentando-se como o emissário da religião ocidental por excelência, o catolicismo ou o cristianismo de forma geral. Numa leitura superficial, o itinerário seguido por Ratzinger não parece trazer novidades. Destaca a origem comum do cristianismo e da razão ocidental, reconhece a fratura histórica entre ambos e não se furta a denunciar as patologias tanto da razão quanto da religião, construindo assim o ambiente para um debate pós-secular entre razão e religião interessado na construção de modelos de vida boa. E encerra a sua participação lembrando a necessidade de um diálogo intercultural e mundial entre experiências distintas como a chinesa, a indiana, a africana, a dos ameríndios e a ocidental européia. Ratzinger era um cardeal – agora é Papa -, e os cardeais aprenderam muito com os demônios em dois mil anos de história. E talvez por isso devamos rasgar a elegância diplomática de sua intervenção para capturar uma torção que tenta jogar a razão para um canto do tablado. Para ele, cristianismo e “razão” são produtos do Ocidente. Mas nesse diálogo intercultural necessário e urgente, a razão ocidental será uma convidada discreta, sem o protagonismo que ambiciona obter. Esta conversa entre culturas variadas, representadas pelas religiões, só terá êxito, afirma Ratzinger, se recuperarmos “as normas e valores essenciais de alguma forma conhecidos ou pressentidos por todos os homens”. Sem dúvida isso deve ser lido como uma defesa dos direitos humanos, mas é mais do que isso: é uma inflexão que a razão ocidental não pode acompanhar totalmente e que o catolicismo pode reclamar confortavelmente: a afirmação de uma natureza comum a todos os homens, pedra de toque das grandes religiões mundiais. Natureza concebida de forma substantiva, eticamente enraizada, e de onde nasceriam os direitos, imaginação distante da natureza formal dos sujeitos morais esculpidos pela lâmina universalista da razão ocidental. A humanidade não se fará, parece dizer Ratzinger, a não ser pelo reconhecimento mútuo destas configurações éticas do viver, pela “purificação” das religiões e da própria razão, termo de óbvias conotações religiosas.

O que um cardeal poderia dizer a não ser isto, perguntará o leitor inteligente. Lembremos dos demônios como professores excepcionais (Descartes reconhecia isso) que, com sua mera presença, obrigavam os cardeais a uma incessante hermenêutica do mundo. Hermenêutica que agora parece flagrar uma fenda no mundo autônomo e totalizante da razão. Digamos que depois de quatro séculos de luta contra a religião, as patologias da razão, o seu relativismo ético – presente inclusive no comunitarismo – e/ou o seu procedimentalismo abstrato tenham restituído ao catolicismo a condição para a reposição de uma questão milenar que é, afinal, a mesma das religiões e da razão: qual o sentido de viver e morrer? Ironicamente, o exercício sobre si mesma fez com que a razão devolvesse ao catolicismo, e às outras religiões, um território que parecia ter sido perdido quatro séculos atrás: aquele do sentido para o existir humano. A veemência obtusa e histérica de Richard Dawkins não é a resposta adequada a esta reviravolta inesperada, como mostra Terry Eagleton.

Na verdade, a hermenêutica feita por Ratzinger parece congruente com a reflexão de alguns acadêmicos confessadamente católicos, mesmo que não manifestem muita admiração pelo Papa. São estes autores, sem atribuir a eles nenhuma responsabilidade direta pelo pensamento de Ratzinger, que gostaria de explorar, ainda
que rapidamente. Refiro-me a Alasdair MacIntire, com o seu Depois da Virtude, e a Charles Taylor, em A Secular Age. Os dois organizam uma polêmica hermenêutica do mundo moderno a partir do catolicismo, entendido como uma perspectiva generosa do mundo, sem a tentação de justificá-lo como a religião verdadeira. Esse ponto é interessantíssimo, pois envolve uma mistura de crença com a consciência de que, tanto as religiões quanto a razão são invenções humanas para responder à questão do significado da vida. Ou seja, jogos de linguagem. O que leva à indagação de qual é a melhor invenção e de como explicar a fé.

