quarta-feira, 14 de março de 2012

Para retomar o controle da própria vida:: Alfredo Reichlin

O que resta da verdade (isto é, da capacidade de ler a crise e o quadro social) depois do declínio da era dos populismos midiáticos? É a pergunta que se puseram recentemente Umberto Eco e outros em Turim. É uma pergunta interessante porque induz a pensar sobre a complexidade da crise com categorias não só econômicas. A resposta a esta pergunta não pode ser dada só olhando as ruínas deixadas na Itália pelo longo “Truman Show” de Berlusconi, mas encarando as razões pelas quais o destino da Europa é tão incerto. Finalmente, começa-se a reconhecer que uma destas razões reside no fato de que vem se esfarelando o compromisso político e social que esteve por quase um século na base da democracia europeia. Quando falamos de reformismo, seria preciso, antes de mais nada, compreender melhor a grandeza e a dramaticidade desta transformação.

O que está em jogo, que tipo de ordenamento da vida social está em discussão, quais compromissos históricos radicais estão se desmanchando? As palavras não correspondem às coisas. Por trás da abstrusa linguagem dos economistas que nos falam de spreads, existem fatos grandiosos. Entre outros, a crise da hegemonia americana, com a consequência da ruptura daquilo que foi até agora a “ordem” econômica mundial. A guerra das moedas é uma das consequências: uma espécie de guerra mundial até agora incruenta. Quanto tempo vai durar a senhoriagem do dólar? E, se o euro sobreviver, qual será o lugar da Europa no mundo de amanhã? Em todo caso, estamos assistindo — como muitos já repetem — ao fim da chamada “ocidentalização do mundo”. A saber, ao fim daquele tempo e daquele lugar histórico que viram nascer o Estado, os direitos do homem, a ideia de progresso, Karl Marx e Adam Smith, o Iluminismo e as guerras de religião. Este é o cenário no qual deve se colocar o reformismo.

Nem tudo é decadência. Certamente, o entrelaçamento de economia, política e ciência se tornou muito mais estreito. Para dar só um exemplo, ainda não avaliamos suficientemente o modo pelo qual o “clique” no computador revolucionou a economia. Sem a rede informática e telemática, seriam realmente impensáveis a capacidade e o extraordinário poder do capital financeiro de se tornar independente dos territórios e das velhas regras da economia real. Os automóveis devem ser construídos e em seguida movimentados. Ao contrário, os capitais se movimentam em tempo real. Foi assim também que se criou um desequilíbrio sem precedentes entre o cosmopolitismo da economia financeira (capaz de movimentar a riqueza do mundo) e a subalternidade da política, cujos poderes permaneceram locais.

Não é só por isso, mas é também por isso que o cidadão perdeu sua soberania (os direitos iguais, a proteção do próprio Estado) e que se afirmou uma nova “teologia”. A ideia segundo a qual a sociedade, isto é, aquela rede de laços históricos, culturais e mesmo ancestrais que chamamos sociedade não existe. Só existem os indivíduos, imersos num eterno presente. E estes indivíduos, sozinhos, sem identidade e sem passado, definem-se de um único modo: na relação que têm com o dinheiro. Os famosos mercados, que não casualmente são indicados com a reverência e a submissão que se reservam às divindades, as quais — como sabemos — são “ocultas” e até caprichosas, como eram os antigos deuses que habitavam o Olimpo. Um Olimpo que, desta vez, reside parcialmente em Wall Street e parcialmente nas mãos poderosas de quem controla as redes de comunicação, das linguagens, do imaginário. Referimo-nos aqui àquela grande ideologia segundo a qual acabaram as ideologias e, portanto, os mercados governam, os técnicos administram, os políticos vão à televisão para se tornarem alvo de zombaria.

Não basta a análise econômica. A nova ordem econômica com dominância financeira caminhou em estreitíssima relação de causa-efeito com uma estrutura cultural de extraordinária força e penetração. Um modo de pensar a realidade que torna incerto o limite entre o verdadeiro e o verossímil. Criou-se assim espaço para as “expectativas”. Estas últimas, precisamente, é que são o combustível da nova economia financeira. Por isso, são decisivos o mundo da comunicação, seus valores, sua capacidade de criar necessidades e expectativas.

Eis por que podemos dizer que estamos numa verdadeira transição histórica. De um modo ou de outro, é o fundamento das coisas que volta à discussão. É aquela extrema concentração da riqueza imaterial que consiste no controle das consciências. O poder dos poderes. É a visão da realidade como o meio mais poderoso para controlar a ação humana. Em suma, o chamado “pensamento único”, ou seja, “it’s the economy, stupid”. Mas, afinal, não se trata de nenhuma novidade; de diferentes modos e em diferentes épocas sempre houve um “pensamento único”. Pensemos na Idade Média, quando durante séculos os artistas — muito variados entre si — pintavam um só tema: as histórias de Cristo. As ideias dominantes — dizia Marx — são as ideias da classe dominante.

