segunda-feira, 5 de março de 2012

Os dois Machados:: Alfredo Bosi

A divisão em fases não é invenção da crítica

Resumo O crítico literário Alfredo Bosi comenta a obra romanesca de Machado de Assis neste excerto do capítulo "Cultura" de "A Construção Nacional: 1830-1889", segundo volume de "História do Brasil-Nação: 1808-2010", que chega amanhã às livrarias (org. José Murilo de Carvalho, Objetiva, 320 págs., R$ 43,90).

A divisão da obra de Machado de Assis em dois tempos -antes e a partir das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", com o divisor de águas nos anos 1879/1880- não é invenção dos críticos. Basta ler as notas que o autor redigiu para as novas edições de "A Mão e a Luva" e "Helena", reconhecendo que mudara com o tempo a sua maneira de pensar e escrever.

Sobre o primeiro romance, observou em 1907: "Os trinta e tantos anos decorridos do aparecimento desta novela à reimpressão que ora se faz parece que explicam as diferenças de composição e da maneira do autor". Em nota a "Helena": "Ele [o livro] é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876." E remata: "Cada obra pertence ao seu tempo."

A ideia de tempo aparece nas duas observações explicando mudanças de espírito e estilo. Pode-se pensar em tempo histórico-social, em tempo subjetivo, ou em ambos. Machado, já sexagenário, respondendo a Mário de Alencar que lhe perguntara como fora possível ao autor de Helena ter escrito, após breve intervalo, as "Memórias Póstumas", alegou a "perda de todas as ilusões sobre os homens", consumada ao entrar na quadra dos 40 anos.

Os biógrafos tentam detectar causas físicas e psicológicas nessa mudança radical: ao certo sabe-se de enfermidades graves, que levaram o escritor tão apegado ao seu Rio a buscar repouso e melhor clima em Friburgo, de dezembro de 1878 a março do ano seguinte.

O que temos em mãos é o conjunto dos quatro romances ditos da primeira fase e publicados ao longo da década de 1870: "Ressurreição", "A Mão e a Luva", "Helena "e "Iaiá Garcia". Com exceção do primeiro, todos são histórias de moças criadas em contextos sociais de assimetria. Nascidas em lares de condição pobre (Guiomar), apenas modesta (Iaiá, Estela), ou escusa (Helena), elas enfrentam de modos diversos o constrangimento de serem abrigadas por famílias ricas, que oscilam entre a benevolência de uma generosa madrinha e a eventual dureza do dispensador de favores.

A argúcia de uma intérprete dessas figuras femininas, Lúcia Miguel Pereira, entreviu na conduta ambígua, ora deferente, ora esquiva, com madrinhas e protetores, uma projeção dos sentimentos do jovem Machado que teria sido ingrato para com a própria família voltando-lhe as costas ao longo da sua ascensão social.

Concordemos ou não com essa interpretação, que é biográfica, mas não deixa de remeter à estrutura familiar do Brasil Império, o que salta à vista não é só a presença do favor nas relações domésticas, mas, sobretudo, a diversidade das reações individuais em face da assimetria social.

Há quem desfrute avidamente do favor, como Guiomar, protagonista de "A Mão e a Luva", personagem ambiciosa, que deseja ascender na escala social, fazendo-o quer pela relação ambivalente, senão hipócrita, com a protetora, quer pela escolha calculista do pretendente a seu marido. Mas há quem recuse, até o limite da morte, ser considerada interesseira, situação de Helena no romance homônimo: a moça renuncia a lutar pelo amor de Estácio no momento mesmo em que este se afiguraria possível.

A mesma altiva pureza marca o comportamento de Estela, em Iaiá Garcia, personagem briosa e incapaz de manobras, em contraste com Iaiá, que lutará com todas as armas da sua graça e astúcia para conquistar um marido, penhor de segurança de matrimônio e patrimônio.

Assimetria Enredos que combinam situações de assimetria e respostas psicológicas diferenciadas tornam ainda hoje legíveis esses romances de juventude. Mas o tom conformista e o estilo incolor os incluem na classe de obras menores, convencionais. Daí, a surpresa que nos dá a leitura das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", escritas pouco depois de "Iaiá Garcia".

Com a criação de Brás Cubas, Machado passou a lidar com o foco narrativo de primeira pessoa. No romance, essa técnica é bifocal. De um lado, fala o narrador que atesta, a cada lance, a sua presença aos acontecimentos em que esteve envolvido, e cuja veracidade é confiada ao seu olhar sem a presunção de certeza que se supõe no discurso de terceira pessoa. De outro lado, Machado engendrou a ficção do defunto autor, expediente aparentemente irrealista escolhido para facultar a exibição dos sentimentos todos de um ego centrado em si, que a condição post-mortem permitiria desnudar.

