terça-feira, 15 de maio de 2012

Comissão da Verdade não vai investigar militantes

As declarações dos integrantes da Comissão Nacional da Verdade, que será instalada amanhã, indicam que eles se dedicarão à investigação de violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado no regime militar. Os atos de terrorismo praticados por militantes de esquerda ficarão de fora. "O único lado é o das vítimas", disse o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, um dos integrantes da comissão

Membros da Comissão da Verdade querem apurar apenas ação de agentes do Estado

Grupo, cuja instalação ocorrerá amanhã, não mostra disposição de investigar atos de terrorismo praticados por militantes da esquerda

Roldão Arruda, Wilson Tosta

SÃO PAULO, RIO - A Comissão Nacional da Verdade, que será instalada oficialmente amanhã no Palácio do Planalto, vai se dedicar à investigação de violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado nos anos do regime militar. Embora seus integrantes ainda não tenham se reunido oficialmente, suas declarações indicam que a avaliação de atos de terrorismo praticados por militantes de esquerda que se opunham à ditadura não fará parte de seu trabalho. Em entrevista ao Estadão,o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, uma das sete personalidades escolhidas pela presidente Dilma Rousseff para compor a comissão, foi enfático: "O único lado é o das vítimas, o lado das pessoas que sofreram violações de direitos humanos. Onde houver registro de vítimas de violações praticadas por agentes do Estado a comissão irá atuar".

Na avaliação do diplomata, nenhuma das quase 40 comissões da verdade instaladas no mundo tiveram como objetivo ouvir dois lados, como desejam setores militares brasileiros: " Nenhuma comissão da verdade teve ou tem essa bobagem de dois lados, de representantes dos perpetradores dos crimes e das vítimas. Isso não existe".

Ontem, no Rio, ao ser homenageada por alunos e colegas da Escola de pós-graduação em Políticas Públicas e Governo, a professora e advogada Rosa Cardoso, também convidada para a comissão, praticamente descartou a possibilidade de investigar crimes cometidos pelas organizações armadas. "Vocês sabem que o Brasil não está inventando, não está i novando institucionalmente quando cria uma comissão da verdade. Hoje existem 40 comissões criadas no mundo", afirmou. "Essas comissões, quando são criadas oficialmente, pretendem rever condutas de agentes públicos. E é isso o que fundamentalmente nós vamos rever: condutas de agentespúblicos."

Rosa foi advogada de dezenas de presos políticos. O mais famoso foi Dilma Rousseff, que esteve presa nos anos 70 por fazer parte da organização guerrilheira Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Sobre as manifestações de militares da reserva que insistem que a comissão deve investigar a resistência armada, procurou ser diplomática: "Acho legítimo que expressem. Eles gostariam que esse passado tivesse já passado, fosse uma página virada. Não é. E eles preferiam que não houvesse a criação dessa justiça de transição". O advogado José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso e ex-diretor da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, também disse ao Estadão, por telefone, que o objetivo principal da comissão será a investigação de violações de direitos humanos cometidos por agentes de Estado. "Esse deve ser o objetivo, quando começarmos a trabalhar. "Todos os fatos que chegarem ao nosso conhecimento serão analisados."

Recado. Na sexta-feira, o ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), também já havia mandado um recado aos descontentes com a criação da comissão. Depois de enfatizar que ela não terá nenhum caráter revanchista, insistiu que os seus trabalhos serão levados adiante "doa a quem doer". A presidente Dilma Rousseff deve instalar oficialmente a comissão na quarta-feira, numa solenidade que contará com a presença dos ex-presidentes Fer-nando José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Na semana passada, ao se encontrar com as sete personalidades que convidou para integrar o grupo ela deixou claro que eles terão todo o apoio estatal que for preciso para levar adiante seus trabalhos.

No Rio, o presidente do Clube Naval, almirante da reserva Ricardo Cabral, disse ontem que a comissão interclubes (que forma com os clubes Militar e de Aeronáutica) vai acompanhar as reuniões da Comissão da Verdade, embora ainda não soubesse dizer de que forma. O primeiro encontro do grupo, na quinta-feira, vai definir como o grupo deve trabalhar. Ele defende que os dois lados envolvidos em disputas nos anos da ditadura sejam investigados. "Não pode haver revanche", afirmou, invocando a Lei da Anistia de 1979. "Não podem fazer como na Argentina. Se houver retaliação, vamos regredir. Estamos em um estágio de civilização muito avançado. Não é esquecer o passado. Já que querem retomar a história, que seja imparcial, observado o contexto da época."

Missão
Rosa Maria Cardoso, advogada

"Hoje existem 40 comissões (da Verdade) criadas no mundo. Essas comissões, quando são criadas oficialmente, pretendem rever condutas de agentes públicos. E é isso o que fundamentalmente nós vamos rever: condutas de agentes públicos"

Para dar caráter de Estado, Dilma leva os ex-presidentes

A preocupação de Dilma Rousseff ao convidar os quatro ex-presidentes da República para participar da cerimônia de instalação da Comissão da Verdade foi mostrar que não se trata de uma iniciativa dela ou de seu governo. Será lembrado na ocasião que as bases legais que permitiram criar a comissão datam do governo de Fernando Henrique Cardoso. Mas não só. Embora setores à esquerda do PT e de familiares de mortos e desaparecidos tenham torcido o nariz para o convite feito a Fernando Collor de Mello, também será lembrado o papel dele no processo de abertura de arquivos.

A contribuição de Collor já aparece em estudos daquele período. Um deles é a tese de doutorado que a cientista política Glenda Mezarobba defendeu na USP, com o título O Preço do Esquecimento: As Reparações Pagas às Vítimas do Regime Militar. Ela diz: "A devolução dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Rio de Janeiro e de São Paulo, pelo presidente Fernando Collor de Mello, representou novo alento aos familiares. Afinal, só no arquivo de São Paulo, controlado pela Polícia Federal desde 1983, estavam guardadas 34 toneladas de papel entre 1,5 milhão de fichas, 14 mil dossiês e 150 mil prontuários, de brasileiros e estrangeiros". Ainda segundo Glenda, o presidente que menos contribuiu para esse processo de abertura foi José Sarney. / R.A.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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