Em Depois da virtude, MacIntire não faz uma defesa explícita da religião em geral ou do catolicismo em particular. Mas é a estrutura de seu argumento é que nos interessa aqui. Para ele, o ocidente tornou-se, a partir do início da modernidade, incapaz de produzir juízos morais, entregando-se ao “emotivismo” como se estivesse construindo as bases para a liberdade humana. O emotivismo é uma doutrina para a qual todos os juízos normativos, incluindo os juízos morais, não passam de expressões de preferência, expressões emocionais ou afetivas, na medida em que são de caráter moral ou normativo. Todas as variadas doutrinas emotivistas reconhecem a impossibilidade de padrões morais objetivos, o que acaba por significar a inexistência de justificativas finais para a ação moral. Resulta disso o caráter interminável, arbitrário e fracassado do debate moral ocidental e moderno, que se alimenta na verdade de fragmentos esparsos herdados de uma visão anterior, que tem no aristotelismo a sua formulação paradigmática. A ética aristotélica é teleológica e funcional, afirma MacIntyre. Ela supõe, em primeiro lugar, uma diferença entre o homem tal como ele é e o homem como poderia ser se descobrisse a sua natureza essencial e o seu télos. A ética quer, precisamente, capacitar o homem para esta transição, educando nossos desejos e emoções através de uma razão prática para uma vida virtuosa. Este esquema é aumentado com as crenças teístas, cristãs como as de Tomás de Aquino, judaicas como as de Maimônides, islâmicas como as Ibn Roschd. Por outro lado, além de teleológica, a ética aristotélica seria funcional, e nasce da pergunta sobre o que o bem para o homem, concebido apenas no interior de uma trama de relações que constituem a comunidade.

Para Aristóteles, explica MacIntyre, o bem é a eudamonia, cuja difícil tradução pode ser feita como o estado de estar bem e de fazer o bem ao estar bem. As virtudes seriam as qualidades que permitiriam aos homens alcançar este bem, mas não podem ser encaradas como um meio. O que constitui o bem para os homens é uma vida completa, vivida da melhor forma possível, e o exercício das virtudes é uma parte necessária e fundamental dessa vida, não se reduzindo a um exercício preparatório para a obtenção da felicidade. Por outro lado, agir virtuosamente não é agir contra nossas inclinações: é agir com base na inclinação formada pelo cultivo das virtudes. O que é bom, portanto, exige a capacidade de discernimento, própria da razão prática, para além da mera obediência às normas e ao direito, cuja existência necessária não cobra a sua separação do reino da moralidade. Assim, uma concepção do bem, e do homem voltado para o bem, na sua função social específica, ofereceria à ética aristotélica a condição de se pronunciar substantivamente sobre um ato ou vontade humana do mesmo modo que uma proposição factual, organizando um ponto de vista objetivo sobre nossas ações morais.

Ao afastar o aristotelismo de seu horizonte, pela adoção das variadas versões do emotivismo e suas seqüelas burocráticas e individualistas, o Ocidente sofreu uma enorme perda. Tornou-se weberiano, atravessado pelo “politeísmo de valores”, dependurado em normas pretensamente morais, como o imperativo kantiano, ou em um sistema jurídico-formal, e com o fantasma de Nietzsche a assombrá-lo. E elegeu suas máscaras: a do esteta rico – à la Simmel -, a do terapeuta e a do administrador (entre os quais se situam os economistas e os sociólogos). Nenhum destes personagens é capaz de realizar um debate moral. Os conflitos, sejam entre indivíduos ou interiores a ele, são sempre uma confrontação entre uma arbitrariedade contingente e outra, e esta perda da capacidade de discriminação moral foi, equivocadamente, celebrada como progresso e acréscimo de liberdade. Ao alcançar a soberania em seu próprio domínio, o indivíduo perdeu seus limites tradicionais proporcionados por uma identidade social e uma visão da vida humana marcada por um fim determinado, teísta ou não. Diante desse diagnóstico, cabe a pergunta: podemos ainda conceber a vida humana como uma unidade, as virtudes como capacitadoras para um fim? MacIntire acredita que sim, pela restauração do aristotelismo em formas locais de comunidade, ao modo das cidades italianas da Renascença. Mas avisa que isto é uma espécie de fé.

