domingo, 16 de outubro de 2011

Opinião do dia – Pier Luigi Bersani : os indignados e a violência

"Nestas horas estão acontecendo violências e devastações inaceitáveis. Os provocadores que quiseram encenar uma autêntica guerrilha urbana atingem no coração as razões de um movimento que, em todo o mundo, quer expressar um mal-estar e uma crítica à ordem atual da economia mundial. Neste ponto, é indispensável uma condenação coletiva e inequívoca de todo e qualquer ato de violência e um rigoroso isolamento entre os movimentos, que se manifestaram pacificamente, e aqueles que se tornaram protagonistas destes gestos inaceitáveis".

Pier Luigi Bersani, secretário do Partido Democrático Italiano, sobre os atos de violência na Itália no dia das manifestações dos indignados. Portal do PD italiano e L’Unità, 16/10/2011

Manchetes de alguns dos principais jornais do Brasil

O GLOBO
Gastos com proteção social já superam investimentos
Municípios não reagem à dengue

FOLHA DE S. PAULO
Amazônia vira motor de desenvolvimento
Orlando Silva é acusado de receber propina
Roma em chamas

O ESTADO DE S. PAULO
Brasil não sabe quanto custará a Copa
Sindicato mira contribuição de servidores da Câmara

CORREIO BRAZILIENSE
Crise global leva milhares às ruas em 951 cidades
De olho no humor do dragão
Pagou motel com cartão corporativo
De quem Dilma não gosta

ESTADO DE MINAS
Corporativo paga tudo, até motel

ZERO HORA (RS)
Volks avalia credenciais do RS para receber fábrica
Um mistério lacrado há três décadas
O terceiro tempo de Lula

JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Por dentro do Enem
Outro ministro de Dilma sob suspeita

Crise global leva milhares às ruas em 951 cidades

Protestos inflamam 951 cidades no mundo

Milhares de pessoas vão às ruas em 82 países para lutar contra os cortes orçamentários e a crise global

Num dia mundial de protestos por causa da crise econômica, milhares de pessoas foram às ruas ontem em 951 cidades de 82 países no que foi chamado de “o grito dos indignados”. Das Américas à Ásia e da África à Europa, eles se mobilizaram contra o desemprego, o sistema financeiro e os cortes orçamentários realizados por governos como o grego e o espanhol. Cidades como Roma, Berlim e Londres lideraram as manifestações na Europa, mas as passeatas se estenderam pelos cinco continentes. Para fazer do 15 de outubro uma data simbólica, os revoltosos se reuniram em frente a sedes financeiras com faixas, cartazes, máscaras e bandeiras.

A proposta era fazer protestos pacíficos. Mas, em Roma, pessoas não identificadas destruíram vitrines de bancos, colocaram fogo em três carros e em um anexo do Ministério da Defesa. As forças policiais reprimiram mascarados que avançavam contra os prédios. Os manifestantes revidaram lançando granadas de fumaça, coquetéis motolov e garrafas, enquanto outros milhares de manifestantes seguiram gritando pelas ruas da capital italiana, principalmente nas imediações do Coliseu.

Na Alemanha, 5 mil pessoas empunharam cartazes e faixas diante do Banco Central Europeu (BCE), em Frankfurt. Outras 5 mil concentraram-se em Berlim, perto do Portão de Brandemburgo, contra a destruição do Estado Social Europeu. Em cada cidade, além de levantar as bandeiras contra a crise, a população lutou por melhorias locais.

Epicentro

Nas Filipinas, os moradores pediram o “fim da exploração pelas multinacionais”. Também houve protestos em países como Austrália, Bósnia, Romênia, Portugal, Estados Unidos e Holanda. Na Espanha, onde o desemprego entre jovens de 16 a 24 anos chega a 46,1%, ao menos cinco protestos saíram ao longo do dia de diferentes bairros e se reuniram na Porta do Sol, epicentro do movimento que inspirou todo o mundo. Em Londres, a estrela foi o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, que publicou informações confidenciais de governos na internet e aguarda em liberdade a decisão do pedido de extradição pela Suécia.

A onda ocorreu no dia do encontro do G-20 em Paris, no qual ministros das Finanças e presidentes de bancos centrais das 20 principais economias do mundo discutiram a crise. Os organizadores se basearam na filosofia do movimento Ocupe Wall Street, que vem causando transtornos nas imediações da rua considerada o centro do mercado financeiro do globo. A convocação da população foi feita em especial pelas redes sociais, como o Facebook e o Twitter.

FONTE: CORREIO BRAZILIENSE

Roma em chamas

Manifestantes queimam carros na capital italiana, em dia de protesto contra os banqueiros e o mercado financeiro, a quem responsabilizam pela crise econômica; jornada mobilizou cidades de 82 países

Manifestações espalham-se por 82 países

Roma registrou os maiores protestos contra o capitalismo, com 200 mil presentes, e houve confrontos com polícia

Inspirados pelo "Ocupe Wall Street", atos chegam a 950 cidades; SP, Rio, Porto Alegre e Curitiba têm protestos

De Wall Street para as ruas de 950 cidades de 82 países em todos os continentes.

Dezenas de milhares de manifestantes, inspirados pelo movimento que há quase um mês protesta contra a crise econômica mundial em Nova York, espalharam-se ontem pelo mundo ao pedir "união por uma mudança global".

A maioria das manifestações foi pacífica, com exceção da Itália, onde 200 mil pessoas foram às ruas de Roma estimuladas também pela decisão do Parlamento, anteontem, de manter o premiê Silvio Berlusconi no poder.

Em Roma, vários carros foram incendiados e manifestantes encapuzados destruíram agências de bancos. A polícia tentou conter os protestos com gás lacrimogêneo. Cerca de 70 pessoas ficaram feridas, três com seriedade. Todos os museus da capital foram fechados.

Berlusconi disse que os autores da violência serão "identificados e punidos". Em Nova York, onde tudo começou, 5.000 pessoas marcharam pelo distrito financeiro de Manhattan e ocuparam a Times Square. Ao menos 20 delas foram presas em um banco quando fechavam suas contas para protestar.

Sem agenda específica, a não ser uma crítica difusa ao grande capital, os manifestantes pelo mundo se organizam em grande medida por redes sociais como Facebook.

Além dos jovens dos EUA, tomam como modelo a Primavera Árabe e os "indignados" europeus. Ontem, Barcelona, na Espanha, um dos berços dos "indignados", foi a segunda cidade que registrou mais manifestantes, 60 mil. Em Madri, a Porta do Sol recebeu mais de 40 mil pessoas.

Em Portugal, os manifestantes de Lisboa e Porto também somaram 40 mil. As alemãs Berlim e Frankfurt registraram passeatas com 5.000 participantes.

ASSANGE

Em Londres, os protestos reuniram 2.000 pessoas em frente à Catedral de St. Paul. Nas escadarias da igreja, um manifestante chamou especial atenção: Julian Assange, do site WikiLeaks.

Ovacionado pelo público, ele foi depois abordado por policiais que o obrigaram a tirar uma máscara que usava. Os protestos se espalharam ainda por Ásia, Austrália e África, mas em menor escala.

Em Tóquio, 200 manifestantes se reuniram em frente à Tokyo Electric Power, operadora da central atômica de Fukushima, epicentro da catástrofe nuclear de março.

No Brasil, São Paulo, Rio, Porto Alegre e Curitiba tiveram manifestações. Na capital paulista, 200 jovens armaram barracas no Vale do Anhangabaú para passar uma semana, mas o acampamento foi desmontado a pedido de guardas civis.

No Rio, 150 pessoas se reuniram na Cinelândia, exibindo faixas contra a corrupção.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Militante do PC do B acusa ministro de corrupção

Policial revelou a Veja esquema de desvio de recursos de programa do ministério, do qual também é investigado; Orlando Silva desqualifica denúncia

Amanda Romanelli

GUADALAJARA - O ministro do Esporte, Orlando Silva, é apontado como principal beneficiário de um suposto esquema de desvio de dinheiro público por meio de convênios de sua pasta com organizações não governamentais (ONGs) pelo policial militar João Dias Ferreira, investigado como um dos integrantes do grupo.

Em entrevista à Veja, o policial militar e militante do PC do B confirma o favorecimento do partido nos contratos e afirma que o ministro recebeu pessoalmente remessas de dinheiro do esquema. Ele citou ainda outra testemunha do esquema, Célio Soares Pereira, que também confirmou à revista ter entregue dinheiro ao ministro e ao motorista dele na garagem do prédio do ministério. Pereira controlava a arrecadação de ONGs cadastradas no Programa Segundo Tempo, do ministério.

O ministro interrompeu sua agenda de trabalho ontem em Guadalajara, cidade em que são realizados os Jogos Pan-Americanos, para rebater, por quase 40 minutos, as denúncias. Afirmou que vai processar por calúnia José Dias Ferreira e Célio Soares Pereira e que acionou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para que as denúncias sejam investigadas pela Polícia Federal. Também afirmou estar disposto a ir ao Congresso para dar explicações sobre o assunto.

"Sei que rapidamente, até mais do que as pessoas imaginam, a verdade virá à tona. São acusações gravíssimas e vou reagir à altura." Orlando Silva disse que se encontrou com o policial uma única vez. "O único momento que encontrei este caluniador foi em uma audiência, no ano de 2004 ou de 2005, por recomendação do então ministro Agnelo Queiroz. Ele era presidente de uma entidade relativa ao kung fu em Brasília e queria estabelecer um convênio com o ministério. Foi a única vez que encontrei essa pessoa. Sobre a segunda pessoa (Célio), o que posso dizer é que não faço a mínima ideia de quem seja. Nunca o encontrei."

Orlando confirmou que houve assinatura de convênio com as entidades lideradas por José Dias Ferreira, mas disse que irregularidades no uso das verbas (que seriam da ordem de R$ 3 milhões), descredenciaram as ONGs. "Existe um processo no TCU que exigirá a devolução destes recursos porque não temos uma conduta complacente com a má utilização de recursos públicos. O fato de ele ter sido membro do meu partido e de ter relações políticas em Brasília não me interessa. Pode estar sendo criada uma cortina de fumaça em torno deste assunto."

"Agora, uma pessoa que já foi presa, é alvo de um inquérito policial, vira a fonte da verdade. Coloco-me à disposição para ir ao Congresso, já na próxima semana, para dar explicações. Estou consciente da minha conduta e do meu compromisso ético. Um bandido me acusa e eu que tenho que me explicar."

