domingo, 13 de março de 2011

Reflexão do dia – José Aricó : Gramsci

"Gramsci é hoje parte da cultura latino-americana a tal ponto que suas categorias de análise atravessam os discursos teóricos das ciências sociais, dos historiadores, dos críticos e dos intelectuais em geral, e estão (via de regra de modo abusivo) presentes na linguagem cotidiana das forças políticas de esquerda ou democráticas. Quem poderia refletir sobre os grandes ou pequenos problemas de nossos países sem se utilizar de termos como hegemonia, bloco histórico, intelectuais orgânicos, crise orgânica, revolução passiva, guerra de posição e de movimento, sociedade civil e política, Estado ampliado, transformismo, etc? Com isso, não pretendo avalizar a idéia banal de que o pensamento de Gramsci foi assumido plenamente e de modo crítico. Busco simplesmente esboçar o alcance de um fenômeno cultural que vai muito além do campo restrito dos setores acadêmicos e faz parte das linguagens da política. Torna-se assim clara a razão pela qual é difícil traçar um quadro satisfatório sem dispor de trabalhos preliminares, que recolham e organizem as informações relativas ao nosso tema.

Não creio que minhas recordações me traiam se digo que, entre nós, a primeira tentativa orgânica de inserção do pensamento de Gramsci na cultura política da esquerda ocorreu no interior do Partido Comunista Argentino. Ela fez parte de uma proposta, jamais explicitamente declarada, de atualização ideológica e cultural, que teve em Héctor P. Agosti seu mais inteligente e consciente promotor. Pensador e ensaísta de destaque, importante membro do grupo dirigente do Partido Comunista, Agosti foi – nos anos 50 – o centro de gravidade de um movimento intelectual tendencialmente gramsciano. A história da formação e do desenvolvimento desse movimento, de suas direções conflitivas com direções políticas que impediam a circulação de idéias, de sua marginalização da esfera de decisões até mesmo em seu próprio ambiente de trabalho, de seu choque e de sua ruptura com o comunismo dos anos 60, de sua divisão e posterior marginalização, tudo isso encerra a essência do processo de introdução de Gramsci na Argentina. É provável que algo análogo tenha ocorrido no Brasil no final dos anos 60, quando se iniciou a tradução de alguns volumes dos Cadernos. "

ARICÓ, José (1931-1991). Geografia de Gramsci na América Latina. Gramsci e a América Latina, págs. 26-27, 2ª edição. Editora Paz e Terra 1993.

O difícil consenso:: Merval Pereira

Para se ter uma ideia de como será difícil chegar-se a um consenso em torno da reforma política, tomemos as opiniões de três deputados federais representantes do Rio de Janeiro: Miro Teixeira, do PDT, Chico Alencar, do PSOL, e Alfredo Sirkis, do PV. Cada um deles tem ideias próprias sobre qual o melhor sistema eleitoral, por exemplo.

Miro Teixeira só tem uma questão fechada: não admite que o sistema eleitoral tire do cidadão o direito de escolher seu representante diretamente na urna.

Com isso, renega o voto em lista fechada, no qual o partido elabora sua lista, e o eleitor vota apenas na legenda. Os primeiros da lista serão os eleitos, de acordo com o número de cadeiras que cada partido conquistar nas urnas.

Já Chico Alencar defende justamente o sistema de lista fechada Além de estimular uma maior nitidez programática na disputa, defende, é o mecanismo mais adequado para a obtenção da proporcionalidade na transformação de votos em cadeiras no parlamento.

Alfredo Sirkis, por sua vez, acha que a única forma de se chegar a um consenso seria um "distritão" misto, com 50% dos deputados eleitos pelo voto proporcional, e 50%, pelo distrital-majoritário.

Uma preocupação de Miro Teixeira é que os cidadãos, de um modo geral, desconfiam da isenção dos parlamentares eleitos por um sistema, na discussão de uma reforma desse mesmo sistema.

Por isso, ele considera "fundamental assegurar aos cidadãos a palavra final sobre o sistema de eleição de seus representantes".

Sua proposta é que a Comissão da Reforma Política decida submeter a plebiscito, a realizar-se com as eleições municipais, dois temas básicos: fim do voto obrigatório e a opção entre os sistemas eleitorais sistematizados pela comissão, em número a ser determinado na condução dos trabalhos da comissão.

O fim da obrigatoriedade do voto, por exemplo, já coloca o PSOL contra a proposta de Miro Teixeira, pois Chico Alencar considera que o voto, além de um direito duramente conquistado, deve ser considerado um dever cívico, sem o exercício do qual aquele direito se descaracteriza ou se perde. Afinal, liberdade e democracia são fins e não apenas meios.

Ele admite, porém, que a desmoralização da política em geral e a descrença no voto como instrumento efetivo de mudança são elementos que fortalecem os que defendem o voto facultativo, apresentado como uma vitória da liberdade individual.

"Falsa conquista, e perigoso conceito de liberdade individual, que compromete a realização do princípio republicano da soberania popular", rebate.

Na definição do sistema eleitoral, o deputado Alfredo Sirkis defende que seja adotado o princípio da simplicidade: mecanismos complicados que dificultem o eleitor na hora de votar ou que não se ajustem ao sistema de votação informatizado que temos não devem ser considerados.

Ele cita os diversos tipos que estão em discussão: o "distritão", que tem o estado como distrito eleitoral com a escolha majoritária; os "grandes distritos", a divisão do estado em poucos (3 ou 4) grandes distritos, com a possibilidade de vários candidatos por partido em cada; o distrital uninominal "clássico", no qual o estado é dividido em um número de distritos eleitorais igual ao das cadeiras em disputa nos parlamentos, e em cada um deles os partidos apresentam um único candidato.

Sirkis admite que o voto distrital clássico parece ser mais complicado de aprovar, pela necessidade de se desenhar não só os distritos que em todo o país correspondam aos 513 deputados federais - "Esse desenho nunca é politicamente neutro" - como também redesenhá-los para as eleições de deputados estaduais e vereadores.

A eleição para deputados federais e estaduais coincide no tempo, mas os distritos não coincidirão no espaço. No Rio de Janeiro, por exemplo, teria que haver 46 distritos para eleição de deputados federais e 70 para de estaduais.

No componente proporcional, Sirkis defende a lista fechada, mas alerta que seria preciso haver "exigências mínimas aos partidos em termos de democracia e transparência".

O deputado Chico Alencar, do PSOL, defende o voto proporcional, atribuindo aos defensores do voto distrital ou majoritário uma postura conservadora "que aspira consolidar o já dominante, busca o aumento da "eficiência governamental" à custa da redução da representatividade".

Ele admite, porém, que é necessário corrigir distorções para garantir a proporcionalidade do voto, pois ele se define pela busca da equidade na relação entre os votos recebidos e as cadeiras conquistadas. "A representação parlamentar deve espelhar, o mais fielmente possível, a composição política do eleitorado."

A distorção mais perversa do voto proporcional no Brasil, para Chico Alencar, é a distribuição desigual das cadeiras entre os estados da Federação. "O voto em Roraima vale 15,2 vezes mais do que o voto em São Paulo. E, dado que a força eleitoral relativa dos partidos se distribui de maneira desigual entre as diferentes regiões, tal fato desequilibra a proporcionalidade da representação no Parlamento, em geral prejudicando os centros mais populosos."

Na origem dessa distorção, para Alencar, está a norma constitucional que definiu o número mínimo (8) e o máximo (70) de cadeiras para os estados no Congresso Nacional.

Conservando as unidades da Federação como distritos eleitorais e o tamanho absoluto do Congresso (513 deputados), o problema pode ser atacado, segundo o deputado do PSOL, com a redução do número mínimo e o aumento do máximo, redistribuindo as cadeiras.

Há, no entanto, limites para a redução do número mínimo de cadeiras, que deverão ser estudados pela comissão, havendo soluções técnicas já estudadas pelos cientistas políticos.

Para evitar a ditadura dos comandos partidários na definição da lista de candidatos, Chico Alencar sugere que seja adotada uma regulamentação que determine a realização de eleições primárias para o ordenamento das listas.

E, para superar a questão de o eleitor não votar diretamente no candidato, ele sugere que seja aprovada a "lista flexível" utilizada na Bélgica, onde o partido estabelece a ordem dos candidatos, mas o eleitor pode mudar a ordem para priorizar seu candidato preferido.

Como se vê, três deputados, três partidos, três reformas políticas.

FONTE: O GLOBO

'Não há brasileiro que não queira a reforma'

Presidente da comissão que trata das mudanças no sistema eleitoral diz que o problema é alcançar consenso

No comando dos trabalhos da Comissão da Reforma Política do Senado, Francisco Dornelles (PP-RJ) promete empenho para que seja apresentada à Casa, até 8 de abril, uma proposta com um mínimo de consenso. O senador fluminense defende o fim do voto proporcional e sugere a adoção do sistema eleitoral do distritão, que, na sua opinião, além de baratear campanhas, reduziria o número de candidatos a deputado federal.

Adriana Vasconcelos

O que o faz acreditar que agora aprovarão a reforma?