Reiteração do eu vivo feito no regime do eu defunto. Memória, sim, mas pontuada de autocrítica e, o mais das vezes, de autodefesa.

Para deslindar a novidade das "Memórias Póstumas" a crítica tem ensaiado pelo menos três leituras, todas convincentes, mas nenhuma em si mesma bastante para avaliar a densidade da obra. Vêm concorrendo para a interpretação desse romance surpreendente a abordagem existencial, que procura entender o "homem subterrâneo" (Augusto Meyer) entrevisto nos pensamentos e atos de Brás Cubas; a determinação do seu substrato social e ideológico (leitores marxistas e weberianos); enfim, o seu pertencimento à tradição da sátira menipeia (leitores formalistas e intertextuais).

A visão de um Machado "moraliste", na esteira de um La Rochefoucauld, de um La Bruyère e, no limite, do Pascal escafandrista do "moi haïssable" pode ser contemplada enquanto desdobramento da leitura existencial. Modos de ler complementares e não excludentes, merecem ser aprofundados na medida em que iluminam aspectos relevantes do texto machadiano.

Em "Quincas Borba", o narrador puxa um fio que começara a desenrolar nas "Memórias Póstumas". O protagonista, Rubião, professor de meninos de Barbacena, recebe a inesperada herança de um filósofo bizarro (meio evolucionista, meio positivista), Quincas Borba, que já aparecia naquele romance pregando o humanitismo ao antigo colega de escola, Brás Cubas.

O enredo cifra-se na ascensão e queda de Rubião, envolvido na trama de um especulador e arrivista, Cristiano Palha, que o explora até reduzi-lo à indigência, valendo-se inicialmente das manhas sedutoras da esposa, Sofia.

O provinciano deslumbrado enlouquece pouco a pouco, supõe-se Napoleão 3º, desfruta brevemente de sua riqueza, mas, abandonado pelo casal Palha, acabará voltando à sua Barbacena onde morrerá seguido pelo cão, que também herdara de Quincas Borba. A cena derradeira, verdadeiramente trágica, é a mais pungente que saiu da pena de Machado.

Casmurro O romancista entrava na casa dos 60 anos quando escreveu "Dom Casmurro", a mais lida e amada de suas obras. Trata-se da vida de um homem, Bento Santiago, que amou desde a adolescência aquela que viria a ser sua mulher, Capitu. Viveu algum tempo de felicidade conjugal, mas, a partir de certo momento, se acreditou enganado por ela e seu melhor amigo, Escobar.

Uma história de ciúmes fundados ou infundados? A questão parece insolúvel. O romancista teve mão leve o bastante para não decifrar o enigma. Capitu, acusada pelo marido, negará até o fim. Bento não voltará atrás, inteiramente convicto da traição. O desenlace é digno e discreto. Capitu vai para a Suíça, com o filho, cuja semelhança com Escobar é o principal móvel da suspeita de Bento. Este, convertido em Dom Casmurro, contará a sua história.

O narrador, que é também personagem, dá à sua certeza da traição toda a verossimilhança possível. Capitu é representada como uma criatura sensual, inteligente, ardilosa, fértil em expedientes, hábil em simular e dissimular conforme as circunstâncias, numa palavra, capaz de enganar. Bento, ao contrário, vê a si mesmo como um rapaz inseguro, emotivo e ciumento, que acabaria vítima indefesa de sua paixão juvenil.

Essa é a leitura rente ao texto, ao tom e à perspectiva do narrador. Essa também foi (ressalvando sempre a ambivalência do registro narrativo) a leitura dos contemporâneos do autor e de críticos da envergadura de José Veríssimo, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Astrojildo Pereira, Barreto Filho e Antonio Candido.

Desde a publicação da tese de Helen Caldwell, "The Brazilian Othello of Machado de Assis" (1960), formou-se uma corrente que prefere negar a veracidade do relato de Bento-Dom Casmurro e inocentar, pura e simplesmente, a outrora suspeita de adultério, convertendo-a em ícone do feminismo e da modernidade. É hipótese que, se outro mérito não tem, ao menos vem suscitando releituras do romance e atestando, mais uma vez, a sua perturbadora atualidade.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO/ILUSTRÍSSIMA

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