O ministro afirmou que entrou em contato com a presidente Dilma Rousseff tão logo soube da denúncia - os dois conversaram por telefone. A presidente, que estava ontem em Porto Alegre para comemorar o aniversário de um ano do neto Gabriel, evitou falar com a imprensa.

"O que fiz foi procurá-la para informar da notícia. Foi uma conversa muito direta. Vou seguir minha agenda de trabalho, foi a recomendação que recebi da presidente." Orlando Silva deve chegar ao Brasil hoje.

Vidraça. O ministro também defendeu o Segundo Tempo, alvo de inúmeras denúncias de desvio de verbas. Disse que a partir de agora os parceiros do programa serão escolhidos por meio de uma seleção pública. Outra medida é a da exclusão de convênios com entidades privadas.

O Estado revelou, em uma série de reportagens publicadas em fevereiro, que o Segundo Tempo se transformou em instrumento financeiro do PC do B. Sem licitação, o ministro entregou o programa a entidades ligadas à sigla, cujos contratos com ONGs somaram R$ 30 milhões somente em 2010.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

“O ministro recebia o dinheiro na garagem”

Militante do PCdoB acusa Orlando Silva de montar esquema de corrupção e receber propina nas dependências do Ministério do Esporte

No ano passado, a polícia de Brasília prendeu cinco pessoas acusadas de desviar dinheiro de um programa criado pelo governo federal para incentivar crianças carentes a praticar atividades esportivas. O grupo era acusado de receber recursos do Ministério do Esporte através de organizações não governamentais (ONGs) e embolsar parte do dinheiro. Chamava atenção o fato de um dos principais envolvidos ser militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ex-candidato a deputado e amigo de pessoas influentes e muito próximas a Orlando Silva, o ministro do Esporte. Parecia um acontecimento isolado, uma coincidência. Desde então, casos semelhantes pipocaram em vários estados, quase sempre tendo figuras do PCdoB como protagonistas das irregularidades. Agora, surgem evidências mais sólidas daquilo que os investigadores sempre desconfiaram: funcionava dentro do Ministério do Esporte uma estrutura organizada pelo partido para desviar dinheiro público usando ONGs antigas como fachada. E o mais surpreendente: o ministro Orlando Silva é apontado como mentor e beneficiário do esquema.

Em entrevista a VEJA, o policial militar João Dias Ferreira, um dos militantes presos no ano passado, revela detalhes de como funciona a engrenagem que, calcula-se, pode ter desviado mais de 40 milhões de reais nos últimos oito anos. Dinheiro de impostos dos brasileiros que deveria ser usado para comprar material esportivo e alimentar crianças carentes, mas que acabou no bolso de alguns figurões e no caixa eleitoral do PCdoB. O relato do policial impressiona pela maneira rudimentar como o esquema funcionava. As ONGs, segundo ele, só recebiam os recursos mediante o pagamento de uma taxa previamente negociada que podia chegar a 20% do valor dos convênios. O partido indicava desde os fornecedores até pessoas encarregadas de arrumar notas fiscais frias para justificar despesas fictícias. O militar conta que Orlando Silva chegou a receber, pessoalmente, dentro da garagem do Ministério do Esporte, remessas de dinheiro vivo provenientes da quadrilha: "Por um dos operadores do esquema, eu soube na ocasião que o ministro recebia o dinheiro na garagem" (veja a entrevista abaixo). João Dias dá o nome da pessoa que fez a entrega. Parte desse dinheiro foi usada para pagar despesas da campanha presidencial de 2006.

O programa Segundo Tempo é repleto de boas intenções. Porém, há pelo menos três anos o Ministério Público, a Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União desconfiam de que exista muita coisa além da ajuda às criancinhas. Uma das investigações mais completas sobre as fraudes se deu em Brasília. A capital, embora detentora de excelentes indicadores sociais, foi muito bem aquinhoada com recursos do Segundo Tempo, especialmente quando o responsável pelo programa era um político da cidade, o então ministro do Esporte Agnelo Queiroz, hoje governador do Distrito Federal. Coincidência? A investigação mostrou que não. A polícia descobriu que o dinheiro repassado para entidades de Brasília seguia para entidades amigas do próprio Agnelo, que por meio de notas fiscais frias apenas fingiam gastar a verba com crianças carentes. Agnelo, pessoalmente, foi acusado de receber dinheiro público desviado por uma ONG parceira. O soldado João Dias, amigo e aliado político de Agnelo, controlava duas delas, que receberam 3 milhões de reais, dos quais dois terços teriam desaparecido, de acordo com o inquérito. Na ocasião, integrantes confessos do esquema concordaram em falar à policia. Contaram em detalhes como funcionava a engrenagem. O soldado João Dias, porém, manteve-se em silêncio sepulcral – até agora.

Na entrevista, o policial afirma que, na gestão de Agnelo Queiroz no ministério, o Segundo Tempo já funcionava como fonte do caixa dois do PCdoB e que o gerente do esquema era o atual ministro Orlando Silva, então secretário executivo da pasta. Por nota, a assessoria do governador Agnelo disse que as relações entre ele e João Dias se limitaram à convivência partidária, que nem sequer existe mais. VEJA entrevistou também o homem que o policial aponta como o encarregado de entregar dinheiro ao ministro. Trata-se de Célio Soares Pereira, 30 anos, que era uma espécie de faz-tudo, de motorista a mensageiro, do grupo que controlava a arrecadação paralela entre as ONGs agraciadas com os convênios do Segundo Tempo. "Eu dirigia e, quase todo mês, visitava as entidades para fazer as cobranças", contou. Casado, pai de seis filhos, curso superior de direito inconcluso, Célio trabalha atualmente como gerente de uma das unidades da rede de academias de ginástica que o soldado João Dias possui. Célio afirma que, além do episódio em que entregou dinheiro ao próprio Orlando Silva, esteve pelo menos outras quatro vezes na garagem do ministério para levar dinheiro. "Nessas vezes, o dinheiro foi entregue a outras pessoas. Uma delas era o motorista do ministro", disse a VEJA. O relato mais impressionante é de uma cena do fim de 2008. "Eu recolhi o dinheiro com representantes de quatro entidades aqui do Distrito Federal que recebiam verba do Segundo Tempo e entreguei ao ministro, dentro da garagem, numa caixa de papelão. Eram maços de notas de 50 e 100 reais", conta.

Célio afirma que um dirigente do PCdoB, Fredo Ebling, era encarregado de indicar a quem, quando e onde entregar dinheiro. "Ele costumava ir junto nas entregas. No dia em que levei o dinheiro para o ministro, ele não pôde ir. Me ligou e disse que era para eu estar às 4 e meia da tarde no subsolo do ministério e que uma pessoa estaria lá esperando. O ministro estava sentado no banco de trás do carro oficial. Ele abriu o vidro e me cumprimentou. O motorista dele foi quem pegou a caixa com o dinheiro e colocou no porta-malas do carro", afirma. Funcionário de carreira do Congresso Nacional, chefe de gabinete da liderança do partido na Câmara dos Deputados, Fredo Ebling é um quadro histórico entre os camaradas comunistas. Integrante da Secretaria de Relações Internacionais do PCdoB nacional, ele foi candidato a senador e a deputado por Brasília. Em 2006, conseguiu um lugar entre os primeiros suplentes e, no final da legislatura passada, chegou a assumir por vinte dias o cargo de deputado federal. João Dias diz que Fredo Ebling era um dos camaradas destacados por Orlando Silva para coordenar a arrecadação entre as entidades. O policial relata um encontro em que Ebling abriu o bagageiro de seu Renault Mégane e lhe mostrou várias pilhas de dinheiro. "Ele disse que ia levar para o ministro", afirma. Ebling nega. "Eu não tinha esse papel", diz. O ex-deputado diz que conhece João Dias, mas não se lembra de Célio.

A lua de mel do policial com o ministério e a cúpula comunista começou a acabar em 2008, quando passaram a surgir denúncias de irregularidades no Segundo Tempo. Ele afirma que o ministério, emparedado pelas suspeitas, o deixou ao léu. "Eu tinha servido aos interesses deles e de repente, quando se viram em situação complicada, resolveram me abandonar. Tinham me prometido que não ia ter nenhum problema com as prestações de contas." O policial diz que chegou a ir fardado ao ministério, mais de uma vez, para cobrar uma solução, sob pena de contar rudo. No auge da confusão, ele se reuniu com o próprio Orlando Silva. "O Orlando me prometeu que ia dar um jeito de solucionar e que tudo ia ficar bem", diz. O ministro, por meio de nota, confirma ter se encontrado com o policial. Diz que o recebeu em audiência, mas nega que soubesse dos desvios ou de cobrança de propina. "É uma imputação falsa, descabida e despropositada. Acionarei judicialmente os caluniadores", afirmou o ministro, em nota.

Em paralelo às investigações oficiais, João Dias respondeu por desvio de conduta na corporação militar. A Polícia Militar de Brasília oficiou ao ministério em busca de informações sobre os convênios. A resposta não foi nada boa para o soldado: dizia que ele estava devendo 2 milhões aos cofres públicos por irregularidades nas prestações de contas. João Dias então subiu o tom das ameaças. Em abril de 2008, quando foi chamado à PM para dar satisfações e tomou conhecimento do ofício, ele procurou pessoalmente o então secretário nacional de Esporte Educacional, Júlio Cesar Filgueira, para tirar satisfação. O encontro foi na secretaria. O próprio João Dias conta o que aconteceu: "Eu fui lá armado e dei umas pancadas nele. Dei várias coronhadas e ainda virei a mesa em cima dele. Eles me traíram". Júlio Filgueira, também filiado ao PCdoB de Orlando Silva, era responsável por tocar o programa. A pressão deu certo: o ministério expediu um novo ofício à Polícia Militar amenizando a situação de Dias. O documento pedia que fosse desconsiderado o relatório anterior. A agressão que João Dias diz ter cometido dentro da repartição pública passou em branco. "Eles não tiveram coragem de registrar queixa porque ia expor o esquema", diz o soldado. Indagado por VEJA, o gabinete de Orlando Silva respondeu que "não há registro de qualquer agressão nas dependências do Ministério do Esporte envolvendo estas pessoas". O ex-secretário Júlio Filgueira, que deixou o cargo pouco depois da confusão, confirma ter recebido o policial mas nega que tenha sido agredido. "Ele estava visivelmente irritado, mas essa parte da agressão não existiu", diz. A polícia e o Ministério Público têm uma excelente oportunidade para esclarecer o que se passava no terceiro tempo no Ministério do Esporte. As testemunhas, como se viu, estão prontas para entrar em campo.