Mas a novidade é que nos lugares mais diversos, na Itália e em Nova York, em Madri e em Roma, começa a mexer-se algo mais profundo. Um protesto, sobretudo entre os jovens. O protesto contra Wall Street. É uma coisa considerável, muito positiva. Mas atenção: devemos desconfiar dos extremismos, que se esgotam numa labareda. Uma luta séria, que redunde num desfecho novo, requer uma análise diferenciada, uma ideia menos grosseira das economias de mercado e, portanto, das alianças possíveis. A financeirização da economia, com toda a sua carga de riqueza fictícia, é só uma nova forma do capitalismo ou é algo verdadeiramente novo? Desconfiemos das simplificações, se quisermos que o protesto se baseie numa visão mais clara da realidade e, portanto, em novos alinhamentos democráticos. Não se pode pensar numa transformação do mundo sem compreender melhor a “coisa” que queremos transformar. Lembremos que o capitalismo histórico foi a maior revolução humana depois da agricultura. Conjugando mercado e técnica, o capitalismo desencadeou uma desmedida potência produtiva num tempo histórico irrisório, três séculos. Mas o capitalismo não foi só mercado: também foi capacidade criativa e difusão de bens e de valores. Eis agora a questão. Por que chegamos a este ponto, isto é, ao fato de que os mercados (os quais, de resto, não são mercados, mas uma caricatura deles, sendo os chamados mercados financeiros não regulados, não transparentes e não garantidos pelas leis) tiveram licença para agredir e arruinar o trabalho, o bem-estar, as empresas, o Estado social de um país como a Itália, que, afinal, é a sétima economia do mundo? De onde vem a força dos poderes que nos levaram a este ponto? A resposta só pode vir de uma análise mais longa, que aqui só podemos mencionar.

Pensemos na importância crucial da guinada política ocorrida entre os anos 1960 e 1970, isto é, na decisão sem precedentes históricos tomada pela direita anglo-americana (Thatcher e Reagan) de retirar todo e qualquer limite à circulação dos capitais e dar aos grandes bancos privados o direito de ir muito além da tarefa de conceder crédito aos empresários, para assumir a de criar moeda fictícia, emitindo títulos ao infinito. De fato, o poder de emitir moeda. Foram decisões cruciais que mudaram a história e sobre as quais, a seu tempo, certamente se falou, mas como fatos técnicos que só interessavam aos especialistas. Ao contrário, assim se criou um mar de dinheiro que não aumentava a riqueza real, mas atraía a poupança do mundo com a ideia de que se podia fazer dinheiro manipulando dinheiro, e foi deste modo que a América, dada a sua força política, pôde viver acima dos seus recursos. Um mar de dinheiro de tal ordem que as atividades financeiras já superaram em quase quatro vezes o produto real do mundo. Mas agora quem paga a conta? A quem cabe pagar as dívidas que pesam acima de tudo sobre as novas gerações? É tempo de uma nova subjetividade política e cultural — o reformismo — voltar a campo para nos restituir o sentido daquilo que aconteceu, por que aconteceu e quais forças é preciso controlar. O inimigo não são os bancos como instrumento essencial para fornecer crédito à economia, mas o modo pelo qual uma oligarquia financeira criou uma renda imensa que pesa sobre o mundo.

Coloquemo-nos novamente a pergunta: sobre o que estamos falando? Estamos falando de algo que põe em questão muito mais do que a eficácia desta forma de capitalismo: põe em discussão sua própria legitimação ética. E isso por uma razão que está emergindo em toda a sua complexidade, ou seja, o mundo não pode ser governado deste modo. O problema da Grécia, isto é, o do destino de um povo e de uma civilização milenar, não pode se tornar um fato negligenciável diante do risco de que vão à falência alguns grandes bancos alemães que se expuseram demais. Nisto está a diferença com o capitalismo histórico. Este, afinal, foi uma civilização, a civilização da Europa moderna. Foi o instrumento extraordinário que num breve lapso de tempo (a partir do início do século XVIII, não antes) permitiu à humanidade dar um salto impressionante. Mudou aquilo que por milênios só havia mudado bem pouco. No século XVIII, os galeões espanhóis ainda navegavam à vela, como as felucas dos fenícios, e os lordes ingleses se tratavam mais ou menos como no tempo dos antigos romanos. Nasceu uma “máquina” que multiplicava a riqueza real como nunca acontecera antes e que permitiu à Europa povoar o mundo em dois séculos. É importante recordá-lo, pois o que está acontecendo é o fim deste mundo, é a mudança de um modo de produção que também foi, ainda que nas formas mais cruéis, um processo de emancipação do homem em relação a velhos vínculos. É verdade, como Marx nos explicou, que coisas como a igualdade jurídica e os direitos de cidadania eram direitos formais. Mas, por mais “formais” que fossem, mesmo assim representavam uma enorme diferença em relação à servidão da gleba. Nasceram o cidadão e o Estado democrático. Ford explorava seus operários, mas se preocupava com que ganhassem bastante para poder comprar seus carros.

