quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Carnaval, crack e federação:: Marta Arretche

"O Carnaval tem que ser adiado!" Assim se manifestava a imprensa no fim de 1919, em vista do terror motivado pelas mortes de milhares de vítimas da gripe espanhola. Cancelar estava fora de cogitação, é claro! Mas adiar era um imperativo de saúde pública.

Passo seguinte: na véspera do Natal de 1919, o Plenário da Câmara de Deputados aprovou, por 112 votos a favor e nenhum contra, a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública. Rápida aprovação no Senado, na véspera do Réveillon, criou o órgão do governo federal, autorizado a coordenar e executar serviços de saúde pública nas unidades da federação, além do DF e do Acre.

As datas sugerem afogadilho na decisão. Em "A Era do Saneamento", Gilberto Hochman revela que esta conclusão é falsa. A criação do órgão afetava um pilar da República Velha: a autonomia dos Estados. Por isto mesmo, seus representantes negociaram intensamente até concluir o acordo que obteve votação consensual. Em "How Democratic is the American Constitution", Robert Dahl desfaz o mito de que escolhas constitucionais são peças filosóficas. Mostra que a fórmula do colégio eleitoral para escolher o presidente americano foi adotada no último minuto, quase por desespero, ao final dos três meses da Convenção de 1787, devido a divisões profundas entre os constituintes.

Entre a autonomia formal e a autonomia há uma distância

Cá e lá, ambas as escolhas vieram para ficar. Nos Estados Unidos da América, a decisão reforçaria o poder dos Estados pois preservou sua autoridade para decidir a regra de escolha de seus representantes naquele colégio. Nos Estados Unidos do Brasil, a decisão foi o início da decadência dos Estados na federação, bem antes do espetáculo da queima das bandeiras estaduais protagonizado por Getúlio Vargas.

O fato é que nossa Primeira República ficou registrada como um grande fiasco. Até mesmo o regime de Mussolini tem mais defensores na Itália do que a República Velha no Brasil!

Pela Constituição de 1891, a ação direta do governo federal estava restrita ao DF e ao território do Acre. Ocorre, alerta Hochman, que o mosquito não respeita fronteiras. Sem combate simultâneo em todo o território, o mosquito sobrevive onde a política não é executada e migra para aquelas que eficazmente o combatem. Nos debates travados desde os anos 1910, o Estado de São Paulo, dotado de capacidade técnica, era o principal defensor da prestação autônoma dos serviços de saúde. Os Estados mais pobres preferiam a autonomia mas reconheciam sua impossibilidade de aportar recursos para a tarefa. Logo, São Paulo estaria condenado a um trabalho de Sísifo, caso não abrisse mão do princípio da autonomia estadual.

A solução natalina foi o DNSP e a fórmula do "convênio". Esta permitia que São Paulo cuidasse de si e o governo federal, dos demais. A solução de compromisso permitiu a criação de um Departamento que "auxiliaria" os Estados mediante convênios. Nestes, o governo federal aportava recursos humanos, capacidade técnica, conhecimento científico, poder de polícia e - na prática - grande parte do financiamento das ações, em troca da subordinação dos governos locais à autoridade da burocracia federal.

A fórmula preservou a autonomia dos Estados, pois garantia a prerrogativa formal da adesão voluntária dos governos à política federal. Na prática, permitiu que os Estados mais pobres franqueassem suas fronteiras para a União ali atuar com total independência em relação aos Poderes locais e que o Estado de São Paulo se mantivesse autônomo.

A fórmula teve longa vida. Sua longevidade se deve à longevidade das condições que lhe deram origem. Para os Estados que se avaliam como frágeis, os custos da interferência federal são inferiores aos benefícios derivados de sua ingerência. Estados com recursos, por sua vez, podem adotar políticas próprias. Dado que os primeiros excedem em número - e muito - os segundos, o resultado foi o aumento sistemático e contínuo das políticas do poder central (e, por extensão, do partido que controla seu Executivo) no conjunto da federação.

No curso do século XX, as metamorfoses do "convênio" não alteraram um fato fundamental: entre a autonomia formal (leia-se: inscrita na Constituição) e a autonomia de fato (leia-se: políticas próprias), há uma distância. Esta é preenchida por recursos fiscais e/ou capacidade técnica. Disto decorre que tais Estados são decisivos para os partidos da oposição, pois permitem dar visibilidade a políticas alternativas às do partido no controle do governo federal.

O crack é um dos mosquitos do século XXI. Até aqui, a epidemia tem vitimado jovens aos milhares. Os corpos não são recolhidos em caminhões, como no Rio de Janeiro do início do século XX. Estão expostos nas ruas das grandes cidades, sendo a Cracolândia apenas sua versão mais espetacular.

O presente de Natal dos congressistas em 1919 não resolveu o problema da desigualdade de nossa federação. É ingênuo quem acredita que apenas leis sejam suficientes para tanto. Mas preservou a possibilidade da discordância, a despeito desta desigualdade.

O fato é que não há consenso sobre a melhor política para combater o consumo de drogas. O episódio da desocupação da Cracolândia revela quão profunda é a divergência sobre o tema. Em um polo, se encontram os que conferem papel decisivo ao agente de saúde. No outro, estão os que não abrem mão da ação policial. Cada posição tem abrigo em partidos diferentes. Não é por acaso que a desocupação da Cracolândia ocorre par e passo ao lançamento de programa com o mesmo objetivo pelo Ministério da Saúde.

Ao eleitor, caberá a escolha na próxima eleição!

Marta Arretche é professora livre-docente de ciência política na USP, diretora do Centro de Estudos da Metrópole.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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