"Até 20% a cada liberação"

Em 2010, o soldado João Dias Ferreira foi preso, acusado de participar de um esquema de desvio no Ministério do Esporte. Militante do PCdoB, ele resolveu contar o que sabe sobre as fraudes no programa Segundo Tempo.

O senhor desviou dinheiro?

Não. O que aconteceu foi que duas pessoas do PCdoB me procuraram em 2004 propondo que eu entrasse no programa com as minhas entidades. Disseram que eu receberia verbas do ministério, mas tinha que dar dinheiro ao partido. Eram três condições: tinha que dar até 20% no ato de cada liberação de verba do ministério, contratar fornecedores ligados ao esquema e ainda ajudar a recrutar militantes. Diziam que isso era para fortalecer o partido nas eleições de 2006.

E o senhor aceitou?

Eles disseram que não haveria problemas. Me faltou conhecimento jurídico. Me disseram que eu teria que contratar uma consultoria para que o projeto fosse aprovado. Aceitei, mas depois vi que aquilo era uma máfia. Prometeram que tudo era normal e legal. Quando os órgãos de fiscalização vieram pra cima de mim, me abandonaram. Até fraudaram documentos para dizer que os meus convênios já tinham sido encerrados com medo de sobrar para eles. Entrei sem saber que era tudo uma grande armação.

O senhor deu dinheiro ao esquema?

Não. Exigiram pagamento antecipado a um escritório indicado por eles. Foi feito um contrato. de consultoria, que depois eu percebi que era fictício. Mais tarde, atendendo a mais uma exigência, tive que contratar empresas indicadas como fornecedoras de alimentos e material esportivo. As mesmas empresas, ligadas ao próprio PCdoB, aparecem em vários convênios. As notas fiscais, muitas vezes, são frias. Vi que aquilo era um procedimento corriqueiro. Nos convênios, eles põem no papel que vão ser atendidas 5000 crianças, por exemplo, mas atendem 200 ou 500. Muitos convênios nunca tiveram criança nenhuma.

Houve outros pagamentos?

Na eleição de 2006, eu tinha mais de 1 milhão em uma das contas. Era dinheiro que tinha sobrado e estava em trâmite para ser devolvido à União. Me disseram que estavam precisando daquele dinheiro para botar na campanha. Eu autorizei meu coordenador-geral a tratar disso direto com o pessoal do ministério, desde que eles ficassem responsáveis. Foram feitas as transferências para as empresas que o partido indicou. O valor foi sacado e entregue ao esquema. Depois vi que era uma grande simulação. O Orlando usou esse dinheiro para pagar uma gráfica que fez adesivos da campanha do Lula em Brasília. Ele queria agradar ao Lula para continuar ministro no segundo mandato.

Quem eram as pessoas que cuidavam desse esquema?

Desde o começo, quem controlava tudo pelo partido era o Orlando Silva, que era secretário executivo do ministério. O PCdoB indicava representantes para atuar junto às entidades recolhendo a parte que cabia ao partido. Esses representantes se reportavam diretamente ao Orlando. Por um dos operadores do esquema, eu soube na ocasião que o ministro recebia dinheiro na garagem.

FONTE: REVISTA VEJA

Líderes da oposição pedem o afastamento de ministro

Denise Madueño

Líderes de oposição defenderam hoje o afastamento imediato do ministro do Esporte, Orlando Silva, e anunciaram que vão entrar com pedido de investigação na Procuradoria Geral da República (PGR), depois da denúncia de um suposto esquema de desvio de dinheiro do principal programa da pasta, o Segundo Tempo, beneficiando diretamente o ministro.

"O Ministério do Esporte está à frente das obras e preparativos para a Copa e as Olimpíadas e isso envolve a administração de bilhões de reais. O ministro não pode estar sob suspeição, acusado de montar esquemas de corrupção", afirmou o líder do PSDB na Câmara, Duarte Nogueira (SP).

Em fevereiro, o PSDB já havia entrado com representação na PGR solicitando análise sobre convênios do programa. Os tucanos também vão pedir apuração pela Controladoria Geral da União (CGU) e Polícia Federal.

O líder do DEM, Antonio Carlos Magalhães Neto (BA) também reagiu. "O governo não deve ser ponte para beneficiar agentes públicos ou partidos. O PC do B, de acordo com o seu próprio militante, transformou o Ministério do Esporte em um espaço para arrecadar e fazer caixa dois de campanha. E quem se tornou o grande operador disso tudo foi o próprio Orlando Silva", afirmou ACM Neto.

O líder do PPS na Câmara e secretário-geral do partido, Rubens Bueno (PR), informou que o partido formalizará um pedido de investigação na procuradoria na segunda-feira à tarde. "As revelações são estarrecedoras, o que exige do Ministério Público rápida e aprofundada investigação de toda essa sujeira, que cobre de lama o governo Dilma", disse Bueno.

O líder também vai pedir que o ex-ministro do Esporte e governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, também citado na reportagem da revista Veja como um dos beneficiários do suposto esquema de desvio de dinheiro, apresente explicações.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Brasil não sabe quanto custará a Copa

Quatro anos após ter sido confirmado como sede da Copa de 2014, o País tem muitas obras a serem feitas e não sabe qual será o custo final do evento. Segundo o balanço divulgado pelo governo no mês passado, o investimento em estádios, portos, aeroportos e mobilidade urbana será de R$ 27,1 bilhões - ante os R$ 21,5 bilhões de janeiro de 2010. Na última sexta-feira, o governo divulgou um novo cálculo: R$ 26,1 bilhões. Para a Controladoria-Geral da União, o valor previsto é de R$ 24,024 bilhões. A Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), que mantém parceria técnica com a CBF e o Ministério do Esporte, calcula em até R$ 112 bilhões o custo total do Mundial. Nesta quinta-feira, a Fifa divulgará o calendário com datas, locais e horários dos jogos no Brasil

Obras engatinham e ninguém sabe quanto o mundial vai custar

Ainda há muito por fazer e o preço da aventura é mistério total

Almir Leite

A Copa do Mundo no Brasil vai tomar forma na quinta-feira, quando a Fifa divulgará o calendário com datas, locais e horários dos jogos. No dia 30, completam-se quatro anos que o País foi anunciado como sede da competição. Desde então, algumas coisas foram feitas, mas há muito por fazer. Os estádios ficarão prontos a tempo. O mesmo não se pode garantir em relação aos aeroportos e às 49 obras de mobilidade urbana ligadas à Copa. "Certeza"" absoluta, só uma: ninguém sabe quanto ficará a conta da empreitada.

No último balanço divulgado pelo governo federal, em setembro, o custo da Copa, considerando-se o dinheiro a ser investido em estádios, portos e aeroportos e em mobilidade urbana, foi estimado em R$ 27,1 bilhões. Aumento de cerca de 14% em relação aos R$ 23,1 bilhões do balanço de janeiro e de 26% sobre os R$ 21,5 bilhões de previsão feita em 13 de janeiro de 2010, quando o ex-presidente Lula assinou a Matriz de Responsabilidade.

Esses R$ 27,1 bilhões estão a anos-luz de uma estimativa feita pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), que calculou em R$ 112 bilhões o custo com a Copa. O estudo da associação, que tem parceria técnica com a CBF e o Ministério do Esporte, inclui também gastos com hotelaria, segurança, tecnologia e saúde, entre outros. Mesmo assim, a diferença é grande, pois o balanço do governo acrescenta apenas R$ 10,3 bilhões para esses itens.

Os números são mesmo conflitantes. Na sexta-feira, o governo divulgou atualização na Matriz de Responsabilidade e a conta baixou para R$ 26,1 milhões. "A Matriz é um documento que precisa ser atualizado com os ajustes que são feitos enquanto a obra está em andamento. Isso é essencial para a transparência do processo", esclareceu Alcino Reis, secretário Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor do Ministério do Esporte.

Mas não evita, ou diminui, a confusão. No mesmo dia, a Controladoria Geral da União (CGU)inaugurou ferramenta no portaldatransparência.gov.br que permite acompanhar os custos estimados por área de investimento. Valor da soma dos gastos com estádios, aeroportos e portos e mobilidade urbana: R$ 24,024 bilhões.

O fato é que em todas as áreas ligadas à Copa existem pontos nebulosos quando se trata de orçamentos. Estádios, por exemplo. O Maracanã, virtual palco de encerramento do Mundial, já viu o orçamento flutuar entre R$ 705 milhões e R$ 1,1 bilhão. Atualmente, a conta está em R$ 859,9 milhões, depois que o TCU (Tribunal de Contas da União) estrilou com o orçamento que lhe foi apresentado. Mas esse valor parece longe de ser definitivo.

A arena do Corinthians também pode sair por bem mais que os R$ 820 milhões anunciados. Já é certo que haverá o custo extra da estrutura provisória necessária para aumentar a capacidade do estádio de 48 para 65 mil - fala-se em até R$ 70 milhões, dinheiro que vai ser retirado dos cofres do governo estadual.

Pouco mais de um ano atrás, o diretor de marketing do Corinthians, Luiz Paulo Rosenberg, dizia que o Itaquerão, para 65 mil pessoas, ficaria em R$ 600 milhões. A Fifa começou a fazer exigências e o custo cresceu. Não será surpresa se, no frigir do ovos, passar de R$ 1 bilhão. Justiça seja feita, Rosenberg também falou em setembro do ano passado que erguiria uma arena para 48 mil pessoas por R$ 335 milhões. Mas aí, nada de Mundial.

Menos mal que, de maneira geral, as obras nas arenas estão ganhando ritmo. Há dores de cabeça, como a das Dunas, em Natal, ainda em estágio inicial, e do Beira-Rio, em Porto Alegre, com obras paralisadas desde que o Inter resolveu achar um parceiro para ajudar a bancar os custos de R$ 290 milhões. O acordo com uma construtora foi feito, mas o contrato ainda não está assinado.

Claro que cada pescador puxa a sardinha para seu lado no momento de defender suas intervenções. Isso leva a situações curiosas, como a da Arena da Baixada, em Curitiba. A rigor, as obras começaram há alguns dias e, do que é necessário, quase nada foi feito. Por isso, tem analista que considera que apenas 6,7% dos trabalhos estão concluídos. A conta do governador do Paraná, Beto Richa, é outra. Como muita coisa já está pronta no estádio do Atlético, ele entende que 60% do caminho para receber partidas da Copa já foi percorrido. Pode-se dizer que os dois lados têm razão.

Aflição. O ritmo das intervenções de mobilidade urbana nem de longe podem ser comparadas ainda ao dos estádios. Dos 49 projetos, apenas 9, em 4 cidades, estão em desenvolvimento. O restante ainda está na fase de projeto ou licitação. E alguns podem ficar apenas no papel.

