quarta-feira, 23 de maio de 2012

As ameaças que vêm da Ásia:: Ricardo Antunes

O modelo chinês: salários degradantes, jornadas de 12 horas, morte por exaustão. Tal padrão de exploração está se tornando tendência global

Desde meados dos anos 1970, o Oriente vem dando "lições" de capitalismo para o Ocidente. Do toyotismo, por exemplo, muito já se falou, com seu ideário conhecido: "kanban", "just in time", "kaizen", células de produção etc.

Mas é muito curioso: os seus manuais apologéticos nunca abriram espaço para "karoshi", que significa a morte por excesso de trabalho, ou para "karojisatsu", suicídio que é decorrência da intensidade e do caráter extenuante do trabalho - em 2010, foram mais de 30 mil casos na chamada terra do sol nascente.

Lá também encontramos jovens decasséguis que migram em busca de trabalho nas cidades e dormem em cápsulas de vidro -algo que denominei "operários encapsulados".

Mais recentemente, em Tóquio, trabalhadores terceirizados contratados diariamente ("hiyatoi-arbeit") procuram refúgio noturno em cibercafés. Assim, ficam conectados durante a madrugada, aptos para serem convocados para um novo trabalho eventual na manhã seguinte. Nesses lugares, conseguem também descansar um pouco, pois muitos são migrantes que não dispõem nem sequer de casas ou dormitórios.

Mas há ainda outro exemplo emblemático que vem do Oriente.

É na China atual que as engrenagens do capitalismo das transnacionais, em afinada simbiose com o Estado, levaram a superexploração da classe trabalhadora ao limite.

O caso da Foxconn é elucidativo. Fabrica do setor de informática e das tecnologias de comunicação, é exemplo de ECM (electronic contract manufacturing), empresa terceirizada responsável pela montagem de produtos para a Apple, Nokia, HP e várias outras transnacionais.

Em sua unidade de Longhua (província de Shenzhen), onde são fabricados os iPhone, desde 2010 ocorrem suicídios de jovens trabalhadores, em sua maioria evidenciando sua intensa exploração, os salários degradantes e o isolamento ao qual estão submetidos. Habitam quartos minúsculos e superlotados -que, aliás, têm telas nas janelas, para evitar mais suicídios.

Produzem aparelhos aos milhões e, em geral, nem imaginam como funciona a mercadoria produzida, levando o fetichismo maquínico à forma mais fantasmagórica.

Esse é o padrão chinês de exploração do trabalho. Ele vem se configurando como uma tendência agressiva em escala global, como as condições de trabalho na Índia mostram.

Segundo a organização Sacom (de "Students and Scholars Against Corporate Misbehaviour", algo como "Estudantes e Acadêmicos contra o Comportamento Impróprio das Corporações"), os operários da Foxconn, centenas de milhares, trabalhavam em média 12 horas por dia, recebendo com salário mensal básico de 900 yuans (menos de US$ 150 ou R$ 300), que poderiam dobrar em função das horas extras que realizavam.

Disposto a investir no Brasil, o taiwanês Terry Gou, presidente da Foxconn, lascou seu comentário, afirmando que brasileiros "não trabalham tanto, pois estão num paraíso". E não é crível que ele desconheça o enorme contingente de trabalho escravo que ainda existe aqui.

Não é difícil entender porque a China atual tem as mais altas taxas de greve no mundo. Enquanto a luta de classes burla a sepultura, o modelo taiwanês ameaça o "paraíso".

Ricardo Antunes, 59, é professor titular de sociologia na Unicamp. É autor de "O Continente do Labor" (Boitempo) e "Adeus ao Trabalho?" (Cortez)

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

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