FRANCISCO DORNELLES: Não há um brasileiro que não queira a reforma política. Agora, cada um tem a sua. E essa é a dificuldade. De forma que essa comissão foi criada, e nós temos de fazer um esforço para que, até dia 8 de abril, possamos apresentar uma proposta de reforma política. A grande distorção do sistema político brasileiro é o voto proporcional. De modo que teremos de analisar os sistemas eleitorais.

É possível acabar com o voto proporcional?

DORNELLES: Há três propostas. Uma para manter o sistema proporcional, cujo principal defeito é votar em um candidato e eleger outro, levando cada partido a ir atrás do puxador de votos. A segunda seria o distritão, com voto majoritário para deputado federal. Consideraríamos cada estado um distrito, e os mais votados seriam eleitos. Acaba com a possibilidade de o eleitor votar em um candidato e eleger outro. A terceira alternativa é o voto em lista, e o eleitor vota na lista do partido.

Para senador, endinheirado se elegerá sempre

Quais as vantagens do distritão? O sistema favorece candidatos com mais recursos?

DORNELLES: A maior distorção do voto proporcional é o fato de você votar em um candidato e eleger outro. O endinheirado pode ser eleito no sistema de hoje, ajudando a eleger outros sem voto. No distritão, o endinheirado seria eleito, mas seus votos não ajudariam outros. No sistema de lista, o endinheirado pode comprar lugar na lista. Então, não há como dizer que o distritão favorece o endinheirado. Não prevalece a crítica de que o distritão acaba com o sentimento partidário. Hoje é a mesma situação, votamos na pessoa sabendo que pertence ao partido. No distritão, seria mantido. No voto de lista, é a pior situação, porque o eleitor não sabe em quem está votando.

Qual a segunda prioridade?

DORNELLES: Outro assunto é a suplência de senador. Uma alternativa seria acabar com o suplente, o que seria um problema, já que o estado não poderia ficar sem representante. Outra possibilidade seria manter o suplente para ele substituir mas não suceder ao titular da vaga. Se o senador se afasta temporariamente, ele substitui. Se se afasta de forma definitiva, convoca-se uma nova eleição.

Como deverá ser tratada a fidelidade partidária?

DORNELLES: Uma reforma política cujo objetivo seja apenas abrir uma janela para o troca-troca ficaria desmoralizada. Um candidato eleito por um partido tem obrigação de permanecer filiado a ele por pelo menos três ou quatro anos. Não dá para estabelecer uma fidelidade partidária que só acaba com a morte. Diria o seguinte: candidatos eleitos nas eleições de 2012 e 2014 poderiam, três anos depois, mudar de partido. Mas a nova regra não atingiria quem já está eleito. A lei não deve retroagir.

E o fim da reeleição?

DORNELLES: Minha impressão é que existe posição majoritária a favor da reeleição.

Há possibilidade de unificação do calendário eleitoral?

DORNELLES: Seria complexo. Uma eleição federal tem temática que difere das estaduais e municipais. Se fosse viável mudar, o ideal seria ter eleição presidencial, para senador e deputado federal numa data, e outra para governador, deputado estadual, prefeito e vereador. As eleições federais junto com a de governador criam problemas enormes num país multipartidário, onde a maior parte das coligações nacionais difere das estaduais.

E o financiamento público de campanha?

DORNELLES: No financiamento público, o cidadão ajudaria a financiar todos os candidatos, inclusive os que não gostaria de financiar. E a distribuição do financiamento público, quem definiria? O dinheiro iria para as cúpulas dos partidos? Elas ficariam com um poder muito grande. Esse financiamento só teria possibilidade de passar no voto de lista. Sem ele, não pode haver financiamento público.

FONTE: O GLOBO

Reforma política para ampliar a democracia : Paulo Teixeira

A Câmara acaba de instalar uma comissão especial para tratar da reforma política. A iniciativa coincide com um momento em que cresce a consciência da necessidade de um revigoramento de nosso sistema político e eleitoral.

O Brasil tem uma democracia representativa de massas, mas o sistema pode ser aperfeiçoado, com medidas que reduzam os custos das campanhas e deem sentido programático às disputas.

A crescente preponderância do poder econômico nos processos eleitorais tem provocado profundas distorções nas instituições legislativas e executivas. Amplos setores da sociedade são alijados das disputas eleitorais, em função dos altos custos das campanhas. Tal fato é facilmente observável nas disputas por cargos executivos em todos os níveis e, principalmente, nas eleições proporcionais.

A interferência do grande capital privado nas eleições é uma das principais fontes das crises políticas que vivemos nos últimos tempos. O uso de caixa dois e favorecimentos a candidatos ligados ao capital resultam em aumento do tráfico de influência e da corrupção no âmbito da administração pública.

O financiamento público vai explicitar os custos do sistema político, não os transferindo para o Estado, via contratos. O único compromisso da pessoa eleita, seja em que esfera for, será com o eleitor. Financiamento público pode não ser perfeito, mas ajudará a limitar as fraudes e facilitará a fiscalização.

O sistema de votação atual é uninominal, em que um eleitor vota num candidato, sem ter em vista a cultura programática. Isso enfraquece os partidos. Daí a necessidade do voto partidário, que vai fortalecer os partidos e permitir mais racionalidade ao debate eleitoral.
Garante-se, assim, mais nitidez partidária e programática, tirando o caráter personalista do sistema atual, em que candidatos apresentam propostas voluntaristas, clientelistas, ilusórias.

Caberá aos partidos mudar o seu funcionamento, com garantia de democracia interna.
Precisamos rejeitar soluções mistificadoras, como as do voto distrital e do "distritão". Este quebra o pluralismo, a proporcionalidade, acentua a influência do poder econômico e exacerba o personalismo.

O voto distrital transforma o Congresso em espaço para assuntos paroquiais e permite que uma minoria social detenha a maioria parlamentar, eliminando o princípio "a cada eleitor, um voto", que preserva o caráter plural do Parlamento.

Necessitamos de estímulos à representação feminina e de negros nos três níveis de representação legislativa, além de mecanismos que aprofundem a participação da população na política, via plebiscitos e referendos, como nas democracias mais avançadas.

As mudanças que preconizamos fortalecem nossa democracia, dão mais transparência ao nosso sistema representativo e, sobretudo, asseguram mais agilidade e legitimidade nos mecanismos de expressão de toda a sociedade. Eis o desafio do Congresso Nacional.

Paulo Teixeira, 49, advogado, é deputado federal (PT-SP) e líder do PT na Câmara.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Nas próprias pernas:: Dora Kramer

Lamentavelmente o último escândalo da estação não produziu nada que o País não tenha visto ou ouvido nos últimos anos.

Numa prova de que quem sai aos seus raramente degenera, a deputada Jaqueline Roriz, filha do ex-governador Joaquim Roriz, recorreu aos préstimos financeiros do pivô do penúltimo escândalo de corrupção política - que levou um governador (José Roberto Arruda) à prisão - e foi filmada recebendo o dinheiro.

Como sempre, vozes de indignação se levantaram pedindo a cassação do mandato e punição da deputada na Justiça. As defesas de praxe também foram providenciadas.

O partido de Jaqueline Roriz, o PMN, divulgou nota oficial para ressaltar a "boa índole" e a condição de "filha zelosa, esposa amantíssima" de sua filiada; acabou autorizando a conclusão de que a índole do partido deixa muito a desejar.

Seguindo o roteiro habitual nessas situações, o PSOL foi o primeiro a pedir a abertura de processo de cassação no Conselho de Ética. E aqui entra a diferença deste para casos anteriores: as investigações internas no Parlamento estão totalmente desmoralizadas.

Atualmente chega a soar esquisito falar em julgamentos éticos no ambiente do Congresso.

O flagrante exibido em vídeo pelo portal Estadão.com.br não deixa a menor dúvida quanto à ausência de decoro pessoal por parte da moça que na época ainda não tinha mandato de deputada federal.

É óbvio que essa filha diligente, esposa enamorada de excelente caráter, merece a cassação.

Mas a Câmara estará enrolada nas próprias pernas caso a deputada não tome a iniciativa de renunciar ao mandato.

Para livrar colegas de complicações não muito diferentes das que envolvem a filha de Roriz, o Conselho de Ética decidiu que atos anteriores ao mandato em curso não contam para efeito de decoro parlamentar.

Em contrapartida, o Congresso aprovou uma lei que leva em conta a vida pregressa de pretendentes a candidato como fator de elegibilidade. Com a Lei da Ficha Limpa, a população despertou para a importância de biografias e passou a pôr em xeque a legitimidade dos parlamentares donos de folhas corridas.

O Legislativo montou uma armadilha para si: criou um casuísmo que em tese o impede de cassar a deputada e ao mesmo tempo aprovou uma lei que expõe as mazelas de boa parte dos juízes.

Dúvida atroz. O governo divulgou que a presidente Dilma Rousseff vetou indicações do deputado Eduardo Cunha para cargos no governo. No entanto, a liderança desse mesmo governo na Câmara escolheu Cunha para negociar a aprovação das regras para obras com licitações especiais para a Olimpíada de 2016.

