domingo, 25 de março de 2012

Quartier Latin:: Ivan Alves Filho

Toda metrópole digna desse nome no chamado mundo ocidental possui um bairro boêmio. Pequenas cidades dentro das grandes cidades, esses bairros nos remetem a uma época em que o tipo humano contrário ao burguês era o boêmio – e não o proletário.

De fato, os artistas, os intelectuais, os escritores, estes sim, pareciam representar o contraponto ao modo de vida dominante nas grandes concentrações urbanas nascentes. Certo ou errado, boa
parte das pessoas comuns achava isso.

Daí a fama do Grenwich Village, em Nova Iorque; de Ipanema ou Copacabana, no Rio de Janeiro; ou do Quartier Latin, o aprazível bairro latino de Paris. Nesses bairros acontecia de tudo - ou quase tudo – ao menos em matéria de revolução nos costumes e renovação das relações humanas.

É bem verdade que a especulação imobiliária andou provocando alguns estragos nesse quadro. Muitos intelectuais e artistas migraram de seus tradicionais redutos boêmios, numa tendência aparentemente irreversível, infelizmente. Contudo, alguma coisa restou: o Quartier Latin, por exemplo, mantém muito de sua velha magia. Mais do que um bairro, é um verdadeiro mito.

E não é para menos: o Quartier Latin é o que poderia chamar de o coração de Paris.

Senão vejamos. Abriga a mais prestigiosa Universidade do mundo, a Sorbonne, cuja origem remonta
ao Colégio de Sorbon, criado ainda em meados do século XIII. E também o mais famoso dos cafés, o Café de Flore, verdadeira trincheira onde se reuniam Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Jean Cocteau e Juliette Grecco, a musa do existencialismo. Um dos mais antigos restaurantes da França (e talvez do mundo), Le Procope, fincou raízes por ali. Localizado há mais de 300 anos junto ao Odeón, costumava abrir as suas portas para ninguém menos que Voltaire, o autor de Cândido. Talvez por isso o Quartier Latin disponha também de tantas livrarias, como a mítica Shakespeare & Compagnie. É por essas e por outras que o escritor Álvaro Moreyra, que desembarcou em Paris em 1913, preferia o Quartier Latin a qualquer outro bairro da cidade - "por economia e por literatura", justificou. E ainda não acabou: o bairro tem um parque magnífico - o Jardim de Luxemburgo, onde se situa o sizudo Senado francês - e igrejas como aquela de
Saint-Sévérin, de comovente beleza e candura.

O pai da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud, morou no Quartier Latin, o que sem dúvida contribuiu para deixar o bairro de cuca ainda mais fresca e sem complexo algum. Tampouco os revolucionários puros e duros, os rouges de boa cepa, têm do que se queixar: o Quartier Latin foi o palco por excelência da rebelião estudantil de maio de 68. Dali o rebelde Daniel Cohn-Bendit prometeu aos jovens que, se arrancassem os paralelepípedos das calçadas, teriam a praia como recompensa – “sous les pavés, la plage”, gritavam os estudantes em rebelião. Era a política como via para se alcançar o prazer ou a felicidade individual como o real objetivo da luta. Há quem considere que o socialismo do século XXI tem muito que ver com essa postura, uma vez que realça as qualidades do indivíduo (o que é bem diferente do individualismo).

E se o leitor tiver sorte, ainda poderá topar com a mais fascinante criatura do bairro, a atriz e eterna moradora Catherine Deneuve, passeando distraidamente por suas calçadas. Ah, la belle du jour...

Mas aí já seria pedir demais ao nosso bom Deus.

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