Não tenho a intenção de fazer justiça a MacIntyre e ao seu livro. Meu interesse é o de ressaltar a estrutura de seu argumento, que tenta capturar o emotivismo moderno jogando-o contra mais de um milênio de história e contra um fundo comum às religiões e culturas próprias ou mais próximas do ocidente. E, de certo modo, descrevendo-o como um processo contingente, não necessário, como um acidente no interior de toda a história da humanidade, que nos obriga no presente a retornar a uma fonte esquecida de significado. Coerentemente, isto só poderia ter sucesso pela negação das estruturas burocráticas modernas, do individualismo que lhes é afim, em comunidades locais que restituam aos homens a condição de seres sociais, mesmo em meio a um processo de globalização. Embora a solução de MacIntyre não seja a mesma de Ratzinger, a estrutura do argumento é semelhante, na medida em que implica em mobilizar um ponto de partida anterior para a hipótese da modernidade como uma perda. Este projeto de investigação ressurge ampliado e balanceado em Charles Taylor, com o seu A Secular Age. Se não tive a intenção de fazer justiça a MacIntyre, o mesmo digo, e com mais razão, em relação a Taylor. Um crítico já assinalou que, com cerca de oitocentas páginas, A Secular Age parece um mapa do mundo do tamanho do mundo. Daí a dificuldade de sintetizá-lo.

A questão básica que Taylor se coloca é a seguinte: “The change I want to define and trace is one which takes us from a society in which it was virtually impossible not to believe in God, to one in which faith, even for the staunchest believer, is one human possibility among others”. Taylor recusa as teorias tradicionais da secularização, com origens weberianas, que acabam por supor a existência, no Ocidente, de um processo retilíneo e crescente de desencantamento do mundo e racionalização da vida, libertando as várias dimensões públicas da vida social do império das religiões. Como se a parte norte do Ocidente estivesse sofrendo um contínuo processo de amadurecimento, livrando-se das crendices do passado, iluminada pela razão e seus frutos. Além de insuficiente, esta versão do processo seria apenas uma das três possíveis encontradas por Taylor. Vinculada à primeira, a segunda estaria fundada na hipótese da diminuição progressiva dos crentes, mesmo em sociedades que mantivessem vestígios de referência pública a Deus. E, finalmente, a terceira e mais complexa, com a atenção voltada para as condições das crenças, tenta desvendar o caminho histórico seguido pelo Ocidente para a passagem de uma sociedade em que a crença em Deus não era ou não podia ser desafiada para uma sociedade em que esta é apenas uma opção entre outras, e não a mais fácil de abraçar. Esta última é a perspectiva com a qual trabalha para um cuidadoso olhar sobre os cinco últimos séculos vividos pelo norte do Ocidente. As duas primeiras perspectivas seriam extremamente restritas e duvidosas, para ele. Em primeiro lugar, porque o desenvolvimento da ciência no ocidente, pelo menos nos três primeiros séculos da modernidade, não resultou na incompatibilidade com a crença em Deus.

Mais ainda, como no Deísmo, derivou precisamente da crença em Deus. Por outro lado, o número de crentes pode ter diminuído se consideradas as vertentes católica e protestante, mas nada indica que o número de pessoas com – ou em busca de - experiências religiosas, dos mais variados tipos, tenha diminuído no Ocidente. E aqui entramos no cerne de sua visão panorâmica e detalhada do caminho percorrido pelo Ocidente. Tentando desesperadamente resumir a sua perspectiva, a secularização não pode ser entendida como uma marcha progressiva e sagital. Ao contrário, ela é feita por rupturas e novos recomeços. Como bom hegeliano, Taylor está atento ao caráter dialético e, de certo modo ascendente, da secularização. Os antecedentes deste processo podem ser encontrados ainda na Idade Média, na atuação de elites – religiosas ou não – interessadas numa crescente individuação da fé, em detrimento das formas rituais e públicas da religiosidade do cristianismo. Este movimento adquire uma força contagiante na Reforma Protestante, escapando de seus limites elitistas. A Reforma Protestante constitui, para Taylor, um passo decisivo para a criação do que ele chama de “humanismo exclusivo”, próprio da secularização, que propicia o aparecimento do Deísmo, da ética da benevolência e da concepção da sociedade como uma ordem impessoal. A base antropológica deste caminho seria a construção de um buffered self, por oposição ao self poroso do cristianismo medieval, aberto à experiência do transcendente. Mas esta sociedade da impessoalidade, da rotina, do homem comum e da vida comum, logo provoca a reação crítica em nome da “plenitude” da vida, como no Romantismo, ou no tipo de pensamento de Nietzsche, em busca de algo heróico diante da ausência de sentido substancial para a vida. Este tipo de reação não necessita do transcendente, desdobrando-se no interior do “immanent frame” constitutivo da secularização. A estrutura do argumento de Taylor repete a dinâmica percebida por Norbert Elias, que vê o processo civilizatório ocidental como a disseminação de comportamentos e práticas adotados inicialmente por elites ou aristocracias. Os efeitos “Nova” – termo retirado da Física – e “Super-Nova” ocorrem precisamente quando, no interior do “immanent frame”, multiplicam-se as possibilidades competitivas de concepções de vida boa entre as elites e altera-se decisivamente o “imaginário social” da população européia, em especial no século XIX.