Fica, portanto, a questão: se Eduardo Cunha não serve como avalista de cargos por que serve para cuidar de licitações?

Olha o vexame. Ao que se anuncia a segurança do presidente Barack Obama na visita ao Brasil será composta por mais de 300 pessoas, além de helicóptero e dezenas de carros vindos dos Estados Unidos.

Quando Bill Clinton esteve aqui foi intensamente criticado por causa do forte esquema de segurança que o acompanhava desde Washington.

Na época houve significativa adesão local à tolice de enxergar nisso um sinal de afronta à soberania nacional. Segundo aqueles autores, os americanos ofendiam a honra nacional não apenas por causa do tamanho do aparato, mas também por relegarem ao segundo plano o uso de policiais brasileiros na segurança do presidente.

Depoimentos de moradores do morro da Mangueira qualificando o aparato presidencial como "totalmente desnecessário", eram exibidos na televisão como prova da natureza cordial da população.

Queira o bom senso que desta vez prevaleça o entendimento do óbvio: esquemas de segurança de chefes de Estado são da alçada de cada país e as respectivas circunstâncias, guardando zero com a soberania alheia.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Obama e Dilma:: Eliane Cantanhêde

Barack Obama deixou para vir ao Brasil só no seu terceiro ano de governo e chega no próximo final de semana cercado de expectativas. Mas a impressão que se tem, mesmo sem o Wikileaks espalhar, é que a viagem está minguando. Agora, mais essa: o famoso discurso, para o qual o Consulado no Rio sonhava com a Cinelândia, o Aterro do Flamengo e coisas assim, nem deve ser mais no Brasil; está sendo transferido para o Chile!

O que importa para o Brasil, para Dilma Rousseff e para a vida real, porém, não é salamaleque -simbologia do primeiro presidente negro dos EUA, discurso grandioso, reuniões protocolares com empresários, lenga-lenga sobre ações conjuntas na África e cooperação em biocombustíveis -que, cá pra nós, vêm desde George W. Bush.

O que interessa para a pragmática Dilma e para o emergente Brasil são notícias concretas no principal flanco das relações bilaterais: o saldo da balança. Se, além de Michele e de seu sorriso encantador, Obama trouxer um suculento pacote na área comercial, pronto, a viagem terá sido um sucesso.

Como bem registrou Carlos A. Cavalcanti, da Fiesp, no jornal "Valor Econômico", a verdade é que as relações na área política vão bem, obrigada. Uma cutucada daqui, outra dali (só para marcar o viés ideológico), mas as visitas de primeiro escalão e os planos comuns intensificaram-se desde Bush-Lula e nunca mais pararam. O calcanhar-de-Aquiles é outro: o comércio.

"No campo comercial, a qualidade da relação deteriorou-se, sobretudo da perspectiva brasileira", escreveu Cavalcanti. Eis o porquê: "O pior deficit do Brasil é com os EUA, embora o quinto melhor superavit dos EUA seja conosco".

É preciso dizer mais? Na relação do emergente com a maior potência, quem perde é o emergente, quem lucra é a potência. É aí que Obama pode mostrar se a visita é só badalação ou não.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Fúrias e tsunamis :: Alberto Dines

A natureza ou a divina providência não leem jornais, assistem à TV ou se interessam pelos imbróglios armados pela humanidade. Seguem os roteiros, insensíveis aos seus devastadores efeitos. Nós, ao contrário, estamos condenados a uma eterna dependência noticiosa para saber o que nossos semelhantes estão aprontando nos quatro cantos do globo e que invariavelmente acabam por nos enredar. Há momentos em que a ira da natureza - ou dos deuses - junta-se à dos homens.

Como agora. Quinta-feira à noite, as análises dos especialistas internacionais eram sombrias diante da eminência de um banho de sangue na Líbia, do novo barril de pólvora que se acendia às margens do Mediterrâneo e do sacolejo que a onda verde (ou revolta árabe) causará na economia global ainda hospitalizada desde a crise de 2008.

Na manhã seguinte, pela TV e internet, testemunhamos em tempo real-virtual o abalo que o fortíssimo terremoto e o devastador tsunami provocaram no Japão - uma das sociedades mais avançadas, disciplinadas e prudentes do mundo, terceira economia mundial.

A catástrofe dita natural nos remete à fragilidade da nossa espécie e do nosso modo de vida, já o morticínio no norte da África funciona como advertência contra nossa irreprimível vocação para o autoengano e ilusões.

O ditador egípcio Hosni Mubarak caiu em 18 dias, apostava-se que o déspota líbio Muamar Kadafi também despencasse, talvez num prazo ligeiramente maior e que o paradigma logo se propagaria pela região.

Negativo: o clã Kadafi está militarmente firme, pronto para esmagar os rebeldes, a não ser que caia do céu, literalmente, uma ajuda externa. Esta ajuda não poderá vir das potências ocidentais que, desta vez, só tomarão alguma iniciativa militar com o suporte legal da ONU. Como este suporte seria liminarmente vetado pela China e Rússia, sócias-atletas do clube das autocracias e violadoras dos direitos humanos, qualquer tipo de intervenção pacificadora só poderia vir da Liga Árabe reunida no Cairo.

Fundada em 1945, a entidade tem um relativo peso político devido às divergências entre os interesses de seus 22 membros. Um eventual apoio aos rebeldes líbios significará um sinal verde aos insurgentes do Iêmen, Bahrein e Arábia Saudita o que criaria uma situação paradoxal: o triunfo do tirano "socialista" Kadafi servindo de inspiração aos conservadores regimes repressivos ora ameaçados, especialmente a Arábia Saudita que tem grande força dentro da Liga.

O poderoso Egito, ainda não estabilizado depois do turbilhão que decapitou o seu dirigente Hosni Mubarak, teria ponderáveis razões humanitárias para intervir em benefício do fragmentado vizinho: dezenas de milhares egípcios que trabalham na Líbia se acotovelam, famintos, há algumas semanas na fronteira.

Algum tipo de ajuda poderia abrir negociações entre os diferentes atores do conflito líbio oferecendo uma saída honrosa aos Kadafi e uma oportunidade ao estamento militar egípcio para consolidar sua função institucional.

De qualquer forma, uma nova realidade: a lenta recuperação da economia mundial foi subitamente estancada pelo forte aumento no preço do petróleo acionado pelo tsunami árabe. Associado ao catastrófico terremoto-tsunami ocorrido no Japão escancara-se uma agourenta conjunção de fúrias como há muito não se via.

Alberto Dines é jornalista

FONTE: JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Dois mundos:: Míriam Leitão

Velhos fantasmas rondam a Europa. Um deles, o do calote da dívida dos governos, ficou mais próximo na semana passada, com novos rebaixamentos da qualidade da dívida. As altas recentes do petróleo estão batendo em inflação, já alta. Na Inglaterra, o índice de preços ao consumidor deve chegar a 4,5%. Na Zona do Euro, está mais baixa, mas já se fala em alta de juros.

O nome desse fantasma é estagflação, porque os países não crescem, mas os preços, sim, por causa da alta das commodities em geral e, agora, do petróleo. A tragédia do Japão derrubou na sexta-feira o preço do barril, mas ele continua oscilando em torno de US$100.

Alguns países de alto risco, como a Irlanda, são diretamente atingidos pela crise na Líbia. O país em guerra civil é o maior fornecedor dos irlandeses. As dúvidas sobre a possibilidade de reestruturação da dívida de Portugal, Espanha e Grécia continuam. Primeiro, foi a S&P que rebaixou a Espanha. Agora, a Moody"s. Por mais que as agências tenham errado no passado, elas continuam produzindo efeitos na formação da taxa de risco dos países. Se a inflação continuar subindo, e o Banco Central Europeu decidir subir os juros, vai aumentar a dificuldade de financiamento de diversas economias.

O desemprego médio nos 27 países que compõem a União Europeia se mantém alto, em 9,5%. Na Espanha, o índice chega a 20,4%. Entre os jovens de até 25 anos, a taxa é assustadora: 43%. O aumento dos juros pode ser problemático para a Espanha porque o país ainda se recupera de uma bolha imobiliária. E cerca de 97% dos contratos de hipotecas no país foram feitos com juros flutuantes.

- A situação não é fácil. Alguns países já vivem claramente o risco de estagflação, como a Inglaterra. Eles tiveram queda de 0,5% do PIB no quarto trimestre de 2010, e a inflação em 12 meses está em 4%, o dobro da meta perseguida pelo Banco Central inglês. Com a alta dos preços do petróleo, a tendência é que a taxa continue pressionada nos próximos meses - diz Raphael Martello, da Tendências Consultoria.

Os juros da dívida portuguesa com vencimento em cinco anos bateram recorde ontem, chegando a 7,98% (vejam no gráfico). Isso, no mesmo dia em que o governo anunciou novas medidas de austeridade. Na Espanha, testes feitos pelo agência de risco Moody"s para medir a solvência do sistema financeiro apresentaram, num pior cenário, a necessidade de financiamento de 100 bilhões. O governo afirma que o valor é bem menor, de 15 bi. A discordância só aumenta as incertezas sobre o país.

