sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Comida para pensar :: Fernando Gabeira

O ano passado foi humilhante para os profetas. Quem esperava tudo aquilo? Em 2012 o estômago vem antes dos sonhos. Uma nova alta de alimentos ameaça a estabilidade de muitos pontos do globo. Os economistas afirmam que haverá uma transferência de renda para os que produzem alimentos. O Brasil está bem na foto. Mas o quadro geral não é nada animador.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o mundo entrou numa fase perigosa. O preço dos alimentos atingiu o nível mais alto desde a crise de 2008: nesse ano era de 213 a média ponderada do preço de alguns produtos (carne, cereais, lácteos, azeites e óleos), no fim de 2011 subiu para 215. Isso no ano em que passamos a ser 7 bilhões no planeta. Cerca de 70 milhões de novas bocas surgem a cada ano. Sem nenhum alarme, é preciso encarar o problema

Em Moçambique o preço do pão provocou uma revolta em setembro. Em todo mundo o aumento de quase 80% no trigo ao longo dos dois últimos anos foi um elemento, às vezes subavaliado, de instabilidade política.

Se olharmos a produção mundial com a perspectiva dos últimos 50 anos, custa-nos a entender como a crise chegou a esse patamar. Os alimentos foram tratados como qualquer mercadoria. O avanço tecnológico e a competição aumentaram a produtividade num ritmo animador. Os custos de alimentação caíram dramaticamente, a ponto de a produção mundial sobrepassar as necessidades calóricas per capita em 20%.

Paul Roberts, no seu livro O Fim da Comida, insinua que não foi casual o aumento da obesidade na década de 1980, quando o modelo de grandes volumes e baixo preço dos alimentos atingiu sua maturidade. Apesar do progresso, porém, ainda se atribuem à fome cerca de 36 milhões de mortes, sem contar a fadiga permanente, a atrofia física e intelectual causadas pela subnutrição.

Nesta conjuntura de alta de preços e consumo crescente na China e na Índia, é razoável duvidar do crescimento sustentável do modelo de produção de alimentos, que depende basicamente de três fatores: energia barata, estabilidade climática e água abundante. A China volta-se para o mercado de alimentos não apenas porque tem muita gente, mas também pela redução de recursos hídricos em algumas províncias, onde houve superbombeamento para garantir a safra de cereais.

Tais fatores estratégicos ainda passam ao largo porque a conjuntura configurou o que os especialistas chamam "perfeita tormenta": vários fatores combinados puxaram as expectativas para baixo. Na Rússia houve a maior seca dos últimos 50 anos. Nos EUA, Austrália e Canadá registram-se grandes inundações. Alguns alimentos, como o milho, estão sendo usados na produção do etanol. E por último, mas com grande peso, houve o aumento do petróleo, embora menor que em 2008.

Cientistas e técnicos de grandes empresas, como Monsanto e Dow, acreditam poder resolver os grandes problemas da comida via conhecimento e inovação. Ainda que isso ocorra, a ausência de água abundante, energia barata e estabilidade climática transforma o quadro em que se movem. A elevação da temperatura e as mudanças no regime de chuvas tendem, mesmo em estimativas conservadoras, a frear o crescimento da produção mundial de alimentos. Como atenuante, áreas liberadas do gelo perene passam a ser mais produtivas em regiões frias. O aumento do petróleo revela a cada instante como é um dos insumos mais importantes na produção de alimentos, hoje - tratores, transporte da mercadoria, insumos para fertilizantes e pesticidas, o óleo é usado em todas as frentes.

Analistas como Paul Roberts reconhecem que novos eixos de poder alimentar se estruturam no mundo, principalmente o que associa um grande comprador como a China a um grande produtor que é o Brasil. Mas ele questiona a sustentabilidade a longo prazo: os produtores podem, ao longo do processo, esgotar também parte dos seus recursos hídricos.

No momento, o Brasil vive uma importante experiência externa no campo alimentar: depois de mandar seus soldados ao Haiti e contribuir para a pacificação do país, está sendo chamado a ajudá-lo a produzir sua própria comida. Atendendo a apelo da FAO, que pretende deslocar, pós-terremoto, 600 mil haitianos para o interior, o País enviou US$ 2 milhões, alguma toneladas de sementes e técnicos da Embrapa, além de ministrar cursos para os haitianos plantarem com êxito. Desse êxito, o próprio The New York Times reconheceu, depende o futuro próximo do Haiti: na capacidade de produzir parte de seu alimento reside uma das saídas para seu problema econômico e social.

Dia 1.º um brasileiro, José Graziano, assumiu a direção da FAO, prometendo, como não podia deixar de ser, buscar soluções para as dificuldades alimentares globais. Mas a FAO precisa de financiamento e os grandes doadores, como os EUA, estão se retraindo, em parte porque houve muitos casos de mau uso do dinheiro.

O Itamaraty, na preparação da Rio+20, formulou a seguinte pergunta: que novos instrumentos podem ser propostos para que o planeta avance no desenvolvimento sustentável? A renovação de um instrumento já existente, como a FAO, pode ser uma resposta. O Brasil ocupa a direção, é um dos maiores produtores do mundo, sediará uma conferência internacional e tem como objetivo n.º 1 de governo reduzir a miséria. Equacionar a produção de alimentos com a preservação ambiental e erradicação da miséria poderia ser um dos pratos de resistência no debate planetário de 2012.

Inegavelmente, o mercado propiciou um grande salto na produção, mas sozinho não resolve o problema. Quanto mais valor se agrega à comida, mais distante ela fica de mercados como Bangladesh ou Etiópia. Se os ganhos com a alta de alimentos transferem renda para os grandes produtores, eles podem ricochetear nos consumidores internos ou mesmo derrubar governos que não podem mais pagar os subsídios.

Sem arriscar profecias: a alta dos alimentos, tão presente em 2011, é do tipo que não festeja o réveillon, pois se move num tempo mais elástico do que a simples virada do ano.

*Jornalista

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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