quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Europa em queda livre? :: Eliana Cardoso

Vivendo no intervalo bíblico entre a criação e a extinção do mundo, entre o começo e o fim da História, o homem busca explicações para reduzir a ansiedade diante do imprevisível. Em harmonia com a visão segundo a qual tudo o que teve começo deve ter fim, a ideia de que a crise europeia anuncia a "morte do capitalismo como o conhecemos" tenta impor ordem ao desenrolar de eventos incertos. A História - ao registrar hecatombes e quedas de impérios - parece justificar esse pensamento linear, próprio da crença no apocalipse. Mas para contrariar a forma de organização mental em "começo, meio e fim" existem os ciclos dos negócios.

Até os modelos econômicos - parentes do trem de ferro, que segue curvas contínuas e suaves em trilhos preestabelecidos - simulam ciclos. Esses modelos não podem, entretanto, dobrar esquinas, como o automóvel e a motocicleta, ou evitar buracos, como uma carroça velha nas mãos de um bom condutor. Por isso mesmo, quando ocorre uma crise - aquele momento em que a economia dobra a esquina -, é comum interpretá-la como o ponto terminal do regime vigente. É nesse momento que os vaticínios se multiplicam para satisfazer a sede insaciável de ordem diante do imponderável. O mais eloquente dos profetas transforma-se em locomotiva e o comboio segue a reboque, repetindo em coro que o fim do mundo está próximo, até que um fato inesperado force a revisão da profecia.

O mesmo desejo dos homens de prever o futuro alimenta o interesse pela História. Portanto, vale começar por ela.

Em 1992, o Tratado de Maastricht expandiu a área de comércio livre e a mobilidade dos trabalhadores do mercado comum europeu, sendo percebido como passo importante na direção da integração política. Em 1999, a criação do euro gerou a esperança de que a moeda única e a transferência de poder das capitais para o Banco Central Europeu (BCE) aumentariam, entre a população de cada país, o sentimento de pertencer à comunidade europeia.

A influência da Alemanha fez-se visível na determinação da independência do BCE e na persecução do objetivo único de estabilidade de preços. E também na localização em Frankfurt do banco, proibido tanto de comprar títulos dos governos-membros quanto de salvar país que se tornasse insolvente (no bail-out). A Alemanha exigiu ainda penalidades financeiras para qualquer país que desrespeitasse o teto estabelecido para déficits fiscais, 3% do PIB. Mas quando, pouco depois, a França e a Alemanha furaram esse teto e o Conselho de Ministros decidiu pela não imposição de penalidades, a regra tornou-se inoperante. Existe agora a tentativa de trazê-la de volta.

Os benefícios e custos da moeda única eram conhecidos desde sua criação. De um lado, ela facilitava o comércio. De outro, tornava impossível a adoção de política monetária independente. A política monetária comum levou à queda das taxas de juros em países onde, antes da criação do BCE, as expectativas inflacionárias costumavam mantê-las altas. Ao mesmo tempo, os investidores, ignorando a cláusula de no bail-out, atribuíram risco baixíssimo aos títulos de qualquer país na zona do euro.

Em 2010, quando os investidores entenderam o próprio erro de julgamento, as taxas de juros das dívidas da Grécia, da Espanha, da Itália e de Portugal subiram. Os bancos europeus, atolados em dívidas soberanas, sofreram com a queda de valor dessas dívidas. O BCE interveio, provendo liquidez. Até aí, nada de novo.

Os brasileiros conhecem bem as quatro maneiras que permitem a um país se livrar do peso da dívida: a inflação (quando a dívida é denominada em moeda local e a indexação, imperfeita), o crescimento (a uma taxa superior ao da taxa de juros), o aumento do superávit primário (ou seja, da poupança do governo para servir à dívida) e o calote.

A inflação e a desvalorização podem reduzir a dívida denominada em moeda local, mas nem por isso os governos são capazes de aumentá-la no momento necessário e na medida certa. Os dois itens seguintes - crescer e aumentar o superávit primário - não estão ao alcance dos devedores no momento da crise. É exatamente a coincidência de crescimento em queda com taxas de juros em alta que torna a dívida insustentável. E aumentar a poupança do governo na recessão pode agravar a situação no curto prazo. A insistência da Alemanha para que a Grécia corte salários em 25% e aumente impostos pode forçar o colapso de mais um governo grego, apressando o calote.

Durante a experiência russa em 1998, o FMI batizou a moratória de "maior envolvimento privado na renegociação da dívida dos governos". A dificuldade é negociar o tamanho da perda que os credores estão dispostos a aceitar e seu contexto. À medida que 20/3 (data de vencimento de parte das dívidas gregas) se aproxima, crescem as incertezas.

Se a Grécia abandonar o euro, uma reforma monetária (como as da América Latina) pode não ser suficiente. O contágio do desmonte poria o sistema monetário internacional em risco. E o resultado tanto poderia ser um desastre - como aconteceu na década de 1930 com o abandono desordenado do padrão ouro - quanto uma transição sem maiores traumas para outro regime monetário - como ocorreu quando o dólar flutuou nos anos 1970.

Desde que os EUA preservem a própria estabilidade financeira e sua recuperação continue a ganhar corpo, a crise europeia não deve levar ao colapso das transações internacionais como na década de 1930. Mas, apesar da insistência conservadora da Alemanha, a melhor saída ainda é a possibilidade de que o BCE, os governos e o FMI continuem a empurrar a crise com a barriga, levando ao enfraquecimento do euro e à inflação mais à frente, dando a cada país tempo para consertar os desmandos, que o endividamento da última década escondeu.

*ph.D em Economia pelo MIT, é autora de "Mosaicos da Economia" (Saraiva, 2010).

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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