- Tanto Espanha quanto Portugal se recusam a receber ajuda financeira por questões políticas. Mas o ideal seria as duas economias aceitarem recursos do FMI para dar tranquilidade às rolagens de dívidas, principalmente este ano. Isso não acontece, e o problema vai sendo empurrado com a barriga. O compromisso de corte de gastos assumido pelo governo português é tão alto que o mercado avalia que dificilmente será cumprido - explica Monica de Bolle, da Galanto consultoria.

O economista Alexandre Póvoa, da Modal Asset, lembra que os espanhóis tem 138 bilhões de dívida para rolar este ano.

- O calendário é pesado e qualquer deslize pode gerar problemas. A favor dos espanhóis está o fato deles serem a 4ª maior economia da Europa e ainda serem grau de investimento - afirmou.

Enquanto a Europa vive esse momento difícil, o Brasil continua surfando. O fluxo de capitais para o país nos primeiros dois meses do ano, em volume, superou o do ano passado inteiro. O economista José Alfredo Lamy, da Cenário Investimentos, acha que o Brasil ganhou um presente do mundo, que já dura oito anos: o aumento forte dos preços das commodities que o país exporta:

- Está entrando muito dólar no país há oito anos. Nossos preços de exportação subiram muito. Isso foi, em parte, pela política de Alan Greenspan de derrubar as taxas de juros de 6% para 1% e, depois, de Bernanke, que na crise derrubou de 5% para zero. As quedas produziram ondas de busca de alta rentabilidade dos ativos.

Ele acha, no entanto, que o Brasil não aproveitou o momento como devia e aposta que isso não durará para sempre:

- Nenhuma alta de commodities dura para sempre. Há um dia em que os preços caem. O Brasil teria que ter aproveitado esse presente e feito seu dever de casa. Mesmo com toda a ajuda externa, o país tem uma política fiscal expansionista, déficit em transações correntes, pressões inflacionárias e o câmbio está fora do lugar. Quando o dólar subir, as pressões inflacionárias também vão subir.

Quem olhasse o mapa do mundo na sexta-feira à tarde no "Financial Times" poderia conferir: todas as bolsas em queda, só a do Brasil em alta. Se olhasse o mapa-múndi com as informações sobre terremotos, veria de novo o Brasil como território livre do problema. É aproveitar toda a nossa sorte de sempre e o bom momento.

FONTE: O GLOBO

Dilma, lidando com ''o pós-Lula''::Pedro S. Malan

A expressão "pós-Lula", por estranho que pareça, causa desconforto e mesmo irritação a muitos adeptos do lulopetismo. A princípio, não deveria ser assim. Afinal, é um fato inegável que "o cara" não é mais de jure e de facto o presidente da República há exatos dois meses e treze dias. Nesse sentido, a expressão "o pós-Lula" poderia, e deveria, ser entendida apenas como uma forma abreviada, e portanto melhor, de se referir ao "período que se segue ao término dos oito anos da administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva". Simples assim. Factual e incontroverso, não?

Não, dizem lulopetistas que respeito. E é importante, a meu ver, tentar entender suas razões. Primeiro, porque veem no uso da expressão "pós-Lula" disfarçada ironia e inconfessáveis propósitos políticos, todos expressando veladas expectativas e obscuros desejos de que o ex-presidente pudesse "sair de cena", privando a sociedade brasileira de sua marcante presença, de seus conselhos, opiniões e lições de vida.

Vale lembrar que foi isso o que fez em 2003 o então - como ainda hoje - estrategista-mor do petismo (J. Dirceu), reagindo a um comentário público do então ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: "Ele deveria estar calado em casa, de pijama e chinelos cuidando dos netos". Que eu tenha tomado conhecimento, ninguém sugeriu o mesmo a Lula. Que, por sinal, disse mais de uma vez que iria mostrar a todos "como deve se comportar um ex-presidente quando desencarna". Deixo ao eventual leitor imaginar a qual (ou a quais) ex-presidente(s) se referia Lula.

Há uma segunda razão para o desconforto e a irritação com a expressão "pós-Lula", por vezes interpretada como uma tentativa de excluir do rol das possibilidades futuras "o retorno" de Lula à Presidência da República em 2014 ou 2018 - o que exigiria sua constante presença e visibilidade nos meios de comunicação. Essa possibilidade de retorno certamente existe tanto para o principal estrategista do lulismo (o próprio Lula) quanto para o estrategista-mor do petismo. Tanto é assim que um dos mais fiéis escudeiros do ex-presidente, hoje ministro importante do governo Dilma Rousseff, já disse em entrevista que se a presidente Dilma fizer um bom governo será candidata à reeleição. Se não, o lulopetismo deverá ter Lula de volta em 2014 (ou 2018). Como falar em pós-Lula nesse contexto?

Há uma terceira, e talvez mais importante, razão para o desconforto e a irritação com o uso do termo "o pós-Lula": a visão de que este teria o propósito de tentar "desconstruir" o governo Lula, chamando a atenção para alguns de seus legados e heranças mais problemáticos. A administração da presidente Dilma Rousseff estaria obrigada - ainda que pisando em ovos - a lidar com tais legados e heranças nos primeiros meses e anos de seu mandato.

A nova presidente começou bem seu governo em algumas áreas, marcando claramente - falemos com franqueza - suas diferenças com a herança recebida dos anos Lula. Dois exemplos, visíveis a olho nu: primeiro, as anunciadas mudanças, ora em curso, na condução da política externa, com o objetivo de recuperar parte da credibilidade que havia sido perdida pela diplomacia brasileira. Segundo, discursos (lidos) pela nova presidente - em especial o mais recente, no evento comemorativo dos 90 anos da Folha, sobre o papel da liberdade de imprensa - mostraram uma convicção e um respeito à diversidade de opiniões que Lula raramente foi capaz de expressar. Vide seu famoso "a opinião pública somos nós", seus reiterados alentos aos adeptos do "controle social" da mídia e suas acusações a tentativas "golpistas" (sic) da grande imprensa.

A nova presidente deu sinais - e tomou certas decisões - que evidenciaram que percebeu claramente quão difícil será lidar com o pós-Lula na área política. No Executivo federal e suas empresas e agências, todas as facções e correntes do PT, do PMDB e dos principais partidos aliados estão representadas desde o governo passado, vale dizer, ocupando espaços numa máquina pública crescentemente aparelhada. Os 38 ministérios e mais de uma centena de empresas e órgãos do Executivo e respectivas parafernálias não parecem suficientes para as voracidades envolvidas. A presidente teve de se envolver pessoalmente em vários casos de conflito de interesse para tentar manter seu compromisso de posse: "... formar um governo em que capacidade profissional, liderança e a disposição de servir ao País serão os critérios fundamentais".

É, contudo, no campo da economia que se colocam hoje as questões mais prementes a lidar neste pós-Lula de maiores riscos e incertezas - no Brasil e no mundo. Neste contexto, são imperdíveis tanto as perguntas quanto as respostas da longa e reveladora entrevista concedida pelo ministro Guido Mantega a Eleonora de Lucena (Folha de S.Paulo, 27/2). Provocado, o ministro afirma que "o governo Dilma não é parecido nem com Lula 1 nem com Lula 2. É parecido com Lula 3". E elabora longamente sobre o tema. O que me trouxe à memória um excelente artigo da competente Rosângela Bittar, publicado no Valor de maio de 2006, poucas semanas após a saída de Palocci e de sua substituição pelo atual ministro. O título do artigo era revelador de seu conteúdo: A arte de mudar negando mudanças.

É isso, a meu ver, o que a situação exigirá do governo Dilma na área econômica, para lidar com as consequências da vasta expansão de gastos públicos de boa parte do Lula 2. E, principalmente, com as expectativas que esse expansionismo gerou nas amplas "bases de sustentação" do governo quanto às possibilidades futuras de acesso - direto ou indireto - ao erário. O verbo "lidar" tem vários significados possíveis na rica língua portuguesa. No caso, todos se aplicam.

Economista, foi Ministro da Fazenda no Governo Fernando Henrique Cardoso

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Endividamento de famílias aumenta 46% na Era Lula

As famílias passaram a destinar 46% a mais da sua renda para pagar dívidas com bancos ao fim dos oito anos de governo Lula. Os cálculos são da LCA Consultores com base em dados do Banco Central. Em janeiro de 2003, o brasileiro comprometia 14,6% do ganho mensal para quitar empréstimos em bancos. Com a explosão do crédito na Era Lula, o percentual saltou para 21,4%. Em janeiro deste ano, atingiu 22,2%.

O ciclo vicioso das dívidas

Brasileiro já destina 22% da renda para cobrir endividamento

Wagner Gomes e Karina Lignelli

A fartura de crédito que marcou o governo Lula - e ajudou na ascensão da classe C - começa a exibir seu lado nada glamouroso. O comprometimento da renda do brasileiro com o pagamento de dívidas aumentou 6,9 pontos percentuais (46,6%) entre 2003 e 2010, segundo cálculos da LCA Consultores com base em dados do Banco Central (BC). De acordo com o BC, em janeiro de 2003, o brasileiro precisava destinar 14,6% do seu ganho familiar mensal para a quitação de débitos. Oito anos depois, em dezembro de 2010, esse percentual havia passado para 21,4%. Houve novo salto em janeiro deste ano (o dado mais recente divulgado pelo BC), quando o indicador atingiu 22,2%. Especialistas dizem que "o limite de segurança" para evitar um ciclo vicioso de dívidas é de 25% da renda.

