domingo, 8 de abril de 2012

No fim da razão:: Míriam Leitão

Na passagem dos 30 anos da invasão das Malvinas se viu a mesma insensatez presente em outros momentos na Argentina. O país pode ter bons argumentos, mas em vez de incendiar o fervor nacionalista deveria ter introduzido mais racionalidade ao tema. Há outros focos de risco: o Banco Central não é mais o guardião da moeda. As barreiras às importações estão criando desabastecimento.

Donde termina la razón, empieza la Argentina. Eles mesmos dizem isso quando irados com o próprio país. Em certos momentos, é inevitável dar razão ao velho ditado. A revista "Economist" publicou uma matéria dizendo que a placa que adornou por 20 anos a entrada do Banco Central argentino teve que ser retirada. Ela trazia escrito que o BC tinha "primária e fundamentalmente a missão de defender o valor da moeda". Mas o Congresso aprovou nova definição institucional e o órgão passou a ter um mandato mais confuso e, oficialmente, perdeu sua independência. Tem que "promover, na extensão das suas habilidades e dentro dos limites das políticas estabelecidas pelo governo nacional, estabilidade monetária, estabilidade financeira, empregos, crescimento econômico e justiça social".

Não são apenas palavras. O Banco Central terá que financiar o governo. Ele terá que transferir ao governo uma quantia igual a 20% das receitas mais 12% de suplemento de dinheiro, usar suas reservas para pagar dívidas do Tesouro e ser mais ativo na oferta de crédito para favorecer indústrias.

A função de um Banco Central é defender a moeda e a estabilidade monetária. Ponto. Banco Central não pode ter missões como emprego, crescimento e justiça social por mais desejáveis que sejam esses objetivos. Ao defender a estabilidade, o BC indiretamente está criando as condições para que as políticas públicas induzam ao crescimento, emprego e justiça social. Mas ele diretamente não pode ter isso como meta. Se o BC for banco de fomento, se emitir moeda para financiar o governo, se malbaratar reservas cambiais, se abandonar sua função principal, o resultado será inflação e crise. Isso a Argentina sabe de viver a tragédia hiperinflacionária dos anos 1980 e 1990. É irracional repetir um erro que custou ao país duas décadas.

A mudança oficial do papel do BC é só o último capítulo da intervenção, que começou quando a presidente Cristina Kirchner demitiu Martín Redrado por seguir a regra de só emitir moeda com lastro e não financiar o governo nem usar as reservas para pagamento de dívida.

O peso tem se desvalorizado diante do dólar, a inflação tem aumentado, apesar de o número oficial ser manipulado após a intervenção no Indec, o instituto oficial de estatísticas. No Brasil, há a excessiva valorização do real. Na Argentina, mesmo com a desvalorização, não houve aumento da capacidade de competir. Tanto que foram criadas barreiras às licenças de importação. Resultado: a indústria argentina está com falta de peças e componentes, e no mercado começa a faltar produtos.

Guillermo Moreno. Esse é o nome do homem que executou tanto a intervenção no Banco Central quanto no Indec, e que controla o número da inflação. Ele é o enviado especial de Cristina Kirchner a todas as missões discutíveis e que aprofundam a opção da Argentina pela insensatez. Moreno ocupa o cargo de secretário de Comércio Interior, mas na prática é uma espécie de primeiro-ministro. E é ele quem enquadra os outros que divergem da presidente. Outro dia, um dos ministros sugeriu numa reunião um caminho alternativo ao que a presidente tinha dito. Recebeu um telefonema de Moreno: "a la presidente no se le discute; se le acata."

O país agora briga com empresas petrolíferas que produzem cada vez menos pelo excesso de intervencionismo. A presidente culpa a YPF pela queda de 32% da produção de petróleo desde o pico em 1998 e de 10% do gás desde 2004. Os produtores culpam o governo. As empresas recebem US$ 42 por barril apesar de o preço internacional ser US$ 120.

O Brasil comete alguns desses erros, mas de forma bem atenuada. Controla o preço que a Petrobras cobra, das distribuidoras, pela gasolina, para com isso influenciar na inflação. Lá, eles manipulam grosseiramente a inflação há cinco anos. Aqui, o governo anuncia algumas medidas protecionistas; lá, eles fecham o país. Aqui, há quem avalie que o Banco Central não é mais tão independente quanto era nos dois últimos governos, mas ele tem cumprido sua missão fundamental de defender a estabilidade monetária. A inflação está em queda. Aqui, o governo faz a escolha de vencedores, uma controversa política dos anos 1970. Na Argentina, Moreno decide quem pode importar o quê.

A Argentina nos conforta. O Brasil comete erros na política econômica, mas não contrata a tragédia como na Argentina. O Brasil adia decisões que seriam mais sensatas, a Argentina refaz o caminho que levou a aflições econômicas.

O erro nas Malvinas foi usar os 30 anos para soprar as brasas de um fogo que já deveria estar morto. Se quer as ilhas, a Argentina poderia começar um trabalho de longo prazo de aproximação com os ilhéus e negociação com Londres. Deve procurar uma saída alternativa. O que tem faltado aos nossos vizinhos é uma boa dose de racionalidade.

FONTE: O GLOBO

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