Só agora começamos a avaliar o que aconteceu entre os anos 60 e 70 do século XX. Uma mudança imensa estimulada por uma revolução científica e técnica — o digital — só comparável à revolução do maquinismo de um século antes. Ao mesmo tempo, uma nova oligarquia nascida das elites políticas e financeiras anglo-saxãs abolia toda e qualquer limitação e controle sobre o movimento de grandes volumes de capital e transformava a finança de infraestrutura de serviços da economia numa indústria para fabricar dinheiro. Os efeitos foram perturbadores. O grosso das atividades manufatureiras deslocou-se para os países de mão de obra barata, enquanto o trabalho e toda a ordem europeia da economia social de mercado entraram em crise: uma civilização e uma cultura foram postas em discussão.

Ocorreu assim uma ruptura na vida histórica do capitalismo. É o que Paolo Prodi (o economista irmão de Romano) chama de “fim do dualismo”. Um dualismo (cito suas palavras) como não coincidência do poder político com o econômico e como criação de normas éticas e normas de direito positivo, as quais representaram o fator que progressivamente levou ao desenvolvimento do homem moderno e, portanto, à criação do Estado social e à velha supremacia da Europa.

Eis por que se fala de cesura histórica. Porque o que conhecemos até agora como civilização capitalista foi este dualismo. Um dualismo que é também um fato histórico, possibilitado pela existência de grandes “contenedores” (Estados, culturas, sistemas) que garantiam uma determinada relação entre política e economia. Os “espíritos animais” da ganância se legitimavam na medida em que eram forçados a se haver com direitos, conquistas de liberdade, difusão do bem-estar e até com impulsos para uma certa igualdade social. Eis por que, para compreender e saber o que enfrentamos, temos necessidade de um pensamento político menos economicista e mais histórico. O que nos dá a medida do problema é que a ordem mundial do capitalismo financeiro foi construída nos anos 70 não só por razões econômicas, mas em consequência de uma verdadeira “conjunção dos astros”. É nos anos 60 que o modelo de desenvolvimento de tipo keynesiano — isto é, aquela espécie de pacto implícito entre o Estado e o capitalismo industrial, o chamado compromisso entre a democracia e o capitalismo — começa a entrar em crise. E isso por uma série de fatores, entre os quais fundamental foi a internacionalização dos mercados e, portanto, a geração de uma bifurcação crescente entre o poder de uma economia que se mundializava (basta pensar na força das multinacionais) e a velha soberania do Estado tradicional referida a mercados que eram ainda amplamente domésticos. Mas tudo isso se entrelaçou com fenômenos históricos absolutamente grandiosos. Uma revolução técnico-científica que superava as velhas fronteiras do espaço, do tempo e da natureza (o digital, a informação, as biociências). E isso no quadro, também de alcance histórico, produzido pelo colapso do socialismo real e pela afirmação de uma “superpotência” sem mais rivais, só comparável à Roma de Augusto. De fato, a elite política anglo-americana delegou à grande finança este poder imenso que consiste em decidir como alocar os recursos do mundo. E o fez pensando que, por possuir a moeda de reserva (o dólar), poderia condicioná-lo.

De quais economias de mercado estamos falando? Inverteram-se as relações de força entre o governo e as multinacionais, entre o capital e o trabalho, entre a política e a economia. Tornou-se abissal a distância entre quem produz a riqueza real e quem especula com os movimentos financeiros. Sem pretender acrescentar nada às muitas análises já realizadas, é correto perguntar, no entanto, se já avaliamos suficientemente os efeitos do enorme desequilíbrio que está em curso na distribuição da riqueza e, portanto, no mundo dos valores e dos significados da existência. Não é um problema pequeno. A busca sem limites de lucros na conta capital fez com que valores como lealdade, integridade, confiança, significados da vida fossem progressivamente postos de lado para dar espaço ao resultado em curto prazo. Conseguiu-se fazer com que milhões de pessoas acreditassem que, usando o cartão de crédito (foi a promessa de Bush), poderiam se enriquecer e, portanto, aceitassem a diminuição dos salários.