Os dados do BC levam em consideração apenas as dívidas dos consumidores com os bancos. São dívidas com crédito pessoal, consignado (com desconto em folha de pagamento), financiamento de veículos e crédito habitacional. Não estão incluídas as pendências com cheque especial e cartão de crédito, que embutem taxas de juros superiores a 10% ao mês e costumam fazer os maiores estragos no orçamento.

- O crédito este ano vai ficar menos abundante e mais caro, o que significa que a capacidade de pagamento de dívidas pelas famílias deve piorar. Não temos uma trajetória explosiva de comprometimento da renda com dívida, mas é preciso atenção com essa luz amarela. O quadro para 2011 é menos benigno - afirma o economista Douglas Uemura, da LCA Consultores.

A estabilidade da economia e a oferta abundante de crédito nos últimos anos levou o brasileiro a experimentar um pouco o estilo de vida de consumidores de Primeiro Mundo. Nos EUA, segundo o Federal Reserve (o banco central americano), as dívidas comem 17% da renda. É menos do que no Brasil, mas é preciso considerar a diferença de renda entre os trabalhadores dos dois países. Enquanto nos EUA a média chega a US$4,4 mil por mês, no Brasil o valor é de cerca de R$1,5 mil (US$882).

De acordo com a Associação Comercial de São Paulo, o valor médio da dívida na capital paulista subiu 46,6% entre 2003 e 2010, passando de R$1.500 para R$2.200.

- Comprometer 23% ou 24% da renda é preocupante - diz Luiz Rabi, economista-chefe da Serasa Experian.

Rabi adverte que o cenário anterior de juros baixos e financiamentos a perder de vista passa por rápida mudança. É reflexo das últimas medidas anunciadas pelo Ministério da Fazenda, que, depois de estimular o crédito, agora tenta esfriar um pouco a velocidade da economia e tirar força da inflação. O prazo médio para financiamento de veículos, por exemplo, passou de 44 meses em novembro para 41 meses em janeiro, segundo dados da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac). Já o prazo oferecido para outros bens, como eletroeletrônicos e móveis, caiu de 16 para 12 meses - mesmo patamar de 2008 para 2009, marcada pela crise financeira.

Nesse cenário, o que só era endividamento pode se transformar em inadimplência. De acordo com o levantamento do Banco Central, em janeiro de 2003, as dívidas com atrasos superiores a 90 dias representavam 7,7% do total de crédito então disponível, de R$88,5 bilhões. Em janeiro passado, esse percentual era menor (5,7%), mas incidia sobre uma base mais encorpada (R$559,6 bilhões).

Na agência do Serviço Central de Proteção ao Crédito (vinculado à Associação Comercial), no Centro de São Paulo, as histórias de quem se endividou e tenta limpar o nome são semelhantes. Em 2006, quando era atendente em uma concessionária de veículos, Patrícia Alessandra dos Santos decidiu recorrer a um empréstimo para comprar roupas, sapatos e material escolar para os cinco filhos. Mas saiu do banco com mais: além do consignado, o gerente concedeu limite maior no cheque especial e cartão de crédito.

- Gastei além do que devia e começou a ficar difícil arcar com as contas. E o salário não acompanha - contou.

O que Patrícia não esperava era perder o emprego em 2009 e ficar cerca de um ano fora do mercado de trabalho. Sem dinheiro, as dívidas chegaram a R$6 mil. Hoje, empregada numa empresa de telemarketing, tem renda familiar de R$1.800. Conseguiu quitar dois terços do débito e negocia o restante com o banco em prestações em torno de R$50.

O motorista Marcos Antônio de Souza enfrentou situação parecida. Casado, com filhos, pagando pensão alimentícia, prestações de um carro, faturas do cartão de crédito e carnês de lojas, também perdeu o emprego e ficou oito meses parado. Resultado:

- Juntando tudo, devia uns R$23 mil - contou.

Há um ano, conseguiu um novo emprego como motorista, com renda em torno de R$1,3 mil, e chegou a pagar algumas dívidas menores. Agora, negocia.

- O banco precisa reduzir os juros.

Os sinais de que esse processo de endividamento não perdeu força aparecem em pesquisas divulgadas nas últimas semanas. No comércio, o total de endividados subiu nos dois primeiros meses de 2011, segundo a Confederação Nacional de Comércio (CNC). Um levantamento com 18 mil famílias em todo o país mostrou que o total de endividados passou de 59,4% em janeiro para 65,3% em fevereiro. No mesmo período, o percentual de famílias com dívidas em atraso passou de 22,1% para 23,4%. Destes, 7,7% não terão como pagar o que devem.

- À medida que a economia dá sinais de desaceleração com o crescimento mais fraco da indústria, a inadimplência deve aumentar - disse Carlos Thadeu de Freitas, economista-chefe da CNC e ex-diretor do BC.

FONTE: O GLOBO

ProUni: bolsas não chegam a alunos

O TCU constatou que 29% das bolsas do ProUni pagas pelo governo, entre 2005 e 2009, não foram preenchidas pelas universidades privadas, que receberam descontos da União.

Bolsas para ninguém

TCU descobre que 29% do ProUni não beneficiaram alunos, mas só universidades

Fábio Fabrini e Demétrio Weber

Oprograma Universidade para Todos (ProUni), que concede isenção fiscal em troca de bolsas para estudantes de baixa renda, paga por vagas não preenchidas. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que 29% das bolsas disponíveis entre 2005 e 2009 - o que equivale a 260 mil vagas - não foram ocupadas. Mesmo assim, as instituições de ensino privadas que participam do ProUni receberam desconto total dos impostos.

Embora já tenha contestado os números e a metodologia de cálculo do TCU, o Ministério da Educação (MEC) admite a distorção. O problema é consequência da lei que criou o ProUni, em 2005.

- Se você me perguntar se eu faria a lei assim, eu diria que não faria - resume o secretário de Educação Superior, Luiz Cláudio Costa.

Para ter direito à isenção fiscal, as universidades só precisam aderir ao programa e oferecer um percentual predeterminado de bolsas. A lei, no entanto, não exige que as vagas sejam preenchidas nem vincula a isenção a níveis mínimos de ocupação.

Nos últimos anos, o TCU realizou ao menos três auditorias no ProUni. O problema da ociosidade foi constatado já em 2008. "Da maneira como o programa está desenhado, as instituições têm recebido toda a isenção fiscal e não têm efetivado todo o benefício previsto", escreveram os auditores.

O TCU concluiu que não há estímulo para as instituições preencherem todas as vagas. Os auditores também entenderam que a falta de fiscalização in loco, por parte do MEC, dá margem a que as universidades manipulem dados e reduzam a oferta de bolsas.

Brechas para ações "oportunistas"

A investigação deu origem a um acórdão, aprovado em 2009, em que o tribunal determinou ao MEC que criasse mecanismos de incentivo à ocupação de bolsas, além de uma rotina de fiscalização nas faculdades. "Há brechas no sistema de cálculo que podem dar margem a comportamentos oportunistas de instituições de ensino superior que queiram obter vantagens no programa", aponta o relatório.

Quase dois anos após a aprovação do acórdão, o MEC começa a tomar providências. Em fevereiro, o ministro Fernando Haddad assinou portaria com regras para o preenchimento das bolsas que sobram ao fim da seleção feita pelo MEC. Antes, isso era tarefa das instituições, com base em critérios próprios. A partir deste mês, será criada lista de espera gerenciada pelo ministério. Costa promete fiscalizar o novo sistema.

O esquema de fiscalização, porém, ainda não saiu do papel. Segundo o secretário, ele será montado com base em dados do Censo da Educação Superior de 2009. Divulgado este ano, o censo contém nomes e CPFs dos estudantes.

Mesmo discordando da lei, Costa diz que é possível aperfeiçoar o ProUni, de modo a preencher praticamente todas as vagas, sem encaminhar novo projeto ao Congresso:

- Tenho certeza de que podemos chegar muito próximo de 100%.

A ociosidade no ProUni gera prejuízo ao governo, na avaliação do TCU. Nas contas dos auditores, o governo teria arrecadado R$104,4 milhões em 2005 e 2006, se concedesse a isenção com base nas bolsas ocupadas, e não nas oferecidas.

O assunto foi motivo de polêmica entre o tribunal e o MEC, em 2009, por causa de divergências de cálculo. Usando dados fornecidos pela Receita, o TCU concluiu que o custo médio das bolsas do ProUni, em 2006, era de R$601 mensais, maior do que as mensalidades cobradas na época: R$499.

O MEC contestou o dado, apresentando cifra bem menor: R$150. Na raiz da divergência, estão as bolsas ociosas. Para o Ministério da Educação, o valor da renúncia deve levar em conta o total de bolsas oferecidas. Já o tribunal considera as efetivamente ocupadas.