E nesse momento se materializa com clareza o que ele chama de secularização um – o avanço da ciência e da técnica sobre as crenças teístas tradicionais, uma nova concepção do tempo e do espaço – e a secularização dois, a diminuição do número de crentes e a generalização de uma atitude, ou de incredulidade ou de indiferença religiosa. O desenvolvimento deste “immanent frame” muda inteiramente as condições para os crentes. Se no mundo medieval prevalecia uma crença naif em Deus, agora as circunstâncias da secularização a reclamam como uma crença reflexiva, como uma opção entre outras de plenitude. Reflexividade que também aumenta as possibilidades de experiência, ou do transcendente ou de um sentido além da vida, tornando mais complexa e variada a vida religiosa dos europeus e norte-americanos. A “era das mobilizações” e a “era da autenticidade” ampliam as possibilidades nos dois campos, dos crentes e não crentes, acentua Taylor, tratando dos tempos mais recentes. E com referência ao campo religioso, assinala novas alternativas que parecem se despedir daquilo que conhecemos como história cristã e ocidental.

Este pálido resumo do complexo panorama desenhado por Taylor é suficiente, no momento e para os propósitos deste texto. Mas algumas observações merecem ser feitas. Taylor não deseja tratar a crença e a descrença como perspectivas competidoras, envolvidas num jogo de soma-zero, mas como diferentes formas de entender a vida e de diferentes formas de responder às nossas perguntas e desafios práticos. Assim, o panorama atual do norte do Ocidente seria composto por esta pluralidade interna dos dois campos – dos crentes e não-crentes – e atravessado por pressões cruzadas e dilemas nascidos de questões como o aborto, a eutanásia, a clonagem humana, a exploração de embriões, que afetam as pessoas tanto quanto o casamento entre homossexuais, a proximidade de outras culturas trazidas pela migração e assim por diante. Pluralidade e dilemas que tendem a enfraquecer a força de todas as opções. Taylor sem dúvida reconhece os ganhos da história moderna do Ocidente, como os direitos humanos, o respeito maior à pessoa, a capacidade técnica e científica de controle da natureza, o desenvolvimento material, e não demonstra nenhuma tolerância para com as atitudes reacionárias do Catolicismo, a exemplo daquelas de Pio IX. Mas, ao final, mesmo com esta percepção balanceada dos ganhos e perdas do Ocidente, não hesita em retomar o ponto de MacIntyre: tudo isso foi um grande “desvio” de um ponto original, uma torção histórica que opôs razão e fé de forma contingente e desnecessária. O retorno a esta origem não equivale, para Taylor, a uma volta ao mundo medieval, mas à noção de ágape, ou seja, o amor de Deus por cada um de nós e que podemos compartilhar com os outros. De um ponto de vista prático, isso pode parecer frustrante. Na entrevista a The Utopians, Taylor é mais claro. Retoma a idéia de “ecumenismo” do Vaticano II para a convivência de culturas e religiões – tema a respeito do qual o Papa não sabe o que dizer, acrescenta – e sugere que, diante deste panorama de pluralidade, a esquerda ocidental deveria se orientar pelo fortalecimento do republicanismo, reativando a experiência do humanismo cívico, ponto que o aproxima mais uma vez de MacIntyre.