É difícil tirar conclusões, dizer aonde estamos indo. Tudo nos diz que está se verificando a “grande transformação” de que falava Karl Polanyi, isto é, a crescente contradição entre, por um lado, a lógica do capital financeiro, que tende a invadir não mais só o mundo das mercadorias, mas também os significados e os valores da vida: as necessidades, as culturas, os modos de pensar e de viver, até mesmo a lógica da empresas produtivas (vale o seu produto ou o valor de bolsa?); e, por outro, o fato de que inexoravelmente o desenvolvimento humano avança e tenderá cada vez mais a fazer valer sua própria autonomia e, portanto, por seu turno, a condicionar a economia a ponto de subverter seus mecanismos. Por isso, os grandes economistas e os dirigentes políticos se contradizem e não sabem mais o que fazer.

Tal como é, o mundo não vai bem; é verdade que 1 bilhão de pessoas saiu da miséria, mas em amplas zonas do mundo se assiste à dissolução de todo e qualquer poder estatal, de modo que grandes massas humanas não só são pobres, mas não mais conhecem leis, direitos, instrumentos e serviços públicos elementares. Não sabem bem quem são. Basta observar as faces desesperadas dos miseráveis que desembarcam no nosso litoral e os olhares das suas crianças para nos darmos conta do ódio que estamos semeando e dos espaços enormes que se abrem para a violência, o tráfico de drogas e armas, a corrupção e a destruição dos bens ambientais, as guerras civis endêmicas.

Que humanidade está se formando? Esta é a pergunta principal que seria preciso propor. É verdade que também está emergindo uma sociedade civil global estimulada pela rapidez com que os novos instrumentos de informação e comunicação se difundem sobretudo entre as novas gerações. Trata-se de movimentos ainda fragmentados, os quais, no entanto, tendem a reforçar um sentido de solidariedade humana. O problema fundamental é estimular de todos os modos um movimento capaz de provocar um aumento da capacidade e da vontade das pessoas de retomar o controle da própria vida. Tomar o controle da própria vida: é uma tarefa fundamental, aquela que se choca mais profundamente com a lógica do capitalismo financeiro. Algo análogo ao que representou a formação de uma consciência de classe no tempo do capitalismo industrial. A televisão e, em seguida, o computador e a internet são os condicionadores mais formidáveis do pensamento, não só no sentido de que nos dizem o que pensar, mas em sentido mais profundo, porque modificam nosso modo de pensar. Penaliza-se o pensamento analítico e sequencial, aquele que há séculos forma a cultura e que a escola até agora ensinou. Está se formando um pensamento novo, mais holístico. A interrogação é se esta transformação é ou não necessariamente uma desdita.

O pensamento analítico fez a história do Ocidente. Mas até agora os homens não tiveram e não podiam ter o sentido global do mundo real. Hoje talvez sim. Poderia ser esta a função da rede, uma rede que envolve a todos? Assim como ela pode nos levar às grandes mentiras, pode nos permitir estabelecer um novo nexo entre verdade e democracia. O que infunde confiança é o fato de que a democracia tem necessidade da verdade. Porque, se decido sozinho, não sei o que fazer com a verdade, mas, se é preciso deliberar em conjunto, então tenho necessidade absoluta dela. Certamente, na Web tudo parece verdadeiro, até mesmo o falso, mas aumentaram os recursos de compreensão, avaliação e, sobretudo, a pluralidade das fontes à nossa disposição. Não são só os corifeus da ciência, da religião e do poder político que nos dizem como estão as coisas. Hoje é possível um novo pensamento coletivo inspirado por uma crescente exigência de sentido, de verdade e de conhecimento. O movimento das mulheres é o fenômeno mais significativo. Talvez pela primeira vez possa se formar uma maioria que construa de modo novo os instrumentos para pensar a realidade e o destino do homem.

Devemos nos reapropriar das nossas vidas. Devemos impedir que os indivíduos sejam isolados, deixem de ser pessoas para se transformarem em “máscaras” sob as quais não existem homens e mulheres diferentes e, portanto, reais, donos de si, mas só indivíduos cuja personalidade se mede com uma única medida: o dinheiro. É o caso de perguntar se a extremada exaltação do individualismo não está se transformando numa espécie de “exaltação e morte da pessoa”. Deveríamos definir assim o capitalismo financeiro? Mas, então, voltam às nossas mãos não só a bandeira da justiça, mas também a da liberdade humana.

Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Esteve à frente da comissão responsável pela redação do “Manifesto dos valores” do PD (Partido Democrático), em 2008. Dirige a Fondazione Cespe – Centro Studi di Politica Economica, em Roma. Este texto foi publicado em Italianieuropei, Roma, n. 1, 2012.

FONTE: GRAMSCI E O BRASIL

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