Não há consenso sequer sobre o valor total da renúncia e a fórmula de fazer o cálculo. O MEC considerou apenas a isenção concedida a instituições com fins lucrativos. Já o TCU incluiu na conta também a renúncia das universidades beneficentes.

Para o Ministério da Educação, as beneficentes devem ficar de fora, porque a isenção é prevista na Constituição e engloba gastos com outras atividades que não o programa. Dependendo da fórmula adotada, entraram ou saíram da conta R$617 milhões. O tribunal voltará a analisar o ProUni este ano.

Será uma oportunidade de tentar esclarecer outra divergência sobre o índice de ocupação de bolsas. Em 2009, quando contestou auditoria do TCU, o ministério sustentou que a ociosidade era de 11%, inferior a todos os índices calculados pelo tribunal.

Em 2011, a Receita Federal estima que a renúncia fiscal por conta do ProUni será de R$510,9 milhões, no segmento das universidades com fins lucrativos. A Receita, no entanto, não divulga isoladamente o montante de isenção das instituições beneficentes e das sem fins lucrativos.

De 2005 a 2010, o ProUni matriculou 748.754 estudantes. No ano passado, permaneciam no programa 440.830, já que os demais se formaram ou abandonaram o curso.

O diretor jurídico da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), José Roberto Covac, diz que a ociosidade não ocorre só no ProUni, mas nas demais vagas das universidades. Ele não vê problema na regra do ProUni que concede isenção com base na oferta de bolsas e não na taxa de ocupação.

Segundo Covac, a efetivação das matrículas e a permanência dos estudantes não dependem da vontade da instituição.

- Não se pode penalizar as partes em função de o aluno não ter concluído a matrícula - afirma Covac, criticando as conclusões do TCU. - Não cabe ao Tribunal de Contas mudar a lei. A função do tribunal é verificar o cumprimento das contas. E a lei está sendo integralmente cumprida.

Apesar de apontar falhas no ProUni, o TCU diz que o programa "é relevante e bem focalizado", pois, de fato, permite o acesso de estudantes pobres ao ensino superior. Em relatório aprovado no ano passado, o tribunal conclui que 37% dos beneficiários não chegariam à universidade se não fosse o programa.

FONTE: O GLOBO

Papéis revelam pistas sobre caso Rubens Paiva

Nome de militares que teriam tido contato com desaparecido podem ajudar a esclarecer episódio

Wilson Tosta

Um pacote de documentos oficiais, guardado no Arquivo Nacional, sobre o desaparecimento, em 1971, do ex-deputado Rubens Paiva, contém pistas que podem ajudar nas investigações sobre o caso, reabertas em janeiro pelo Ministério Público Militar.

Na documentação, obtida pelo Estado, constam nomes de militares que supostamente tiveram contato com Paiva, sequestrado em casa pela repressão política e, segundo grupos de defesa dos direitos humanos, morto após tortura por integrantes do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do então I Exército, no Rio.

Na versão oficial, ele desapareceu após ser resgatado por terroristas. Para opositores da ditadura, trata-se de tentativa de encobrir o assassinato.

A papelada, oriunda do Quartel-General do I Exército, inclui cópia da sindicância que teria sido instaurada para apurar a "fuga". O relatório de três páginas, de 11 de fevereiro de 1971, diz que o capitão Raimundo Ronaldo Campos, o primeiro-sargento Jurandir Ochsendorf e Souza e o terceiro-sargento Jacy Ochsendorf e Souza levavam o ex-parlamentar nessa suposta diligência, no Alto da Boa Vista, na zona norte.

A investigação, do major Ney Mendes, formalizou a versão militar: o Fusca em que os militares e o prisioneiro seguiam teria sido fechado na Estrada de Furnas. Houve tiroteio, Paiva correu, o carro pegou fogo e os terroristas o resgataram.

"Na refrega, houve a evasão do Sr. Rubem (sic) Beirodt Paiva para local ignorado, não sabendo as autoridades de segurança o seu paradeiro, de vez que a preocupação dos referidos agentes era de se defender e também a de seu acompanhante, cujas consequências foram a queima do carro e a interrupção das diligências que estavam se processando", escreveu o major Mendes, que pediu o arquivamento do caso.

Também consta na papelada a assinatura do major-chefe do DOI/I Exército, Francisco Derlurgo Santos. Ele dirigiu o ofício ao chefe da 2ª Seção (Informações) do Estado-maior do I Exército e encaminhou o documento em que Campos comunicava a "fuga" de Paiva. "Esclareço que, tão logo tomei conhecimento do fato, compareci ao quartel, onde tomei conhecimento dos fatos e as providências necessárias."

O relatório cita, ainda, os peritos primeiro-tenente comandante do Pelotão de Investigações Criminais, Armando Avolio Filho, e o terceiro-sargento Lucio Eugenio de Andrade. Eles assinam, com o coronel José Ney Fernandes Antunes, do 1º Batalhão de Polícia do Exército, o laudo pericial 01/71 - fantasioso, para ativistas -, feito de onde o ex-deputado teria conseguido, em meio ao tiroteio entre militares e terroristas, fugir do carro. A perícia teria sido feita na manhã de 22 de janeiro de 1971. A "fuga" teria ocorrido de madrugada.

Curiosamente, mais de 30 anos depois, um dos peritos foi apontado como ex-torturador. Coronel e adido militar brasileiro em Londres, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Armando Avolio Filho foi denunciado pelo jornal inglês The Guardian e teve seu afastamento pedido pela Anistia Internacional. Acabou exonerado.

Investigações. O promotor militar Otavio Bravo avalia que a Justiça brasileira equipara sumiços como o de Paiva a sequestros e, enquanto não forem objeto de informações seguras, são crimes em andamento e estão fora da Lei de Anistia e não prescritos. Ele quer investigar pelo menos 40 desaparecimentos de ativistas que teriam passado pela "Casa da Morte", centro de tortura e extermínio mantido pelo DOI em Petrópolis. Paiva pode ter passado por lá.

Bravo pretende ouvir primeiro testemunhas do desaparecimento de Paiva e de mais três pessoas: Stuart Angel Jones, Carlos Alberto Soares de Freitas - que militou com a presidente Dilma Rousseff na organização VAR-Palmares - e Mário Alves. Na lista estão parentes desses quatro.

PARA LEMBRAR

Documentos que estavam em poder de órgãos ligados à repressão política no regime militar estão sendo reunidos no Arquivo Nacional desde 2005. A iniciativa foi da então ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil. Em dezembro daquele ano ela mandou para o arquivo tudo que estava em poder da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e antes pertencera ao Serviço Nacional de Informações, ao Conselho de Segurança e à Comissão Geral de Investigações.

Dilma, que foi torturada na ditadura, seguia orientação de decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva - o qual, por sua vez, acatara recomendação da ONU para que o Brasil tornasse públicos os documentos.

Pesquisadores e familiares das vítimas reclamam até hoje, porém, da falta de acesso a arquivos que ainda estariam em poder das Forças Armadas. Do outro lado, os militares alegam que os papéis foram destruídos. / Roldão Arruda

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Posição de Jobim gera desconforto no Planalato

Ameaça de deixar governo desfavorece ministro da Defesa

BRASÍLIA. Outra situação de desconforto é com o ministro da Defesa, Nelson Jobim. No Planalto, ele é visto como o melhor nome para a pasta, principalmente pela autoridade que tem junto aos militares. Mas existe incômodo com o que foi classificado internamente de "chantagem" permanente, que são os recados dele, pelos jornais, de que pode deixar o governo nos próximos meses. Jobim estaria contrariado com o corte orçamentário em sua pasta, principalmente por causa da reação dos militares.

Outro integrante que ficou frágil na equipe é a ministra da Cultura, Ana de Hollanda. Há duas semanas, Dilma saiu em socorro de Ana ao cancelar a nomeação do sociólogo Emir Sader, que tinha chamado a ministra de "meio autista", para o comando da Fundação Casa de Rui Barbosa. Mas a percepção no núcleo do governo é que Ana de Hollanda ainda precisa mostrar autoridade e pulso para conduzir os problemas da Cultura e, principalmente, o polêmico debate sobre direitos autorais.

Numa situação semelhante está o ministro do Turismo, o peemedebista Pedro Novaes. Até agora, o governo não viu uma ação concreta da pasta do Turismo, e Dilma praticamente não se encontrou com Novaes.

- Mas, nesses dois primeiros meses, não há uma avaliação consolidada de todos os ministros. Ao mesmo tempo que há cobranças num dia, a presidente pode fazer elogios no outro - observou um assessor direto de Dilma.

Desempenho de Palocci superou expectativas

Mas também são muitos os exemplos positivos. Para Dilma, superou todas as expectativas o desempenho do ministro Antonio Palocci. E principalmente a relação direta com ele no Planalto. Na transição, houve uma resistência inicial à presença de Palocci no Planalto, mas, segundo interlocutores, hoje ela avalia que o seu maior acerto foi ter nomeado o ex-ministro da Fazenda para a Casa Civil. Nesse período, ele ganhou ainda mais a confiança de Dilma.