A situação causa aflição até mesmo na presidente Dilma Rousseff. "Temos de ser capazes de correr contra o tempo"", disse ela esta semana em Curitiba, onde anunciou investimentos em mobilidade.

O governo tenta colaborar. Reconsiderou a ameaça de retirar do PAC da Copa obras que não começassem até dezembro, mas pediu agilidade. Porém, há casos emblemáticos: Cuiabá, por exemplo, conseguiu trocar na Matriz de Responsabilidade o projeto de BRT (Bus Rapit Transit) pelo VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). Salvador propõe fazer o mesmo: pôr o metrô de superfície no lugar no VLT. Por causa disso, a obra de mobilidade da capital baiana foi temporariamente retirada da Matriz.

São Paulo ainda não começou suas obras. As 5 intervenções viárias na região de Itaquera que consumirão R$ 478,2 milhões (R$ 345,9 milhões do Estado e R$ 132,3 milhões da Prefeitura) têm projetos básicos prontos e licitação em fase de preparação. O valor dessas obras não consta da Matriz de Responsabilidade.

O projeto que consta é o do Monotrilho que ligará o aeroporto de Congonhas à estação Morumbi, da CPTM. O monotrilho que passará pelo estádio do Morumbi (excluído da Copa), teve o valor reajustado de R$ 2,860 bilhões para R$ 3,108 bilhões. Ficou na matriz sobre a alegação de que transportará as pessoas até o metrô e, portanto, servirá de acesso até Itaquera.

O governo paulista também se comprometeu a investir R$ 2,5 bilhões na melhoria das linhas de trem e metrô que levam a Itaquera. Tal valor também não consta da Matriz de Responsabilidade.

Dúvidas no ar. A questão dos aeroportos também causa desconforto. Vários deles já tiveram as obras - de reforma e ampliação de terminais, pistas e pátio, em sua maioria - iniciadas. Em outros, as melhorias continuam apenas nos projetos. Dinheiro parece não faltar, pois o governo se comprometeu a investir exatos R$ 6.5 bilhões na área. O desencontro, porém, permanece.

Há um grupo, composto por institutos, entidades de classe e políticos, que mantém a aposta de que não dará tempo para que tudo fique pronto. O governo insiste que os prazos serão cumpridos.

No início desta semana, no Rio, parlamentares integrantes da Subcomissão Temporária da Copa de 2014 voltaram a dizer que é preciso acelerar o ritmo das obras, do contrário os aeroportos brasileiros não comportarão a demanda esperada para o Mundial.

"Nenhuma cidade está dentro do prazo. Obras que ainda nem começaram já deveriam estar na metade"", criticou, por exemplo, Romário, deputado pelo PSB-RJ.

A "grita"" dos parlamentares obrigou o governo a reagir. E a repetir o discurso otimista adotado quando se toca no tema. "No nosso controle, nos dados que temos do governo e da Infraero é que todos (os aeroportos) ficarão prontos a tempo e hora"", rebateu o ministro-chefe da Secretaria de Aviação Civil, Wagner Bittencourt. Ele foi mais longe. "Algumas (obras) podem ser entregue até antes, em outubro.""

No último balanço dos preparativos para a Copa, divulgado em setembro, oito das 13 intervenções têm previsão de conclusão para dezembro de 2013.

O que pode ajudar é a disposição do governo de entregar à iniciativa privada a gestão dos aeroportos. Nesta semana, foi definido o modelo dos editais de concessão para os aeroportos de Cumbica, Viracopos e Brasília. Pelo documento, os concessionários terão metas a cumprir, tanto de investimentos (R$ 4,47 bilhões até a Copa), como de entrega das reformas necessárias para atender à demanda do Mundial, sob pena de multas pesadas pelo não cumprimento. O governo estima realizar o leilão ainda em dezembro e considera haver tempo suficiente para que o Brasil chegue à Copa navegando em céu de brigadeiro. Mas sabe que muita coisa terá de ser feita até lá.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Origens do modelo político representativo no Brasil ::Bolívar Lamounier

Atuando como ventríloquo de Francis Bacon, eu ontem recomendei o máximo possível de atenção aos ídolos da tribo, isto é, a certos sentimentos, paixões e preconceitos comuns a toda à tribo (ou ‘raça’) humana. Sempre à espreita, esses miseráveis dedicam-se full-time a nos turvar a mente, dificultando o nosso empenho em formar conceitos claros e corretos.

Mas engana-se redondamente quem pensa que já podemos abaixar a guarda. O post de hoje é outro combate de vida ou morte, desta vez contra os ídolos da caverna: opiniões geralmente aceitas só porque circulam por aí, passadas de boca em boca; o saber de orelhada, e sobretudo certas avaliações constituídas a partir de meras aparências, sem um exame aprofundado.

Desta espécie, não há exemplo melhor que a convicção com que se costuma proclamar a inviabilidade da democracia no Brasil. A robustez deste ídolo é notável, mas fitai-o com atenção e logo percebereis que não é tão jovem. Não lhe falta muito para completar dois séculos de idade. Sim, dois séculos, como explicarei a seguir.

Foi de bate-pronto, quase no calor da hora, que se começou a bradar contra o suposto equívoco cometido ao tempo da Independência: a opção pelo regime representativo como princípio constitucional. Dessa época até hoje, centenas de autores ensinaram ao senso comum, ou com ele aprenderam, que o Brasil tinha um encontro marcado com o despotismo político. Esse seria o seu ‘destino manifesto’.

Mas se assim era, por que então nos empenhamos durante mais duas décadas, até a maioridade do outro Pedro (1840), em reforçar a construção iniciada em 1822? Por que insistimos no “erro” de querer implantar no mataréu tropical daqueles tempos o modelo político monárquico, constitucional e representativo estipulado na Constituição de 1824?

Não podendo dedicar a esta questão o espaço que seria desejável, permito-me aqui sugerir a leitura do primeiro capítulo de meu livro “Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira”.

Na verdade, a indagação acima pode ser respondida com outra indagação: qual teria sido a “boa” alternativa? Não adotar Constituição nenhuma? Adotar uma que meramente reafirmasse o absolutismo em toda a sua extensão, deixando prá lá aquela conversa de “representação”? Seriam tais opções suficientes para dar aos conflitos daquele momento o devido enquadramento? Esta é a questão que 9.5 de cada 10 historiadores evitam como o diabo à cruz.

A resposta que eles tradicionalmente nos oferecem é a das “idéias fora do lugar”. A Constituição e todas as providências tomadas no sentido de reorganizar o sistema de autoridade não seriam mais que um verniz, um tipo de enfeite importado que a elite dirigente da época apreciava.

A corrente marxista sempre se destacou na defesa desse ponto de vista. Para Nelson Werneck Sodré (citado no primeiro capítulo de meu livro), por exemplo, as agitações políticas do período não teriam tido maior importância; foram, no entender dele, “uma pequena pausa na inexorável pressão pelo domínio absoluto da classe proprietária, um rápido hiato, até que ela reorganizasse as suas fileiras…”. Se os conflitos não eram graves, segue-se evidentemente que a reorganização do Estado em decorrência do fim do regime colonial seria por sua vez uma tarefa simples. E nada tinha a ver, segundo ele, com altas abstrações constitucionais. A absorção de alguns aspectos do pensamento liberal europeu e norte-americano pela elite brasileira nada mais seria então que um “sintoma de inconformismo” (expressão de Sodré), jamais um interesse potencialmente prático.

Noutro livro citado em meu trabalho, Manoel Maurício de Albuquerque parte das mesmas premissas e do mesmo diagnóstico de Werneck Sodré quanto à inexpugnabilidade da classe dominante, que deveria portanto ser capaz de manter o controle da situação “sem obstáculos maiores”. No entanto, com o correr da pena, a gravidade potencial de certos acontecimentos acaba se impondo à sua atenção. Ao deparar-se com a conjuntura de 1831, ele avalia que a turbulência atingira proporções consideráveis:

“A abdicação de D. Pedro I colocou diante da oposição vitoriosa as perspectivas ameaçadoras representadas por uma possível anarquia ou ditadura militares (devido à importância que o setor armado tivera naquela decisão do soberano), da proclamação da república como o desejavam setores mais radicais, ou de uma guerra civil que poderia levar à quebra da unidade nacional”.

Pela exposição acima o leitor pode aquilatar quão insidiosa chega a ser a ação dos ídolos da caverna. Quando abrem os olhos, os cultores da tese das “idéias fora do lugar” percebem – como não poderia deixar de ser -, que as duas primeiras décadas do Brasil independente transcorreram num ambiente tenso, incerto, com elevado potencial de ruptura. Mas esta constatação não lhes aguça o apetite por hipóteses não convencionais.

O clima político real era grave, mas o abrandamento do absolutismo teria obedecido apenas ao bovarismo caipira de uma elitezinha que se pudesse pegava o próximo navio para a Europa. A discórdia política pode beirar a guerra civil, mas isso não é problema; na hora H, um Leviatã portando chapéu de palha erguer-se-á do meio do canavial e botará ordem na casa.

Não se trata apenas de constatar a ocorrência de um período conflituoso, pois isso se evidencia na simples cronologia dos acontecimentos, com a Guerra da Independência (1822-23); a convocação da Assembléia Constituinte em 1823, sua dissolução e a outorga da Constituição em 1824; a abdicação (forçada) de Pedro I em 1831; o prosseguimento das rebeliões e o início da maior delas, a Farroupilha, em 1835, e finalmente o “golpe da maioridade”, em 1840, alçando ao trono um adolescente de 15 anos, quando parcela ponderável das forças políticas dominantes se convenceu de que nenhum outro caminho levaria à estabilidade.

Instalados em 1826, a Câmara e o Senado instituídos pela Constituição de 1824 são a origem da tradição parlamentar brasileira. Os debates desse momento e da década seguinte mostram que os deputados e senadores tinham plena consciência da grave agenda e do turbulento entorno em que o nascente Parlamento iria atuar.

A esta altura o leitor e eu temos direito a uma boa pausa. Reflitamos: o que têm as informações acima a ver com a velha descrença brasileira na democracia? Com nossa tendência a dar de barato que nesta terra os únicos frutos políticos com chance de crescer são o mandonismo e o autoritarismo?

