quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O galo cantou:: Merval Pereira

O Estado do Rio vem experimentando um processo de recuperação de espaços públicos antes dominados pelos traficantes de drogas que tem, para além de seu aspecto social, características políticas especiais. A função central das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) espalhadas pelas diversas comunidades recuperadas para a cidadania, acabar com o domínio dos bandidos sobre o território das favelas, precisa ser complementada por ações que deem consequência prática a este novo momento.

As chamadas UPPs sociais já estão cuidando de levar para os territórios recuperados os benefícios da presença do estado, mas, para além dessa ação, uma experiência pioneira acontece no Morro do Cantagalo, fincado entre Copacabana e Ipanema, no coração da Zona Sul do Rio.

Ontem, foi lançado no Rio o livro "Galo cantou", da Editora Record, com uma série de depoimentos e análises de pessoas envolvidas no projeto - entre elas, o vice-governador do Estado do Rio, Luiz Fernando Pezão -, com coordenação do economista Paulo Rabello de Castro, presidente do Instituto Atlântico.

Com o financiamento do Instituto Gerdau e o apoio de escritórios de advocacia e de engenharia, o Instituto Atlântico, entidade apartidária cuja missão é propor, e testar na prática, políticas públicas inovadoras, desenvolveu um projeto de cadastramento geral dos moradores para conceder a titulação plena dos possuidores de lotes e unidades residenciais.

Quase 1.500 domicílios e cerca de cinco mil moradores, a vasta maioria morando lá há mais de 20 anos, foram mobilizados durante meses, desde 2008.

Em maio passado, os primeiros 44 moradores da Comunidade do Cantagalo receberam a escritura de doação das mãos das autoridades estaduais, e, até o final de 2012, deve estar concluída a etapa principal de titulação no Cantagalo.

O território, que antes era dominado pelos traficantes, hoje tem donos, e a organização fundiária de uma comunidade é parte essencial de um amplo projeto de segurança para os próprios moradores e bairros circunvizinhos.

Tudo foi feito com base em conjunto de técnicas de intervenção comunitária e no princípio da auto-organização a que o Instituto Atlântico chamou de uma "tecnologia social".

Por meio da associação dos moradores, toda a população do Cantagalo participou das discussões do projeto desde o início, e todos os moradores deram autorização por escrito para o levantamento.

O aumento dos encargos tributários e de tarifas de serviços públicos como consequência da regularização e do título definitivo, por exemplo, foi muito debatido.

Essa participação da comunidade na definição de seus próprios interesses é exemplar de uma política pública que queira incluir os moradores das favelas do Rio como parte da solução dos problemas.

A comunidade do Morro do Cantagalo tem as mesmas características básicas das demais favelas da cidade.

Ha estudos que demonstram que a infraestrutura essencial nas favelas não é significativamente diferente da de outras partes urbanizadas da cidade.

Nas favelas do Rio, quase todos os imóveis são próprios, com exceção da Rocinha, onde 33% são alugados. No Cantagalo, 77% dos imóveis são próprios.

A principal contribuição do projeto é mostrar, da teoria à prática, que a concessão de títulos de propriedade nas comunidades é a forma mais efetiva de integrar a cidade do ponto de vista legal.

O Instituto Atlântico tem o objetivo, com o Projeto Cantagalo, de ressaltar que a regularização "acarreta uma injeção de novos valores de comportamento social na comunidade".

Desse ponto de vista, a propriedade imobiliária seria "a melhor resposta às angústias naturais de um favelado, cuja moradia sem direito constituído não tem defesa policial ou judicial contra a bandidagem ou a remoção pela própria Administração Pública".

O Instituto, em seus documentos sobre o Projeto Cantagalo, destaca que a outorga do título de propriedade plena sobre os bens que os moradores construíram ao longo de toda uma vida de trabalho representa não só uma injeção de capital na economia advinda da valorização dos imóveis, sem necessidade de elevação de gastos públicos, mas também uma elevação na receita da Administração Pública, com o aumento da arrecadação proveniente da legalização/valorização dos imóveis da comunidade e dos bairros no seu entorno.

As estimativas são de que a transposição dessa "tecnologia social" para todo o país teria um custo da ordem de R$1 trilhão, envolvendo 15 milhões de moradias tituláveis no país inteiro.

Mesmo que o estado e a sociedade civil estejam presentes nas favelas, que os serviços de infraestrutura sejam basicamente os mesmos de algumas regiões da cidade e a ausência do estado ocorra apenas em função da falta de policiamento ostensivo, a participação da comunidade nas decisões do Cantagalo é um aspecto político fundamental que o direito à propriedade só faz ressaltar.

A ação prioritária após a retomada definitiva e a pacificação das favelas seria a formalização dos negócios e a regularização da situação fundiária e de habite-se.

Esse exemplo pioneiro de cidadania já temos na experiência do Cantagalo, onde a iniciativa privada e o estado se encontraram para uma solução exemplar. (Esta coluna é baseada no meu texto para o livro "Galo cantou").

FONTE: O GLOBO

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