Outras nomeações muito elogiadas são as dos ministros José Eduardo Cardozo (Justiça) e Alexandre Padilha (Saúde). Mas a grande surpresa para Dilma foi o desempenho do ministro Fernando Bezerra Coelho (Integração Nacional). A presidente tem ressaltado a rapidez nas providências do ministro no desastre ambiental da Região Serrana do Rio, e também em outros episódios semelhantes ocorridos nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul.

Outro ministro que reforçou a boa impressão que já causava na presidente é Antonio Patriota (Relações Exteriores). Ele conseguiu dar uma nova personalidade à política externa do governo, de forma suave.

FONTE: O GLOBO

Os ''indesejáveis'' do exército na ditadura Vargas

Livro do pesquisador carioca Fernando Rodrigues revela a política discriminatória que rejeitava negros, judeus e filhos de estrangeiros nas escolas militares para evitar a ""contaminação"" da elite do País

Leonencio Nossa

É uma história que, por ordem do Exército, deveria ter sido queimada. Um livro recém-lançado reconstitui os exames de seleção das Escolas de Formação de Oficiais, entre 1931 e 1946, que rejeitavam candidatos filhos de negros, judeus, islâmicos, italianos, de mulheres separadas ou de pais barbeiros e peixeiros. Nas 240 páginas de Indesejáveis (Editora Paco Editorial), o historiador Fernando Rodrigues mostra como os governos revolucionário, constitucionalista e ditatorial de Getúlio Vargas tentaram moldar uma elite militar sem homens considerados de "raça inferior".

"É de cor." Essa constatação foi suficiente para o Exército rejeitar o pedido de um estudante para ingressar na Escola Militar de Realengo em 1941, no auge do Estado Novo. A caneta vermelha do avaliador das fichas de inscrição dos candidatos, geralmente o próprio ministro da Guerra, foi implacável também com filhos de estrangeiros. Um dos candidatos considerados "inaptos" era filho de pais "italianos sem significação social", segundo registrou o avaliador.

Outro candidato foi rejeitado por ser filho de barbeiro. "A profissão de barbeiro, embora honesta, é servil e a gorjeta regulava sua situação econômica, sendo que em tal ambiente não é de se esperar uma formação moral sólida, como a que deve ter um oficial."

Nos últimos seis anos, Fernando Rodrigues, de 46 anos, doutor em história pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), analisou 16 mil fichas guardadas no Arquivo Histórico do Exército. Por norma baixada pelo então ministro - e depois presidente - Eurico Gaspar Dutra, os documentos deveriam ser incinerados após dois anos. Não se sabe o motivo de o material ter permanecido nas estantes do Exército. No período analisado pelo pesquisador, estiveram nos bancos das escolas militares homens que teriam influência na vida do Exército e do País na segunda metade do século 20, especialmente durante o regime militar - Emílio Médici e Ernesto Geisel passaram pela Escola de Realengo nos anos 1920. A pesquisa analisa também o período entre 1905 a 1929.

Rejeitados. Na função de ministro da Guerra, Dutra analisou pessoalmente parte das fichas de ingresso nas escolas militares. Para ele, candidatos "de cor" não podiam ser aceitos porque as escolas formariam os futuros oficiais que iriam dirigir o Exército e defender a Nação. A ficha dos rejeitados levava um "arquive-se".

Rodrigues destaca que, primeiro, o Exército excluiu candidatos que pudessem ser indisciplinados ou associados à política. Depois, discriminou negros, judeus e islâmicos. "Entre 1931 a 1946, observei o esforço institucional na formação de uma elite militar no Exército Brasileiro, no contexto das tensões estabelecidas pela construção histórica das relações políticas, sociais e culturais na Escola Militar", escreve o historiador.

Ao Estado, Rodrigues disse que as ideias racistas e discriminatórias não surgiram dentro do Exército. A instituição, como outras, foi atingida pelas ideias correntes da época. "O que mais me marcou na pesquisa foi perceber a intenção de criar uma elite militar que atendesse aos interesses nacionais, que na verdade eram interesses de uma política sistemática que privilegiava brancos e católicos, influenciada até pela intelectualidade e pelas revistas da época."

Ele ressalta que o tema racismo e antissemitismo no Exército não é novo. "O ineditismo encontra-se na articulação do pensamento político de formação de uma elite militar em um Instituto de Ensino Superior e nos tipos de discriminação que foram detectados ao se analisar o acesso dos candidatos, buscando compreender as relações com a sociedade brasileira e compreender melhor a cultura corporativa dentro do Exército."

Ao analisar as fichas de ingresso na Escola Militar em 1942, o pesquisador constatou que 417 candidatos foram considerados "indesejáveis". Destes, foram rejeitados 53 candidatos por serem "de cor", 19 por virem de famílias de baixa condição social, 84 filhos de pais estrangeiros, 12 de pais de origem islâmica e 3 de origem judia. Os demais tiveram problemas como falta de documentação, má conduta em escolas militares e problemas de saúde.

As medidas para impedir a entrada de negros nas escolas militares foram tomadas quando ainda se usava a expressão "raça inferior". "O negro era o grande culpado pela miscigenação e pelo enfraquecimento do povo brasileiro", destaca o pesquisador.

"Neste clima de elitização social, com o domínio da raça branca em detrimento do judeu, do muçulmano e do negro, crescia o interesse na construção da identidade nacional", explica Rodrigues. "O contexto internacional articulava-se às tradições brasileiras racistas e religiosas que, impregnadas pelo nacionalismo crescente, apoiaram as práticas discriminatórias. Os ideais liberais foram logo substituídos pelo culto à força, à ordem, à disciplina, à personificação do chefe político, à raça pura e aos heróis nacionais."

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Forças tendem a ficar mais alheias à política', diz historiador

José Murilo Carvalho diz que Exército imaginado por general de Vargas é bem diferente do concebido no início da República

Leonêncio Nossa


Um dos mais destacados historiadores brasileiros da atualidade, José Murilo de Carvalho, de 71 anos, observa que o Exército imaginado pelo general Góis Monteiro, um dos homens fortes do governo Vargas, era bem diferente da instituição concebida por Benjamin Constant no início da República. Doutor pela Universidade Stanford (EUA), Carvalho é autor do clássico Os Bestializados. De O Rio de Janeiro e a República Que não Foi e do recente best-seller Pedro II. Ser ou não Ser.

Quais foram os impactos da recriação do Exército durante a ditadura Vargas na vida da instituição e do País nas décadas seguintes?

O principal foi a transformação do Exército em poderoso ator político a serviço da construção do Estado. De 1889 até 1930, a instituição era mais foco de oposição e de revoltas do que de ordem. As reformas procuraram reduzir os conflitos internos, fortalecer a hierarquia, enfatizar o profissionalismo, definir um papel para a instituição. O espírito da reforma reflete-se na frase de Góis Monteiro, que, como tenente-coronel, comandou a ação militar de 1930: "É preciso fazer a política do Exército e não política no Exército". Afastar o Exército da política partidária era condição indispensável para que ele pudesse agir em bloco.

O Exército da ditadura militar absorveu mais os ideais do Estado Novo ou as doutrinas e concepções militares do século 19 e do começo do 20?

O Exército da ditadura era o mesmo que vinha sendo reformado desde 1930. Os condestáveis do Estado Novo, os generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, já estavam presentes na cúpula militar desde 1933. No Estado Novo, eles monopolizaram o ministério e a chefia do Estado-Maior. Foram eles também os principais agentes da deposição de Vargas. A nova visão do papel do Exército incutida após 1930 ajustava-se às preocupações que depois se consolidaram no Estado Novo: fortalecimento do Estado Nacional contra o que consideravam excessos do federalismo, ênfase na ordem, exacerbada pela luta ideológica trazida do cenário internacional, reformas de cima para baixo.

A tentativa de disciplinar o Exército e acabar com a fragmentação de poderes dos militares criou uma elite à parte das elites econômica, social e política?

Tudo começou antes do Estado Novo e eu diria que os esforços para unificar o Exército ajudaram a viabilizar o Estado Novo, isto é, dar apoio militar a Vargas. Se a unificação estivesse completa, provavelmente Góis Monteiro poderia ter assumido a ditadura, pois vontade não lhe faltava. A eliminação da política dentro do Exército exigiu um afastamento em relação à sociedade buscado por várias medidas: fortalecimento do corpo de oficiais, barreiras à promoção de praças ao oficialato, preparação ideológica, maior seletividade no recrutamento para os colégios militares, escolas preparatórias e Escola Militar. Hoje se diria que buscavam blindar o Exército contra influências externas. Mas já no Estado Novo outro tipo de contato se estabeleceu. A nova ênfase no desenvolvimento industrial aproximou militares de setores empresariais da época.

O estudo do historiador Fernando Rodrigues indica que o Exército adotou normas racistas e discriminatórias nos seus processos de seleção.