Uma parte da resposta eu explicitei suficientemente. Em relação à conjuntura da Independência, poderíamos facilmente admitir que tudo fosse (ou tivesse sido) resolvido na base da porrada, mas não foi isso o que aconteceu. A democracia não saiu de lá com duas cabeças de vantagem, mas o que prevaleceu tampouco foi o autoritarismo rombudo que certos historiadores se comprazem em pintar. Com o tempo – e foi preciso muito tempo, isto é certo -, o sistema representativo, aquela idéia tão fora do lugar -, foi deitando raízes.

A segunda parte da resposta é que tivemos duas grandes quebras do regime constitucional – a ditadura getulista e o regime militar de 64 -, além de várias ameaças, mas retornamos, bem ou mal, à democracia representativa. A estabilização desse modelo político, coisa que meio século atrás ainda parecia delírio, hoje parece razoavelmente assegurada. Eu não acredito em “destino histórico”; na vida das coletividades humanas, destino é o que elas conseguem fazer; é o que resulta de seus erros e acertos. Mas se eu tivesse que apostar, apostaria na continuidade da democracia, não em outra suspensão demorada, e de forma alguma em sua substituição a título definitivo por um regime autoritário. Da opção inicial pela representação como princípio constitucional, em 1824, até os dias de hoje, o projeto de um Estado democrático e representativo só foi ameaçado de total erradicação durante a ditadura varguista de 1937-1945.

Por mais que a vitupere, uma grande parcela, talvez a maioria dos cidadãos intúi que só a democracia pode assegurar de forma contínua a liberdade de cada um, a espontaneidade característica de nossa cultura e o acesso de qualquer indivíduo ou grupo legalmente habilitado para tal aos diferentes canais de participação política.

Chegamos então ao melhor dos mundos? Temos no Brasil uma democracia impecável, de altíssima qualidade? Vamos com calma. Ninguém aqui falou em qualidade. E se Francis Bacon não o disse, digo-o eu: vamos por partes.

FONTE: BLOG DE BOLÍVAR LAMOUNIER

A travessia :: Merval Pereira

O documentário "Tancredo, a travessia", de Silvio Tendler, que será lançado oficialmente no final do mês, complementa a trilogia que teve início com "Jango" e "Anos JK" no relato da história recente do país, mas se supera na captura da alma conciliadora de Tancredo Neves e na revelação da sua matreirice política que estava sempre a serviço da democracia, como salienta o ex-presidente Fernando Henrique em seu depoimento.

Definitivamente, Tancredo não era um político banal e eu mesmo tive um exemplo marcante dessa sua argúcia, que me ensinou muito no trato das coisas políticas.

Dias depois do atentado do Riocentro, ocorrido em 1º de maio de 1981, eu, que escrevia a coluna da página 2 do GLOBO chamada "Política Hoje Amanhã" e passava a semana em Brasília, no dia 4, peguei o voo pela manhã, tendo como companhia o senador Tancredo Neves, que vinha de um encontro com o então governador do Rio, Chagas Freitas.

Fomos conversando sobre a gravidade dos acontecimentos até que, como quem não quer nada, Tancredo comentou: "Homem corajoso esse Chagas. O relatório oficial da polícia confirma que havia mais duas bombas no Puma".

Dito isso, mudou o rumo da conversa com a autoridade de quem não queria se aprofundar no assunto.

A informação era simplesmente bombástica, sem trocadilho: se no Puma dirigido pelo capitão Wilson Machado havia outras bombas, ficava demonstrado que ele e o sargento Guilherme Pereira do Rosário eram os responsáveis pelo atentado, e não vítimas, como a versão oficial alegava.

Telefonei para a redação do GLOBO no Rio dando a notícia para o Milton Coelho da Graça, que era o editor-chefe da época, e ele, empolgado, disse-me que fosse para o Congresso tentar tirar mais informações de Tancredo.

No seu gabinete no Senado, Tancredo estava cercado de pessoas, pois o ambiente político estava bastante conturbado.

Consegui puxá-lo para um canto e pedi mais informações "sobre as duas bombas encontradas no Puma".

Tancredo me olhou sério, colocou sua mão em meu ombro e perguntou, como se nunca houvéssemos conversado sobre o assunto: "Você também ouviu falar disso, meu filho?".

A notícia foi manchete do GLOBO do dia 5 de maio.

No documentário sobre sua vida e seu calvário de 38 dias, há diversos episódios que contam bem essa capacidade que Tancredo tinha de fazer política com gestos e poucas palavras. Mas certeiras.

Quando Jango faz seu longo retorno da China, depois da renúncia de Jânio à Presidência da República, enquanto no Brasil se negociava sua posse com a resistência de setores militares, Tancredo vai ao Uruguai, última escala do retorno, conversar com o vice-presidente.

O PTB, partido de Jango, exige que um seu representante vá participar da conversa. Só que, quando Wilson Fadul chega ao aeroporto, o avião de Tancredo já havia decolado.

Digno representante do PSD mineiro, Tancredo queria conversar a sós com Jango. E conseguiu convencê-lo a aceitar o parlamentarismo, cuja alternativa seriam "as mãos sujas de sangue".

Anos mais tarde, quando já negociavam o apoio da Frente Liberal à sua candidatura à Presidência da República no Colégio Eleitoral, Tancredo foi confrontado com uma exigência do vice-presidente Aureliano Chaves, seu adversário político da UDN mineira.

Aureliano disse que só apoiaria Tancredo se ele lhe escrevesse uma carta aceitando vários pontos que colocava como inegociáveis.

Para espanto dos dissidentes do PDS que foram lhe levar as exigências, Tancredo aquiesceu logo em escrever a carta.

Mas também impôs sua condição: só a escreveria se recebesse primeiro a resposta de Aureliano dando seu apoio. E assim foi feito.

O próprio Tancredo diz a certa altura do documentário que "mineiro radical" não existe, e explica que no dicionário, Tancredo quer dizer "conciliador", "parcimonioso".

Mas nunca deixou de assumir atitudes firmes, quando precisava. Segundo ele, um político "não pode cometer temeridades, mas tem o dever de correr riscos".

E ele correu: na reunião ministerial do Palácio do Catete, pouco antes do suicídio de Vargas, defendeu a resistência.

Discursou nos enterros tanto de Getúlio quanto de Jango; acompanhou Juscelino quando o ex-presidente, cassado, teve que depor em quartéis do Exército.

Criou o PP para marcar o caráter conciliador de sua política, mas retornou ao PMDB quando o governo militar ditou novas regras eleitorais que prejudicavam a oposição dividida.

Foi o único do PSD a não votar em Castello Branco para presidente, ele que o havia promovido a general a pedido de uma parente quando era primeiro-ministro, e por isso não foi cassado depois do golpe militar.

O documentário deixa bem claro, através principalmente de depoimentos de seu neto, o hoje senador Aécio Neves, a preocupação de Tancredo com a reação dos militares à posse de Sarney como presidente.

Por isso adiou até quando pode uma operação, para tentar chegar ao dia da posse que, para ele, seria "a garantia da transição".

A tal ponto estava obcecado com isso que na véspera da posse, já não podendo mais se levantar, recebeu de seu futuro Chefe do Gabinete Civil vários atos para assinar, e os assinou na cama, afirmando: "Isso é a garantia de que não vai haver retrocessos".

E estava certo, pois no dia seguinte, quando o ministro do Exército do governo Figueiredo, General Walter Pires, tentou impedir a posse de Sarney, foi comunicado por Leitão de Abreu de que ele já não era mais ministro.

O Diário Oficial daquele dia já saíra com todos os atos de nomeação do novo governo, que não foi comandado por Tancredo, mas por Sarney.

Aécio Neves diz que as últimas palavras que ouviu do avô e guia político foi: "Eu não merecia isso".

FONTE: O GLOBO

República de surdos:: Dora Kramer

As três bandeiras levadas aos atos de rua da última quarta-feira - fim do voto secreto no Congresso, validade da Lei da Ficha Limpa e manutenção das prerrogativas do Conselho Nacional de Justiça - dependem de decisões dos Poderes Legislativo e Judiciário, que se mantiveram indiferentes ao fato de brasileiros terem saído de casa para dizer o que estão querendo.

Talvez porque os protestos tenham acontecido em semana de feriado ou possivelmente porque a quantidade de gente nas ruas não tenha sido suficiente para mobilizar as opiniões de suas excelências.

Se milhares não bastam e milhões ainda não parecem despertados para a gravidade do problema, pois, como se diz, andam satisfeitos com a economia, autoridades não dão ouvidos.

Apenas não se diga que os magistrados só falam nos autos, porque falam a respeito de tudo o tempo todo. E fazem bem em falar.

Fariam, no entanto, juízes e parlamentares, melhor em agir. Ou, melhor dizendo, em fazer a parte que lhes cabe nesse latifúndio de deformações que servem de abrigo à impunidade, alimentando, por óbvio, o crime.

Ao Poder Executivo tampouco ocorreu fazer qualquer manifestação a respeito das demandas dos protestantes, nem para dizer que sim ou que não à justeza de cada uma delas.

Se é verdade que a presidente da República se sensibiliza com essas e outras questões relacionadas à corrupção, natural seria que do governo se visse um gesto, se ouvisse uma palavra.

Mas, não. Assim como ocorreu na primeira rodada de protestos, em setembro, os Poderes da República surdos estavam, mudos ficaram.

Realmente não é fácil atuar no campo da generalidade, do combate à corrupção como um todo, se não há pontos de partida e de chegada.

Mas, no caso, aqueles atos apresentaram pedidos objetivos, além de perfeitamente exequíveis.

A resolução de dois deles está prometida para muito em breve: os julgamentos no Supremo Tribunal Federal da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e da ação que retira do CNJ o poder de iniciativa de investigar condutas suspeitas na Justiça.

Tais decisões têm sido adiadas sob o argumento de que são controversas e seria necessário esperar a nomeação pela presidente do nome que falta para completar o colegiado de 11 ministros.

A presidente não faz a sua parte, indicando o (a) substituto (a) de Ellen Gracie, mas o tribunal nem por isso tem razão objetiva para esperar. Tanto que estava pronto para votar a questão do CNJ e só não fez por causa da polêmica suscitada pela corregedora Eliana Calmon ao se referir à existência de "bandidos de toga" no Judiciário.

Sobre a Ficha Limpa, o adiamento tampouco se justifica, uma vez que no primeiro exame do tema, ainda em 2010, a maioria dos magistrados havia se manifestado a favor da constitucionalidade da lei.

Lei esta que já produziu filhotes em dez cidades e quatro Estados, cujo conceito está sendo incorporado no cotidiano e ampliado para além da exigência a deputados e senadores.

O terceiro pedido, o fim do voto secreto nas decisões do Parlamento, seria em tese o mais fácil de ser atendido porque já tem um bom caminho andado.

