terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Conspiração do ouriço:: Renato Lessa

Como julgar uma presidência instalada em ambiente político de altas contaminações, com a presença de operadores da ubiquidade de ser governo e ser cliente de governo?

A hipótese de urdidura conspiratória para explicar a erosão sofrida pela equipe de governo, em seu primeiro ano de vida, tem o sabor e a alma dos monomaníacos e ocultistas. O saudoso pensador anglo-russo Isaiah Berlin propôs uma distinção entre duas modalidades de percepção e de configuração imaginária do mundo e associou-as zoologicamente a ouriços e raposas. A taxonomia de Berlin distinguiu os ouriços como monotemáticos e portadores de uma crença que considera a complexidade e a confusão da vida como sinais aparentes e ilusórios, cujo entendimento exige a apreensão de causas fundamentais, sempre vinculadas à mãe de todas as causas, seja lá qual for.

Cá entre nós, é crível, para espíritos paranoicamente deflacionados, a suspeita de que o descarrego de sete ministros - sem considerar a visão da fila que se avizinha - dependa de alguma conjura ou causa única? Claro está que há quem torça pela desgraça do governo, e que veja em cada queda de ministro um sinal de que tudo está perdido e a confirmação de certezas íntimas. Outros há que torcem pelo simples infortúnio do indigitado da ocasião, por cobiça ou desejo de vingança pessoal. Há, ainda e por certo, caluniadores profissionais e oposicionistas desorientados sem qualquer coisa de substantivo a dizer ao país, aos quais vem bem a calhar a fatiota de questores da moralidade pública. Mas fazer de torcedores oportunistas e oposicionistas desenergizados algo como o motor imóvel de um processo cósmico de destruição do governo, além de homenagem indevida a tal conjunto heteróclito é ato de má fé, quando não de estupidez.

Se considerarmos os vetores de corrosão como endógenos, talvez ganhemos em entendimento a respeito não da natureza deste governo, mas do modo de fazer governos e da cultura política que se impôs ao País como esteio de governabilidade democrática. Este governo ainda é uma incógnita: não sabemos ainda se poderá ser avaliado como ortodoxo, nos termos da cultura de governo predominante no País, ou se por ter semeado coisa distinta. Cedo para dizer, embora a tempo de apostar. A despeito disso, há dois macrodesafios postos a este governo, inerentes tanto à forma de governar como à cultura política que a movimenta. No desenho desses macrodesafios estão inscritos alguns fatores internos e potenciais de erosão.

Um dos desafios é representado pelo que especialistas definem como um esteio de governabilidade: a grande coalizão. A necessidade da composição ampla, quando transformada em virtude, incorpora como naturais dinâmicas abertamente perversas. A obtenção, por parte do Executivo, de meios para governar está associada a uma partilha que afeta a própria capacidade do governo de fazer uso eficaz de tais meios. Administrar a grande coalizão, se não é o principal item da agenda interna do governo, é algo que limita a capacidade de conduzir sua agenda externa, a que afeta as vidas dos cidadãos ordinários. Para usar metáfora contabilista, o custo dessa administração interna não é neutro para o conjunto do País, posto que restringe a capacidade do governo de exercer seu mandato específico.

Ainda nos limites desse primeiro desafio, deve ser dito com toda clareza possível que ele não é apenas de natureza política ou tática, ou algo que se circunscreva ao enxuga-gelo da "coordenação política". O pouco hábito da análise politica em reconhecer a relevância de dimensões sociais e históricas vale como uma anistia sociológica aos operadores da grande coalizão. Tal animal político - a grande coalizão -, mais do que expressão de apetite e de esperteza partidária, releva de pesado lastro sociológico que - pace Paulo Mercadante, no já não mais lido A Consciência Conservadora no Brasil - vem impondo ao País a resiliência do atraso e do conservadorismo social e político predatório.

O segundo desafio diz respeito à fila de ministros expurgados ou indigitados. Ressalvada sempre a possibilidade de que, individualmente, este ou aquele não seja o caso, o cenário agregado convida à seguinte indagação: como operar em um ambiente político marcado pela presença de um virtual estado de natureza? Tal estado abrange, como é sabido, formas abertamente predatórias, arcaicas, patéticas e heterodoxas em termos penais. Mas não fiquemos por aí, posto que ele abrange, ainda, a sensação de ilimitação, a intoxicação com a ubiquidade, com a deliciosa e beatífica possibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, por parte de operadores políticos centrais. Falo da possibilidade de usufruir da ubiquidade de ser governo, ser cliente do governo, ser consultor de quem negocia com o governo, e por aí vamos. Tal concentração de papéis em um único operador cria e alimenta animais políticos que exigem o estado de natureza como seu oxigênio, ainda que a legalidade fique intacta. Ficou fora de moda falar em "cultura política", mas não é isso um sinal de uma cultura de excesso?

Os fatores de erosão potencial, creio, são internos, embora os ruídos sejam externos. Descontado o rumor insincero e oportunista, é possível supor, quando pensamos nesses ruídos externos, a latência de um sujeito coletivo - tal como o processo civilizador, brilhantemente analisado por Norbert Elias -, constituído aos poucos, sem direção ou propósito claros, mas que aprende a manifestar desconforto com sinais dessa cultura de excesso. É cedo para dizer qualquer coisa de mais afirmativo a respeito, mas é algo que parece não caber na estreita moldura do moralismo e na paranoia de ouriços conspiratórios.

A marca específica do governo de Dilma Rousseff, quando estiver clara, será afetada, para além da agenda social e de desenvolvimento, pelo modo de lidar com os desafios aqui aludidos.

Renato Lessa, professor de Filosofia Política da Universidade Cândido Mendes e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje.

FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO, 11/12/2011.

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