O livro de Taylor é uma fundamentação exaustiva de um pensamento póssecular. Mas feito de um ponto de vista católico, não-protestante e não-weberiano. O protestantismo representa um afastamento da origem que Taylor quer recuperar, um passo do grande “desvio” moderno e ocidental, e a sociologia de tipo weberiana – em especial a sua versão da secularização – é a manifestação mais clara de uma teoria unthought, ou seja, uma teoria na qual a imaginação teorética é determinada por um determinado esquema de crenças e valores de um investigador subsumido ao immanent frame. Estas duas fontes reflexivas não teriam a mesma capacidade de produzir uma percepção genealógica – mas não foucaultiana e simplesmente desmistificadora – da complexa narrativa do Ocidente moderno, precisamente por se constituírem em episódios e manifestações do processo de secularização. O Catolicismo, obviamente não na sua forma institucional e canônica, seria capaz de propiciar este ponto de vista mais universalista para uma avaliação do Ocidente moderno, dado seu parentesco com as outras religiões mundiais, antigas ou não, dadas a sua anterioridade e relativa externalidade à secularização, e porque hoje dispõe de um aparato também racional – sem abrir mão da fé e da teologia do amor – para um diagnóstico do Ocidente.

Surpreendentemente, o apoio a este tipo de vertente reflexiva católica vem de um marxista, Terry Eagleton, que, por razões biográficas e/ou teórico-práticas, celebra a afinidade entre a teologia fundante do Cristianismo e as aspirações de Marx e de um socialismo mais aberto. Na verdade, a preocupação de Eagleton é a de contrabalançar os efeitos do ceticismo pós-modernista, encontrando nos aspectos revolucionários originais do cristianismo e do marxismo um meio de reconstruir uma ética transformadora.

Em O debate sobre Deus, Eagleton investe contra o exército dos Novos Ateus, representados por Richard Dawkins e Christopher Hitchens. O curto prefácio com que inicia seu livro já é absolutamente revelador. É tão verdade que a religião tem provocado um terrível sofrimento à humanidade – afirmação com a qual ele concorda - quanto a redução das escrituras judaicas e cristãs a uma caricatura, de forma especial o Novo Testamento. Contra esta indolência intelectual, Eagleton não convida ninguém a tornar-se um crente ou a conhecer melhor um oponente, mas a descobrir, no cristianismo, os “... insights valiosos quanto à emancipação humana, numa época em que a esquerda política carece seriamente de boas idéias... Se tento “ventriloquizar” o que considero uma versão do evangelho cristão importante para radicais e humanistas, não desejo ser confundido com um idiota. Mas as escrituras judaicas e cristãs têm muito a dizer sobre algumas questões vitais – morte, sofrimento, amor, autodespojamento e congêneres – a respeito das quais a esquerda, boa parte do tempo, tem se mantido em silêncio. Está na hora de por fim a esta timidez politicamente incapacitante”.

Em outro livro, O problema dos desconhecidos. Um estudo da ética, Eagleton retoma e desenvolve a mesma inspiração. Escolhe, para reunir e distinguir as grandes famílias morais do Ocidente, a trindade lacaniana do Imaginário, do Simbólico e do Real. Cada uma destas dimensões produziria um tipo de ética ou moral: a ética da benevolência, como em Adam Smith, a moral hiper-racional ao estilo kantiano, e a ética do Real, epresentada por Levinas, Derrida, Badiou e Zizek. Eagleton assinala os limites de cada uma destas vertentes, reclamando a necessidade de um retorno à tradição judaico-cristã, antes de sua institucionalização em Igreja, e ao marxismo de antes do stalinismo, formas de traição do significado político e libertário que ambos abrigavam em sua origem. Não há aqui como discutir detalhadamente o que a prosa sarcástica de Eagleton nos oferece, mas vale ressaltar o que ele julga ser aquilo que associa as vertentes originais do cristianismo e do marxismo, e que as torna superiores às outras éticas fundadas no imaginário, no simbólico e no real: “A fé cristã, como a entendo, não é primariamente uma questão de avalizar o postulado da existência de um Ser Supremo, mas o tipo de compromisso manifestado por um ser humano no final de seus limites, de seus tropeços na escuridão, na dor e na confusão, que mesmo assim permanece fiel à promessa de um amor transformador”.