Foi aprovado em primeiro turno na Câmara em setembro de 2006 e, apesar dos 383 votos favoráveis, nenhum contra e quatro abstenções, virou letra morta na leniência surda dos líderes partidários e da Mesa Diretora da Casa.

O que falta para retomar a votação? Nada além de vontade para escutar a voz que vem de fora. Voz consagrada no sempre ignorado artigo primeiro da Constituição que estabelece o poder como originário do povo, "que o exerce por meio de representantes ou diretamente".

Ao ignorar o mandamento, os eleitos, para o Legislativo ou para o Executivo, subestimam o discernimento popular e põem em dúvida a legitimidade dos próprios mandatos.

Delegações estas que só existem porque em determinado momento os donos das vozes que não são depois ouvidas foram às urnas para autorizar sua existência. E, estando credenciados para eleger, estão também para exercer o poder de dizer o que fazer.

Do contrário, suas excelências estarão reconhecendo que o povo errou na escolha.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Abaixo a corrupção! :: Eliane Cantanhêde

Má notícia para os descrentes, boa notícia para os milhares que foram às ruas no 12 de outubro protestar contra a corrupção e exigir a constitucionalidade da Ficha Limpa, o fim do voto secreto no Congresso e a abrangência do CNJ: a onda está crescendo.

No Congresso, políticos e assessores já buscam e analisam projetos que estendem a Ficha Limpa, hoje restrita ao Legislativo, para o Executivo e o Judiciário. Assim, o candidato a uma vaga num dos três Poderes só poderá assumir se não tiver sido condenado por um colegiado.

No governo, a Controladoria-Geral da União propõe a introdução, por decreto, de critérios da Lei da Ficha Limpa para ministros e todos os cargos de confiança, que, cá pra nós, não são poucos.

E os Estados começam a se coçar. Em Santa Catarina, um dos que saiu na frente, foi aprovada a extensão da Ficha Limpa para, simplificando, todo mundo. E está sendo cumprida.

Alertado pelo Ministério Público Estadual, o governador Raimundo Colombo teve de trocar o presidente da SCGás (companhia de gás do Estado), Altamir José Paes, e vai ter de afastar o secretário de Agricultura, João Rodrigues. Sem entrar no mérito, o fato é que ambos não são, técnica e legalmente, Ficha Limpa. Logo, não podem ocupar os cargos.

É assim, com as instituições agindo, a lei sendo cumprida e as pessoas exercendo a cidadania, que o Brasil vai caminhando. Aos trancos e barrancos, é verdade, mas em frente.

Saiu de uma ditadura violenta pacificamente, sem derramar uma gota de sangue. Viveu o impeachment do primeiro presidente eleito por voto direto em décadas sem um tiro. Estabilizou a economia e mudou a moeda com brilho. Foi governado por um migrante nordestino que deixou sua marca e encantou o mundo.

A nova batalha é contra a corrupção, que nunca será extinta, mas pode ser bem menos dramática se cada um fizer a sua parte. Inclusive você.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Corrupção e privilégios :: Alberto Dines

Elementar, nuclear, primal – a corrupção é o problema dos problemas, ponto de partida de todos os nossos vícios e malefícios. É a disfunção genética do Estado brasileiro que desvirtua, avilta, deteriora e perverte as melhores leis, instituições, costumes e intenções.

Os entraves que impedem o nosso progresso em todos os campos estão diretamente relacionados com a corrupção e a impunidade. Da indústria das emendas orçamentárias oriundas do Legislativo à indecente troca de cargos por votos, das nomeações de notórios incompetentes aos conflitos de interesses enquistados nos desvãos do poder público, do abuso do álcool ao volante (responsável pelas 50 mil mortes no ano passado) ao crescimento exponencial do narcotráfico e das milícias, das falhas da Defesa Civil às agressões ao meio ambiente, da inoperância dos sistemas de fiscalização dos serviços públicos às trapaças das licitações para concessões, tudo tem a mesma matriz e o mesmo DNA – a complacência com a imoralidade. A prevaricação é tamanha que chega a deturpar o próprio sentido das palavras e dos valores que representam.

Lutar contra a imoralidade tornou-se opção arcaica, burguesa, reacionária, oposta à noção de modernidade e eficácia. E isso a tal ponto que dos 28 partidos políticos registrados até 27 de setembro último nenhum ousou desfraldar de forma ostensiva, inequívoca, a bandeira da luta contra a corrupção.

A 29ª agremiação legalizada, o Partido Social Democrático (PSD), engendrado pelo prefeito paulistano, Gilberto Kassab, ofereceu como prova de sua universalidade – ou inapetência para compromissos – que não será de esquerda, de direita ou de centro, porém não se manifestou a respeito da maior aspiração da sociedade brasileira: o império da decência.

Nem poderia, porque o próprio nome da sigla é uma tremenda fraude histórica, seu nome de batismo foi afanado, caso clássico de apropriação indébita. Sequestro clássico: a social-democracia, com ou sem hífen, ostenta um passado de conquistas sociais, humanas, políticas e éticas sem paralelo no mundo, sobretudo na Europa com sólidas ramificações na América Latina, Oriente Médio, Ásia e Oceania.

Deturpar o passado, desvirtuar significados e assumir ostensivamente um comportamento enganoso, mesmo no plano imaterial, é indecoroso, a probidade deve valer em todas as esferas. Mesmo com o louvável intuito de confrontar esta excrescência política chamada PMDB o logro recém-lançado no mercado dos votos com o nome de PSD é injustificável. Só servirá para consagrar a promiscuidade e a galinhagem eleitoral cujo destino final é, sabidamente, a corrupção e sua dileta cria, a impunidade.

Os 20 mil indignados e idealistas brasilienses que nessa quarta-feira esqueceram o feriado e manifestaram-se contra os corruptos e seus beneficiários não precisam ostentar propostas concretas ou programas definidos. Acreditam na primavera brasileira e isto é o bastante. Tal como os seus co-irmãos norte-americanos (principalmente novaiorquinos) que investem contra Wall Street, mas na realidade estão resistindo à anarquia do Tea Party. Acima e abaixo do Rio Grande, as duas legiões defendem o Estado decente, justo, isonômico.

Os grandes clamores populares que mudaram os rumos da humanidade nos últimos 500 anos não obedeciam a plataformas rígidas, arrumadas. Foram explosões de insatisfação que hoje podem ser canalizadas através das redes ditas "redes sociais" e da mídia tradicional. E se estas se mantêm acríticas, perplexas, abobalhadas, convoque-se o magnata Warren Buffet que acaba de divulgar ruidosamente a sua declaração de rendimentos: pagou apenas 17.4% de imposto, enquanto que, para seus empregados, a alíquota foi de 30%. O magnata e social-democrata alemão, Walter Rathenau, um dos pilares da República de Weimar, também favorecia o imposto sobre fortunas. Foi assassinado pelos precursores do nazismo.

Está claro: o mundo clama pelo fim dos privilégios. A corrupção quer mantê-los.

Alberto Dines é jornalista

FONTE: JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Sem lenço, sem documento :: José de Souza Martins

Trabalhadores sobreviventes da invasão eletrônica não incluem em suas demandas a degradação sofrida com a concorrência da máquina

As manifestações coletivas que estão ocorrendo nestes dias, como as greves dos bancários, a greve dos postalistas e as marchas contra a corrupção, contêm evidências de mudanças e impasses no clamor social. As passeatas contra a corrupção, mesmo com a relativamente pouca participação popular, confirmam o advento de um novo sujeito da ação coletiva, representado pelas redes de relacionamentos. A mobilização de multidões pode ser iniciada até por um adolescente solitário a partir do computador que com ele divide o quarto de dormir. Já não depende de assembleias, de grandes reuniões ou de personalidades carismáticas. São agora assembleias invisíveis, constituídas por numerosos indivíduos sem cara. São assembleias permanentes, que debatem, questionam e mobilizam dia e noite.

O que se vê nas ruas não mede o extenso desdobramento das inquietações que fervilham no silêncio de recintos privados, quebrado apenas pelo ruído da digitação. Boa parte desse grito da rua foi menos para questionar o imobilismo dos que lá não estavam e sim os silenciosos, os indiferentes. Não foi um clamor público, mas um clamor pelo público, uma tentativa de acordar os que foram anestesiados ao longo dos últimos tempos por diferentes fatores de conformismo.

Mesmo os que estão despertos, como os que se manifestaram ou vêm se manifestando nas greves dos bancários e a dos postalistas, estão metidos numa teia de problemas que os tolhe mais do que lhes dá vigor. Ao punirem, ainda que involuntariamente, os que deles dependem nos serviços que prestam, empobrecem suas reivindicações. Não incluíram na pauta de suas demandas as injustiças que vitimam também os usuários de seus serviços, nos Correios e nos bancos. Teriam mudado radicalmente o eixo de sua negociação, superado os limites de seu corporativismo redutivo e conseguido um aliado poderoso se se reconhecessem naqueles a que servem. Suas demandas ganhariam a dimensão de demandas pela qualidade de vida de todos e não só pelas carências de alguns.

Esse alheamento reduz a concepção das necessidades sociais a meras necessidades trabalhistas, de grupos determinados, como se eles as tivessem e os demais, não. Com isso abandonam um extenso terreno de mudanças sociais possíveis em troca apenas de retornos pecuniários, provavelmente muito desproporcionais aos ganhos das empresas em que trabalham. Sem contar a erosão da necessidade dos serviços que prestam, sobre a qual não têm nenhum controle. No caso dos Correios, a correspondência corriqueira e cotidiana já não depende deles, substituídos que foram pelo telefone e pela internet. No fundo, cada um tem um correio próprio ou alternativo. Isso não torna irrelevantes as funções dos Correios, multiplicadas pela importância que vem tendo como meio de venda e transporte de mercadorias ou como agência bancária. A greve revelou, de lado a lado, um perigoso desdém pelos usuários. Penso, particularmente, naqueles que, tendo pago as caríssimas tarifas do Sedex, não receberam no prazo suas encomendas nem foram considerados nas negociações ou na decisão do tribunal que pôs fim à greve: quem e quando vai devolver-lhes o dinheiro que pagaram por um serviço que não receberam? Não seria isso estelionato?

No caso da greve dos bancários, há que considerar que boa parte dos serviços dos bancos já não precisa da presença do cliente nem da existência de um funcionário fisicamente presente atrás do caixa ou de um balcão. Podem ser feitos pela internet ou no caixa eletrônico. De certo modo, a greve fortaleceu a posição dos bancos, disponíveis apenas para o irrisório reajuste real de salários que aceitaram conceder a seus empregados.

