sábado, 3 de dezembro de 2011

Disciplina e fé:: Merval Pereira

Há pelo menos uma coisa em comum na vitória dos partidos islâmicos no Egito, na Tunísia e no Marrocos, os países que fizeram eleições no rastro da Primavera Árabe: prevaleceu a disciplina dessas organizações políticas, em detrimento do voluntarismo dos partidos oposicionistas e dos movimentos da sociedade civil.

Há também algumas nuances fundamentais que separam, por exemplo, o Marrocos dos outros países, embora esteja, como a Tunísia, na região do Magreb, considerada berço de um islamismo mais moderado.

O embaixador do Brasil Frederico Duque Estrada Meyer ressalta que a vitória do partido islâmico no Marrocos não foi novidade, pois já havia sido vitorioso em 2007.

Para ele, o resultado não tem nada a ver com o que ocorre nos outros países. A chamada "primavera árabe" teria em comum, na visão do diplomata, apenas a falta de legitimidade dos sucessores dos ditadores e a internet.

O movimento de 20 de fevereiro no Marrocos, lembra Duque Estrada, pedia mais empregos e partia de jovens de classe média e alta, que foram os grandes derrotados desta eleição: pregaram o boicote eleitoral e quase metade da população votou - mais do que em 2007, quando 37% foram às urnas.

Na Tunísia e no Egito, o comparecimento ficou perto de 80%.

O embaixador relembra que mesmo os jovens não pediam mais liberdade ou direitos para as mulheres - que já têm todos, exceto de herança -, ou a destituição do rei.

Apesar dos anos de chumbo, diz ele, desde a independência o país adotou o pluripartidarismo, enquanto Portugal e Espanha viviam sob Salazar e Franco.

A Comissão da Verdade já foi implementada lá e encerrou seus trabalhos, que foram transmitidos pela TV, com depoimentos de torturados inclusive.

Tanto na Tunísia quanto no Egito, destacaram-se as organizações partidárias islâmicas como as mais preparadas para angariar votos junto aos eleitores.

Nos dois países, os partidos que venceram as eleições, Liberdade e Justiça, no Egito, e Nahdha, na Tunísia, utilizaram-se de modernos métodos tecnológicos para orientar os eleitores, como iPad indicando o local das votações ou explicando o mecanismo de votação, e obtiveram bons resultados.

Embora tenha recebido apenas 23% dos votos, o Nahdha lidera a coalizão majoritária na Constituinte, e tem sido objeto de muitas críticas por parte dos partidos oposicionistas e da sociedade civil de maneira geral.

Oficialmente, anuncia-se como favorável a um governo laico, como o partido islamita que dá suporte ao governo turco de Recep Erdogan, mas é acusado de apoiar propostas radicais nos trabalhos constitucionais.

Agora mesmo várias universidades entraram em greve contra a interferência de religiosos que querem separar mulheres e homens.

Embora o Nahdha diga oficialmente que nada tem a ver com essa proposta, os estudantes acusam o partido de estar por trás desses movimentos.

A professora de Literatura e Civilização francesas Hela Ouardi, da Universidade de Tunis, fez uma palestra ontem, na reunião da Academia da Latinidade, que marcou bem o papel dos intelectuais no momento de transição que o país vive.

Depois de fazer uma análise do islamismo, do ponto de vista histórico e religioso, ela se disse convencida de que o Islã não é incompatível com a democracia. O que não é compatível, afirmou, é o clericalismo, que quer se impor aos muçulmanos embora no Islã ninguém seja habilitado a representar o mediador entre homem e Deus, e ninguém seja autorizado a dizer qual é o Islã verdadeiro.

Forçando uma visão metafórica para desconstruir o que vê como uma tentativa de impor o controle religioso sobre o Estado, Hela Ouardi disse que os muçulmanos na Tunísia sabem disso, e, se eles votaram naqueles que eles acreditam fazer parte do "partido de Deus", não é porque desejam ser governados por um clérigo em uma embalagem civil, mas porque pensam que finalmente a autoridade de Deus só pode se encarnar na autoridade do povo.

A professora tunisiana diz que a insurreição popular na Tunísia foi uma reação à privatização do Estado por uma família, uma oligarquia.

Portanto, afirmar que a soberania pertence a Deus significa que pertence a todo mundo, e não a um grupo de indivíduos.

Nesse contexto, Hela Ouardi diz que o fato de os tunisianos terem votado maciçamente nos membros do "partido de Deus" não foi pelo seu valor intrínseco, nem pelo valor de seus representantes - a quem ela nega até mesmo a legitimidade revolucionária -, mas porque estavam convencidos de que os que chegaram ao poder em nome de Deus trabalharão pelo bem comum, o que lhes dá a sensação de que não serão excluídos das ações do Estado.

O que os tunisianos procuram não é uma autoridade que lhes transcenda, diz a professora Ouardi. Ela acusou o partido islâmico Nahdha de ter tentado um golpe de Estado constitucional recentemente para confiscar a soberania popular em nome de um partido religioso.

Essas tentativas, advertiu, serão logo compreendidas como uma nova privatização do poder, "e estaremos diante de um desvio do processo histórico deslanchado na Tunísia depois de janeiro de 2011, quando o povo afirmou em alto e bom som que era a única fonte de poder".

"Toda tentativa de usurpar esse poder, mesmo em nome de Deus, será rejeitada pelo povo tunisiano", advertiu a professora.

Ela classificou a vitória do Nahdha como "o canto do cisne" do islamismo na Tunísia, embora admita haver "um risco bem real" de instauração de um regime totalitário, que o partido anuncia em seus documentos desde a fundação e não renegou.

FONTE: O GLOBO

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