Ainda não li o trabalho citado. O Estado Novo, sem dúvida, exacerbou as medidas discriminatórias. O relatório secreto de 1940 indicava os critérios de exclusão de candidatos: nacionalidade, religião, orientação política, condições morais. Segundo depoimento de Nelson Werneck Sodré, que foi oficial de recrutamento, na prática eram discriminados judeus, filhos de estrangeiros, filhos de mulheres separadas dos maridos e "pretos". No Império e na Primeira República, o problema era oposto. De um lado, obrigar todos ao serviço militar, de outro, atrair a classe alta.

O que explica o distanciamento hoje das demais forças militares das elites econômica, cultural e política?

São restos dos ressentimentos gerados pela ditadura, que se aplicam sobretudo às áreas cultural e política. As coisas, no entanto, já estão mudando. Na área acadêmica já existem vários exemplos de aproximação e cooperação. O Brasil caminha para ter Forças Armadas voltadas para sua profissão, alheias à política partidária, em contato com os setores da sociedade em torno de problemas de interesse nacional. Só falta remover o último obstáculo, a questão dos desaparecidos durante a ditadura.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Redução da pobreza pode ocorrer só em estatística

João Carlos Magalhães

Prioridade da presidente Dilma, a eliminação da pobreza extrema pode ocorrer só estatisticamente se os beneficiários dos programas sociais não tiverem acesso a trabalho, educação, saúde e previdência social.

A avaliação é de Evilásio Salvador, professor do programa de pós-graduação em política social da Universidade de Brasília. Salvador defende a tese de que o sistema tributário faz com que os pobres paguem mais pelos programas sociais direcionados a eles próprios, o que limita seus efeitos na diminuição da desigualdade. Ao assumir, Dilma anunciou a criação de plano de erradicação da pobreza, mas a meta e a abrangência ainda não foram definidas. Leia a seguir trechos da entrevista de Salvador.

Folha - O que podemos esperar do projeto do governo de eliminar a pobreza extrema em quatro anos? É possível?

Evilásio Salvador - Se considerarmos como pobreza extrema a linha de corte do Bolsa Família [renda per capita até R$ 70], sim. Ou ainda, focalizada para quem ganha menos de um quarto do salário mínimo. A questão é que a política social não deve se limitar a transferir renda focalizada e com condicionalidades, sem a perspectiva de emancipação das pessoas da condição de pobreza absoluta, para a inserção no mercado e em uma vida autônoma.

Corre-se o risco de vermos uma eliminação estatística, mas não real, da pobreza?

Com certeza. Tudo depende da ótica que se analisa a questão. Se consideramos que aumentar a renda das pessoas de um quarto do salário mínimo para meio salário é suficiente para acabarmos com a pobreza extrema, teríamos resultado estático limitado a uma visão míope de economia e política social.

Que alternativa há para se definir miséria que não a renda?

Os indicadores tradicionalmente utilizados tendem a desconsiderar a questão distributiva, a distância que separa os ricos dos pobres. Os métodos estatísticos e as referências teóricas não são neutros. Revelam critérios, julgamento de valor e ideologia para legitimar determinado padrão de intervenção do Estado. Essa intervenção ocorre não para a superação da pobreza, mas com medida de produção de assistencialismo. Os indicadores de pobreza precisariam mensurar a evolução da redistribuição de renda, que passa pela desigualdade na estrutura do mercado de trabalho e pela elevada concentração de renda por duas óticas. A primeira, por meio da análise da distribuição funcional da renda, a elevada apropriação da renda pelos proprietários capitalistas. A segunda, o regressivo sistema tributário, que onera proporcionalmente os mais pobres e os trabalhadores. Por fim, pelo acesso a políticas universais, como educação e saúde.

Apesar de não ser o maior programa de transferência de renda no país, atribui-se ao Bolsa Família os maiores méritos. Até que ponto isso é verdade?

O Bolsa Família tem seu mérito. Mas ele não é a principal transferência de renda na área social. Os benefícios da seguridade social, como a Previdência Rural e o Benefício de Prestação Continuada, são responsáveis de tirar milhões da linha da pobreza.
Mais de 75% dos benefícios da seguridade social equivalem ao salário mínimo, valor, portanto, bem superior ao Bolsa Família.

Segundo sua tese, os mais pobres bancam dois terços do que o governo gasta com programas que beneficiam eles próprios. Como isso se dá?

O principal sistema de proteção social no Brasil é o da seguridade social, que engloba programas, benefícios e serviços no âmbito das políticas de previdência, assistência e saúde. Os tributos que financiam a seguridade social incidem, em grande parte, sobre o faturamento e as receitas das empresas, que acabam repassando para o consumo. Com isso, 62% das fontes de financiamento da seguridade são tributos indiretos, que oneram os mais pobres, que são os beneficiários dos programas sociais.

O que isso provoca?

A principal consequência é que os programas sociais e a transferência de renda no âmbito da seguridade acabam tendo efeitos limitados. Isso significa que são os beneficiários das políticas sociais que arcam com seu financiamento, seja por meio da contribuição direta para acesso aos benefícios da Previdência ou do pagamento de tributos indiretos. Isso confirma que temos um "Estado social", do ponto de vista do financiamento, que não faz redistribuição.

Eles não se beneficiam por ao menos receber de volta boa parte do que contribuem por meio dos tributos?

Sim. De fato, só em 2010, os beneficiários de transferência de renda no âmbito da seguridade social alcançaram 34 milhões pessoas. Além dos 12 milhões de benefícios do Bolsa Família. Contudo, isso não retira o financiamento regressivo desses benefícios. Por exemplo, 92% dos benefícios do Bolsa Família vêm de tributos regressivos [que pesam mais para os mais pobres.

Os ricos deveriam bancar essa assistência?

A carga tributária deveria ser progressiva. Isso significa que proporcionalmente os mais ricos deveriam pagar mais impostos e, portanto, arcar com o financiamento das políticas sociais. Isso possibilitaria uma redistribuição de renda.

Evilásio Salvador é economista, professor do programa de pós-graduação em Política Social da Universidade de Brasília. Venceu no ano passado o prêmio Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Tensão entre Dilma e centrais leva PSDB a tentar aproximação

Alckmin nomeia sindicalista para secretaria e Aécio procura virar interlocutor do partido com movimento

Tucanos perceberam que precisam se unir a trabalhadores para não perder outra eleição nacional, diz sociólogo


Uirá Machado e Daniela Lima

SÃO PAULO - Enquanto a presidente Dilma Rousseff mantém uma relação turbulenta com as centrais sindicais no início de seu governo, dois dos principais líderes do PSDB aproveitam o momento para se aproximar do sindicalismo.

O governador Geraldo Alckmin, após colocar um sindicalista à frente da Secretaria do Trabalho de São Paulo (Davi Zaia, do PPS), iniciou conversas com centrais que representam categorias importantes no Estado.

Além disso, levou para o governo dois tucanos eleitos deputados estaduais, abrindo caminho para o sindicalista Ramalho da Construção (PSDB), presidente do sindicato da construção civil do Estado, assumir uma cadeira na Assembleia Legislativa.

Com as articulações, Alckmin busca aproximar-se principalmente da Força Sindical e da UGT (União Geral dos Trabalhadores). Na avaliação dele, é preciso reconstruir ligações que foram minadas no governo José Serra.

O esforço do governador em demonstrar boa vontade com os trabalhadores é tão visível que já rende piadas entre os sindicalistas: "É só convidar que ele aparece", disse um deles. No último dia 25, por exemplo, Alckmin foi à cerimônia de posse da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação de Campinas.

MINAS GERAIS

Em outra frente, o senador Aécio Neves trabalha em parceria com o governador Antonio Anastasia (ambos do PSDB-MG) para despontar como "o" interlocutor dos tucanos com o sindicalismo.

No Congresso, Aécio faz questão de escancarar a boa relação que mantém com o deputado federal Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), presidente da Força Sindical.

O "namoro" público estremeceu as relações da Força com a CUT (Central Única dos Trabalhadores), tradicionalmente ligada ao PT.

Artur Henrique, presidente da CUT, disse que Paulinho fazia um "leilão de si mesmo" e estava "louco para cair no colo do PSDB".

Em Minas, Anastasia foi mais longe e criou o Comitê de Assuntos Sindicais, trazendo o sindicalismo para dentro do governo.

"Isso é uma novidade imensa para Minas. Aécio tinha uma relação fria com os sindicatos e buscava muita articulação de bastidor. Anastasia abre o governo para o debate político", avalia o sociólogo Rudá Ricci.

Mas, de acordo com Ricci, as movimentações de Alckmin e Aécio/Anastasia não se limitam a simples estratégias de governo. "Elas refletem uma tentativa de reorganização do PSDB", diz.

Para o sociólogo, "eles perceberam que precisam se aproximar dos trabalhadores para não perder mais uma eleição nacional".

Porém, segundo o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, "a aposta dos tucanos a princípio não tem como prosperar, pois o PT ainda é um partido de sindicalistas".

Para ele, a aproximação "iria contra o passado dos dois partidos" e seria preciso que Dilma entrasse em "rota de colisão" com as centrais. "E ela teria que ser suficientemente boba para isso", diz.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

José:: Carlos Drummond de Andrade

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, proptesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você consasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?