O enfraquecimento das demandas dos trabalhadores de serviços como os postais e os bancários não se deve principalmente à robotização, mas ao fato de que os sobreviventes humanos da invasão eletrônica não descobriram as fragilidades morais da prestação de serviços como esses. Limitados aos convencionais direitos trabalhistas, reduzidos ao econômico e ao salarial, não conseguem incluir na pauta de suas demandas a condição humana e sua disfarçada degradação pela concorrência da máquina. Nem conseguem definir uma pauta de demandas relativas às singularidades da diversidade humana da força de trabalho, como as da mulher, as do jovem, as do idoso, as do negro, as do diferente, as do portador de deficiência e outros atributos que os sujeitam a vulnerabilidades específicas. A categoria genérica de trabalhador, uma das grandes mistificações políticas das últimas décadas, perdeu-se no tempo. Tornou-se uma abstração de discurso, que não sofre as dores das necessidades radicais, as que não podem ser atendidas sem mudanças e transformações.

José de Souza Martins, sociólogo, professor emérito da USP, é autor de A política do Brasil Lúmpen, Místico (Contexto 2011).

FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO

Labor sem rosto - Ricardo Antunes - Entrevista

Para sociólogo, vivemos uma nova morfologia do trabalho, à qual precisamos dar dimensão humana

Mônica Manir

Ricardo Antunes pôde escolher a capa de seu último livro e não fugiu ao lavoro. Quis A Vendedora de Flores, do mexicano Diego Rivera, porque ali há uma mulher carregando um fardo e ele queria explorar, sem mais-valia, a feminização do trabalho. "Porque, quando se vai para o mundo latino-americano, é gênero, é etnia."

Estudioso do universo do trabalho há quase 40 anos, metade deles voltados à classe operária brasileira, metade aos que suam nos países capitalistas do Norte, ele agora trata do continente do labor, que é como chama a nuestra América no título do livro que lança no último dia de outubro. Nesta entrevista dada no feriado de quarta-feira, o sociólogo da Universidade de Campinas explica de onde vem essa nossa pendência para o extenuante. Também usa as greves dos Correios, recém-desmontada, e a dos bancários, ainda em vigor, para fazer um balanço do movimento sindical do País, que pena para entender a classe trabalhadora ampliada e diversificada. Por fim, como um recreio entre quase duas horas de conversa, sai-se com esta brisa, à moda latina: "Às vezes até no trabalho se brinca, como se buscam coágulos de felicidade".

Por que chamar a América Latina de continente do labor?

A América Latina nasceu sob o signo de apêndice das metrópoles Espanha e Portugal, que converteram esse continente num prolongamento. No caso hispânico, um prolongamento de extração de ouro e prata. No brasileiro, além dos metais preciosos, houve a montagem de um processo de produção que Caio Prado Jr. bem chamou de colônias de exploração. Essa montagem se assentava na intensificação do trabalho, seja sob o modo escravista indígena, seja com base na mão de obra africana. Nosso continente, portanto, nasceu para o labor. O labor chama a atenção para a dimensão extenuante, de sofrimento. Se o trabalho é um pêndulo entre criação e servidão, o labor é o pêndulo no seu lado negativo. Vivemos para o enriquecimento externo.

Quando se deflagraram as primeiras greves no continente?

O assalariamento no continente latino-americano começou em meados do século 19. Em 1858, há uma greve de trabalhadores gráficos no Rio de Janeiro. Em 1890, uma manifestação na Argentina, que marcou o 1º de Maio naquele país. Na viragem do século, ocorreu, pela política de substituição de importações, um assalariamento intensificado. Aí as greves não mais pararam. Tivemos a de 1917 no Brasil e outras importantes na Bolívia, na Colômbia, no México, no Uruguai, na Argentina. Na década de 50, às vésperas da revolução cubana, a greve geral em Havana também foi importante.

E quanto à organização dos sindicatos? Há elementos comuns na América Latina?

O continente é muito heterogêneo nesse sentido. Houve no Brasil uma importante experiência anarcossindicalista, que tem relação nítida com a imigração italiana, espanhola e outras que povoaram nosso mundo assalariado, especialmente no início do século 20. O anarcossindicalismo também teve expressão no Uruguai e intensidade relativa no Chile e no Peru. Os anarcossindicalistas eram contra a organização político-partidária. Lutavam pela ação direta, o aqui e agora, a confrontação. Mas há países onde o anarcossindicalismo disputava com o chamado socialismo da Segunda Internacional, o socialismo reformista. É aquele socialismo que quer mudanças da sociedade capitalista para a socialista por meio de reformas do processo eleitoral. Na Argentina, por exemplo, o socialismo reformista disputou com o anarcossindicalismo a hegemonia nos sindicatos. O descontentamento com um e outro gerou o movimento comunista, que propunha um partido político para a organização dos trabalhadores. Queriam transformar o Estado burguês num Estado operário.

De qual corrente está mais próximo o sindicalismo brasileiro hoje?

Ele é hoje é uma confluência complexa de três ou quatro movimentos. Primeiro, o "novo sindicalismo", assim entre aspas, que nasceu nos anos 70 e do qual Lula foi a maior liderança. O novo sindicalismo gerou uma linhagem que fundou a Central Única dos Trabalhadores, a CUT, em 1983, e, através da renovação de suas lideranças e de suas gerações, predomina hoje na Central, embora muito diferente de seu início. Uma segunda vertente importante é o sindicalismo pelego dos anos 30, 40, 50, que foi se revigorando. O pelego, aquele amaciador que vai entre o lombo do cavalo e o cavaleiro que está trotando, aquele líder sindical que amortece os conflitos entre o capital e o trabalho, esse você não elimina. Os pelegos se diziam colaboradores de classe. Qualquer que fosse o governo, eles apoiariam. A Força Sindical herda uma parte desse velho sindicalismo. Não por acaso ela apoiou o Collor, apoiou o Itamar, apoiou o Fernando Henrique, apoiou o Lula, apoia a Dilma e é capaz de sentar no palanque com Serra e Alckmin. Claro que a Força Sindical não é só peleguismo. Ela tem ex-comunistas e ex-militantes do novo sindicalismo que hoje acham que a sociedade capitalista é boa, só precisa ser um pouquinho mais justa. Se for olhar dentro da CUT, há tendências que se aproximavam do anarcossindicalismo, mas no passado. Hoje essas correntes estão em núcleos de estudo, em poucos militantes mais antigos ou num movimento com traços de anarquia presente mais na juventude e menos no movimento operário.

As diferenças entre a Força Sindical e a CUT têm diminuído?

Em muitos pontos, sim. Na década de 90, elas não passavam do mesmo lado da rua. Hoje, quem não é ministro quer uma secretaria no governo. Ambos estiveram na gestão Lula e agora estão na da Dilma. Isso mostra a capacidade que o Lula teve de cooptar no aparato de Estado uma parte importante da cúpula do sindicalismo brasileiro. Trouxe a Força Sindical, porque não é difícil trazer a Força Sindical para governo nenhum. E trouxe a CUT, porque a CUT tem relações ontogenéticas com o PT, são em certo sentido aparentados. Num governo petista, ainda que com tudo que está lá dentro, é evidente que a CUT se sente mais em casa do que se sentia no do PSDB.

Elas pensam de forma parecida sobre o imposto sindical?

A Força Sindical defende o imposto porque, tendo dinheiro, para ela tudo fica mais fácil. A CUT é contra o imposto sindical, mas não o devolve. Aliás, uma das piores coisas do governo Lula, das mais nefastas, foi ter ampliado o imposto sindical para as centrais, coisa que nem o Getúlio ousou fazer. As centrais sindicais hoje têm uma fatia de dinheiro enorme, que vai para elas direto. A nenhum associado é perguntado se quer descontar esse imposto ou não. A única entidade sindical que não o aceita e, nesse ponto, é absolutamente coerente é a Conlutas. Ela diz que vai viver do pagamento autônomo dos associados. Porque, quando se vive de um recurso que o Estado arrecada e repassa, desvirtuou-se a autonomia.

No seu livro, o senhor afirma que o governo Lula contou com o suporte de forte parcela da burocracia sindical. Dilma, ao indicar o corte de pontos dos trabalhadores dos Correios, gerou antipatia nos sindicalistas?

O Lula é um dos casos mais bem-sucedidos da política brasileira do self-made man, daquele indivíduo que vai subindo as escadas e chega ao alto. Cada degrau da sua ascensão foi um valor que ele deixou para trás. Já cansou de falar que trabalhador tem de ser descontado, esquecendo seu passado. Nos anos 78, 79 e 80 ele celebrizava as greves por buscar melhores direitos e lutar para que não houvesse o desconto dos dias parados. Ao mesmo tempo, Lula é um conciliador, uma variante de semibonaparte. Não no sentido ditatorial, o que ele nunca foi. É um semibonaparte porque é o pai de todos, concilia os inconciliáveis. A Dilma é mais dura e o corte de ponto pode ser uma questão de conflito, sim. Já houve greve metalúrgica de 41 dias. Se um trabalhador fica 41 dias sem receber num ano, imagine como fica seu orçamento anual, que já é caótico na normalidade. Tem muita gente dizendo que fazer greve é tirar férias. O Guimarães Rosa diz que pão e pães é questão de opiniães. Cada um dá a sua, mas, ao fazer greve, as pessoas têm medo da repressão, não sabem se serão demitidas, às vezes a família é contra. Não raro fazer greve é muito pior que trabalhar, pensando no infortúnio que o trabalhador sente porque pode perder não o aumento, mas o emprego.

Durante a greve dos Correios, os sindicatos teriam reclamado que as franquias e as empresas mistas de logística criariam portas para a privatização do serviço. A presidente diz que isso não procede. Procede?

Não tenho dúvida de que procede. Ela não disse na campanha eleitoral que não ia privatizar mais nada? O que está acontecendo com os aeroportos? É evidente que os Correios estão intentando ações para se tornar uma transnacional latino-americana. A empresa arrocha seus trabalhadores. Onde havia três, agora há um. Tem muita gente interessada em que essa privatização se dê. Quando os Correios garantem um custo mínimo para entregar uma carta simples no interior da floresta amazônica, essa correspondência é antieconômica para a empresa, mas profundamente humana, justa e social. Numa empresa privada, vão dizer ao cidadão que vá buscar a sua carta na cidade mais próxima, que dista 150 km, e de barco. Uma empresa privada tentará tornar a carta rentável. Nenhuma que se privatizou prestou melhor serviço para a população e mais barato. Quando o serviço é melhor, ele é muito mais caro - e frequentemente é mais caro e não é melhor. E não é só no Brasil que isso acontece.