MacIntyre e Taylor assinariam embaixo, com reservas em relação à crença em um Ser Supremo. De toda forma, é pelo aristotelismo que também Eagleton uma idéia de ética destinada a esclarecer o que é o bem para os homens, insistindo no tema do ágape cristão como o fundamento desta ética do amor transformador. É claro que Eagleton não é unanimidade, até mesmo pelo sarcasmo e pela audácia em misturar coisas que a academia tende a manter separadas. Mas é certamente o exemplo de um possível debate entre razão, ciência e religião, buscando a constituição de uma ética nos termos aristotélicos, ou seja, numa perspectiva universalista semelhante a de Taylor e MacIntyre.

Não pretendo discutir a possível superioridade desta sobre outras. Mas talvez a recuperação desta vertente possa dar origem a uma provocação final. O fenômeno religioso mais evidente hoje no Brasil é o aparecimento e a disseminação do pentecostalismo entre os setores mais pobres da sociedade brasileira. Creio que este fenômeno, e o modo específico de institucionalização das ciências sociais entre nós, encontram suas raízes no modo como a modernização brasileira separou razão e religião. Para a academia, um módulo inconscientemente protestante e dominantemente weberiano incrustado numa larga tradição católica e tomista – como nos ensinou Morse -, a religião sempre apareceu como obstáculo à ocidentalização do Brasil. Em especial o tipo de catolicismo próprio dos três primeiros séculos de história, definido normalmente como uma obtusa materialização da contra-reforma tridentina. Mas na verdade, foi esta linguagem religiosa e católica destes séculos iniciais que se ofereceu como o território para a conformação de uma sociedade que, apesar do latifúndio, da escravidão, da violência, detinha um grande poder de incorporação e uma dinâmica potencialmente democrática.

Esta origem efetiva da sociedade brasileira foi abandonada, tanto pelas nossas elites intelectuais e políticas, quanto pelas elites religiosas. A hierarquia católica, ao final do Império, decidiu, por inspiração papal, acabar com o tipo de catolicismo existente, e que já havia se firmado como a base da sociabilidade brasileira. E mesmo Dom Pedro mandando para a prisão dois bispos insanos, este processo continuou, e criou uma fenda entre as exigências religiosas da elite e a vida religiosa popular. O resultado, depois de um século, é precisamente o pentecostalismo. Por outro lado, as elites intelectuais e políticas brasileiras passaram a imaginar a nossa modernização como uma obra de aniquilamento de nossa origem efetiva, e com isso deram vazão aos vários projetos de modernização por cima da sociedade brasileira, a maioria demofóbicos. As elites intelectuais, e posteriormente a própria academia, sustentaram de algum modo a natureza destes projetos modernizantes e demofóbicos, precisamente pela adoção de uma perspectiva de tipo weberiana, pronta a celebrar as vantagens democráticas e progressistas da Reforma Protestante e a deplorar a sua ausência entre nós, perversamente contaminados pelo catolicismo da contra-reforma. Na sua ausência, seria precisamente as ciências sociais, aí incluída a economia, que deveriam se colocar como as substitutas iluminadas de uma religião atrasada, própria de um povo analfabeto.

Se a vertente reflexiva que apresentei pode ter uma conseqüência, é a de nos livrar deste aparente imperativo de condenação de uma religiosidade original da população brasileira. E com isso abrir as portas para uma compreensão mais generosa dos sonhos que habitam este imaginário. O pentecostalismo hoje presente no Brasil não é herdeiro desta tradição, a não ser que ele seja convencido de que pode ser. Ele pouco tem a ver com a constituição de uma sociedade capaz de compartilhar, na sua pluralidade, uma ética transformadora. É eficaz para o pretende, mas o que pretende não parece eficaz para um possível overlaping consensus em torno de uma democracia viva no Brasil. Não estou simplesmente repetindo a atitude de distância iluminista da academia em relação às experiências religiosas do povo. Meu ponto é simples: se abandonarmos a distância que guardamos em relação às religiões, encarando-as apenas como objetos de estudo, estaremos também superando a idéia de uma academia autopoiética, e nos tornando interlocutores legítimos para persuadir as crenças e religiões presentes em nossa realidade que temos um desafio em comum: a construção e a consolidação de uma democracia. E que sobre isto temos coisas a dizer a elas, do mesmo modo que temos coisas a ouvir delas.

* Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

FONTE: BOLETIM CEDES – OUTUBRO/DEZEMBRO 2011

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