segunda-feira, 19 de março de 2012

Legítima defesa - de quem mesmo? :: Marcelo de Paiva Abreu

É difícil de acreditar, mas é fato. Protecionismo virou política explícita do governo brasileiro. Em contraste com o passado, quando o País se destacou na defesa do desmantelamento do protecionismo agrícola - como ficou claro nas fracassadas negociações na OMC -, agora o Brasil tornou-se campeão do protecionismo. Alega que só se defende de políticas desestabilizadoras de seus principais parceiros comerciais.

O diagnóstico que pretende justificar a maré protecionista é falho; as reminiscências históricas, distorcidas; e os pretensos remédios para reduzir a vulnerabilidade industrial brasileira, comprovadamente ineficazes. Para não falar de indignações empresariais que vicejam em meio à confusão deliberada entre interesses coletivos e interesses privados.

A despeito do que se afirma, entre 2000 e 2011 a participação da indústria no PIB se manteve em torno de 27%-30%. Em 2011, foi exatamente igual à de 2000. O que está encolhendo é a participação da indústria de transformação (que não inclui petróleo e gás natural, minério de ferro e outras extrativas, produção e distribuição de eletricidade, gás, água, esgoto e limpeza urbana e construção civil): a participação era de 17,2% em 2000 e hoje é de 14,6%.

Isso não significa que o produto da indústria de transformação esteja em queda. Está perdendo participação no PIB, algo que decorre da evolução favorável das vantagens comparativas brasileiras em outros setores da economia. Além disso, essas comparações ocultam variações importantes de preços relativos. Os preços agrícolas no Brasil, por exemplo, aumentaram 20% em relação aos preços industriais no período 2000-2011. Ou seja, em termos reais, a perda de participação da indústria de transformação foi mais modesta do que indicam os valores nominais.

A constatação dessas mudanças estruturais tem sido acompanhada de reminiscências saudosistas em relação à década de 1980, quando a indústria respondia por 47,9% do PIB. A comparabilidade dos dados de longo prazo do IBGE tem problemas insolúveis, mas é provável que tal participação excedesse de fato 40%. O que não tem sido dito é que isso ocorria porque a indústria do País era grotescamente superprotegida. A razão importações/PIB era de 3%, excluindo petróleo, comparados aos 11% de hoje. Será que pretendemos voltar a esses tempos gloriosos? Seria relevante lembrar que foi um período em que a economia não crescia e a inflação decolava além dos 200% anuais.

As medidas utilizadas para compensar as dificuldades competitivas da indústria de transformação não são eficazes. Concentram-se em tentativas de conter a apreciação cambial, desonerações fiscais discricionárias, tratamento tarifário condicionado a "conteúdo nacional" e prometida intensificação de medidas de defesa comercial. A maior parte das tentativas de interferir no câmbio é "enxugamento de gelo". Os resultados, em geral modestos, acabam por ser rapidamente erodidos.

A ênfase na reversão da apreciação cambial e na redução da taxa real de juros seria bem mais apresentável se fizesse parte de um programa de reformulação radical do nível e da composição dos gastos públicos combinada com reforma tributária. Desonerações fiscais discricionárias diminuem a transparência da sinalização para a alocação de investimentos. Alguns dos efeitos adversos da questionável legislação sobre IPI e conteúdo nacional só puderam ser contornados porque o setor automotivo é concentrado. O truque não é generalizável para outros setores. Medidas de defesa comercial jamais terão o impacto agregado que pretende o governo. Forçar a adoção de medidas de antidumping e salvaguardas - onerosas administrativamente - despertará a reação de nossos parceiros comerciais.

O governo tem fugido de qualquer compromisso crível com o que é realmente relevante para aumentar a competitividade dos produtos industriais brasileiros ou minorar as consequências de mudanças estruturais inevitáveis: revolução na infraestrutura, criação de incentivos centrados em compensação de falhas de mercado e diminuição da carência de mão de obra qualificada.

Importante empresário do setor siderúrgico defendeu, recentemente, a maré protecionista, devidamente enrolado na Bandeira Nacional, invocando a defesa dos interesses presumivelmente coletivos. É preciso separar interesses coletivos de interesses empresariais, frequentemente não coincidentes. E é preciso alguma coerência: alguns dos mais ardorosos defensores do protecionismo em nome de interesses coletivos têm antecedentes ruins quando se trata da formação de cartéis à custa dos interesses dos consumidores. Não há nada condenável quando empresários defendem os interesses de seus acionistas. O que deve ser contestada é a defesa de interesses particulares travestidos em interesses coletivos.

É fato sabido que o conceito de vantagens comparativas transita cada vez com mais dificuldade em Brasília, mas a atual política comercial brasileira beira o ridículo. Estamos regredindo com grande empenho. É preciso olhar para o futuro e não repetir o que houve de pior no passado.

*Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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