Deveria haver regulamentação das paralisações dos servidores públicos?

Esse é um capítulo delicadíssimo. Tivemos na constituição de 88 o direito pleno de greve. Numa legislação suplementar, seriam estudados casos excepcionais. Às vezes ouço: a greve está penalizando a população. Mas não conheço nenhum caso bem-sucedido em que uma empresa diz que vai dar mais do que pedem os empregados. O continente do labor é isto: lutar para conseguir o mínimo, especialmente nas categorias que não dispõem de capital cultural para que possam negociar o preço de sua força de trabalho com mais intensidade. Se for regulamentar, tem de saber primeiro o que é vital. Em hospitais, não se pode deixar as pessoas morrerem. Agora, se tudo é prioritário, por que o salário não o é? Só para lembrar: o que os bancos estão propondo de aumento acima da inflação para os bancários não chega a 1%, e nesta quase uma hora em que estamos falando é incalculável o lucro que os bancos tiveram num dia que é feriado, só pela especulação.

O senhor comenta a drástica redução do contingente de trabalhadores bancários na América Latina. A que se deveu isso?

Chegamos perto de 1 milhão de bancários em 1980. Hoje são cerca de 490 mil, mas certamente há um outro tanto, perto disso, que está terceirizado. Quando você liga à noite para o banco e quer fazer uma operação, não está falando com um funcionário, e sim com uma empresa terceirizada. Isso tem riscos de todo tipo, até mesmo de sigilo bancário. Vivemos uma nova morfologia do trabalho, na qual há um trabalho invisibilizado ao qual precisamos dar uma dimensão corpórea, humana e subjetiva. É o call center, o motoboy, os trabalhadores dos grandes supermercados. Só no call center do Brasil há mais de 1 milhão. É uma das mais significativas categorias que aglutinam trabalhadores, quantitativamente falando. O filósofo Jürgen Habermas disse, em 1980, que o problema da classe trabalhadora europeia é que ela tinha se integrado ao capitalismo tardio e se pacificado. Imagino o que está pensando da "pacificação" da Grécia hoje, de Portugal, da Espanha, da Itália, dos EUA, da China. Aliás, o país onde há mais greves no mundo é a China.

E eles conseguem o que pedem?

Como saber? Mas, até um ano atrás, a China não tinha legislação social do trabalho. O discreto charme do trabalhador e da trabalhadora chinesa é a intensa exploração do seu trabalho. Pois há uma empresa que obriga os candidatos a emprego a assinar um documento em que está escrito que não vão se suicidar. Se se suicidarem, o pecúlio que ficaria para a família será perdido. É tentar impedir o nível de suicídio no país, que começa a ser alto, como é alto na França e na Coreia. Para entender o abominável mundo do trabalho hoje, só na France Telecom, nos últimos três anos, houve aproximadamente 45 suicídios. Isso abalou o governo Sarkozy, você está entendendo?

É suicídio de recém-demitidos ou de empregados?

É de empregados. A Telecom entrou num processo de privatização. Aí passou a exigir metas e competências, mais metas e mais competências, quem não as atingia era demitido. A pessoa entrava na Justiça e conseguia voltar. Então a empresa pegava esse trabalhador e dizia: "Veja como um trabalhador não pode ser". Botava ele num boxe e isolava como um mau exemplo a evitar. No terceiro dia, o indivíduo não aguentava mais a discriminação. Deixava um bilhete.

Isso se assemelha às mortes por excesso de trabalho que acontecem no Japão?

A morte por excesso de trabalho é o karoshi. O trabalhador está vendo que sua empresa está falindo. Diz que vai trabalhar mais porque se sente culpado por isso. Pode ser o trabalhador de base ou o gestor. Ele fica 4, 10, 12 dias sem sair da empresa e sem parar de trabalhar. Então morre. É interessante saber que nesse país em que mais se trabalha no mundo existem hoje cybercafés em que, a partir de certa hora da noite, o preço da internet é quase zero. O jovem trabalhador japonês, imigrante ou migrante, que não tem casa para morar nem dinheiro para alugar aqueles cubículos, vai para esse cybercafé e faz o chamado três em um. Primeiro, descansa. Depois interage com sua rede social. Então aproveita para buscar trabalho contingente, em que porto vai descarregar, em que fábrica. É melhor fazer isso que ficar pela rua. Isso é em Tóquio. Em Tóquio. É por isso que a classe trabalhadora está nervosa em escala mundial.

Várias empresas estão investindo no bem-estar do funcionário para aumentar a produtividade. Massagem, aulas de esporte e até acupuntura estão sendo usadas. O senhor vê isso como uma conquista?

O corpo produtivo está adoecendo e o subjetivo também. E o mundo das empresas precisa desse corpo para intensificar a meta e a produção. Se eu não trato esse corpo doente do trabalho com aspirina, a dor é alta. Então dá aspirina para o povo, ainda que a doença seja mais profunda.

Isso é aspirina?

E tenho dúvida se do melhor laboratório.

Como os sindicatos podem atuar quanto aos desempregados?

Difícil. Tenho acompanhado Itália, Espanha, Inglaterra, EUA, Japão. O sindicato nasceu como um órgão da fábrica. Não está fácil na fábrica saber quem é o terceirizado, quem não é. Também parece complicado medir o desemprego. Quem trabalha uma hora por dia está empregado ou desempregado? E aquele que não procura emprego porque não tem dinheiro? Ele também não é considerado desempregado. Em 2001, de cada dois argentinos, um estava fora do mercado. Então nasceu a Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), que tem uma política voltada para a organização dos trabalhadores desocupados. Isso é uma experiência importante, mas é como se o sindicato tivesse de lidar com uma experiência que desconhece. E desconhece tantas... Por que, por exemplo, o presidente do sindicato dos trabalhadores em telemarketing é um homem, sendo que 60 a 70% da categoria é composto por mulheres?

Essa discriminação acontece na maioria dos sindicatos, não?

Tenho uma série de livros de pesquisa que se chama Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. No volume 1 há um depoimento muito bonito de uma metalúrgica de Campinas. Ela disse: "Eu e meu marido trabalhamos na mesma empresa. Quando tem uma assembleia de noite, meu marido fala o seguinte: "Você vai pra casa e prepara a janta que eu vou passar no sindicato. Lá pelas 10 horas eu chego. Mas fica tranquila, a gente janta junto"". Aí ela pergunta: "Por que eu tenho de ir pra casa, e não ele?" Porque ainda existe uma divisão sócio-sexual tradicional do trabalho. Nas decisões sindicais, para não falar das partidárias, há predominância masculina. E trato dos sindicatos mais combativos, que sabem que homens e mulheres trabalham, jovens e não jovens também, brancos, negros e índios idem. Se os sindicatos não entendem essa nova morfologia do trabalho, como vão representar a classe trabalhadora ampliada e diversificada?

Quem critica o novo aviso prévio, de até 90 dias, diz que aumentará o ônus dos empregadores e intensificará a informalidade. O senhor concorda com esse raciocínio?

Os que dizem isso são os mesmos que foram contra o prolongamento da licença-maternidade, que são a favor de acabar com o descanso semanal remunerado, sempre com o pretexto de que as empresas têm prejuízo com essas medidas. É falacioso isso. O aviso prévio está na constituição de 88. Deveria estar regulamentado pelo Congresso há mais de 20 anos. O Congresso é o fórum do parasitismo, a paralisia, a corrupção, a travagem, a deslegislação para a negociação. Quando o Judiciário começa a se mexer, o Congresso corre. A medida tomada é muito razoável. O aviso prévio de quem está há 20 anos numa empresa tem que ser maior do que aquele que está há um ano porque o primeiro perdeu o pé do mercado de trabalho. Vai ter de entrar na lei da selva com seus 35, 40 anos. Alguém dizer que isso vai diminuir o lucro da empresa... É evidente que vai diminuir, mas pouco. O Brasil tem uma das mais altas taxas de lucro do mundo. A comida do pintinho é a quirera. Vai ser na quirera.

E quanto ao aumento da informalidade?

Fui convidado pelo TST para aquele seminário da regulamentação da terceirização que citei. Ali ouvi um industrial dizer que, se você limitar a terceirização, você precariza.

Precariza o quê?

Precariza o trabalho. Por consequência, se deixar a terceirização livre, para fazer o que quiser, é bom para os trabalhadores. Não há nenhuma pesquisa científica, feita com independência, que defenda essa tese, entendeu? Todos os estudos sérios mostram que o maior número de acidentes de trabalho ocorre entre os terceirizados, assim como o maior número de mortes no trabalho e os adoecimentos. Quem disse isso deve estar nadando em diamantes em cima do trabalho dos terceirizados. Pessoas razoavelmente lúcidas dos países avançados, nem falo de gente de esquerda, mas dos mais brandos, entendem que não se combate a estagnação cortando salário nem direitos porque haverá menos produção, menos consumo, menos emprego. Mas os governos intervêm nos bancos com bilhões e os bancos pegam esses bilhões para remunerar os gestores que faliram os bancos. Aí a população diz: "Não dá mais". E ocupa Wall Street.

O senhor apostaria em um Ocupar a Avenida Paulista?

Já imaginou? Depois você pode imaginar a Revolta dos Imigrantes do Brás e do Bom Retiro, ou o Levante da Periferia do M" Boi Mirim, de gente que não quer mais morar em casas à beira da explosão porque foram construídas em cima de lixões. Falando sério, aqui o quadro é diferente porque houve, por parte da população brasileira, a perspectiva de que, em 2002, o governo iria mudar. O Bolsa Família é algo muito mais do que o R$ 1 que o rico deixa na porta da missa depois que sai de alma lavada. Se o Bolsa Escola do FHC atingia 2 milhões de pessoas, o Bolsa Família chega a 12, 13 milhões. E a população percebe a diferença. Agora os movimentos sociais sabem que uma coisa é lutar contra o Collor, outra é enfrentar o Fernando Henrique, outra é lutar contra um governo como foi o de Lula e parece ser o de Dilma, que tem ascensão sobre todos os movimentos sociais. Os anos 80 foram uma das décadas mais importantes de lutas sociais no Brasil. Tivemos uma das mais altas taxas de greve do mundo, com quatro delas gerais. Se olharmos a década de 2000 frente a essa, veremos que nossos movimentos entraram na longa desertificação da era neoliberal. Não está sendo fácil passar por essas mudanças todas.

Sociólogo, professor da Unicamp e autor, entre outros, de Adeus ao trabalho e o novo sindicalismo no Brasil

FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO