quinta-feira, 10 de maio de 2012

A hora de cassar estrelas da República:: Cristian Klein

Toda Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) tem como missão, além de investigar um "fato determinado", deixar lições para que os erros não se repitam e se criem condições para aperfeiçoar as instituições políticas ou administrativas.

Como quase toda CPI, a que mobiliza atualmente o Congresso esbarra na velha questão sobre as relações promíscuas entre a ordem pública, da política, e o mundo privado, das empresas fornecedoras de serviços às diversas esferas de governo.

A enorme rede de influência do empresário/bicheiro Carlos Augusto Ramos, vulgo Carlinhos Cachoeira, e da construtora Delta teria se espraiado pelo país, com destaque para a intimidade mantida com os governadores do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), e do Distrito Federal, Agnelo Queiroz (PT) - ou seja, caciques das três maiores siglas -, além de contar com o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO), praticamente um sócio do empreendimento.

Contratos da Delta cresceram na medida das doações

A CPI do Cachoeira não surpreende pela forma nem pelo conteúdo. Mas a quantidade de gravações que vão sendo divulgadas só encontram paralelo em outros dois escândalos recentes: o mensalão do DEM - que produziu uma videoteca de cenas explícitas do suposto esquema de corrupção que derrubou o ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda - e a reportagem do "Fantástico" (TV Globo) que mostrou didaticamente, em março, uma espécie de "A corrupção como ela é" rodrigueana no hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A diferença é que, neste último caso, para o refestelo da classe política, a armação não envolvia detentores de cargo eletivo. Todos os protagonistas eram operadores de quatro empresas que ofereciam propina para garantir a venda de seus produtos ao hospital universitário. É uma prova de que o submundo da corrupção independe do mundo da representação. O empresário com ambições de maximizar seus lucros a despeito da ética é tão vilão quanto o político desonesto.

Mas, geralmente, episódios assim são pontos fora da curva. Sem políticos como protagonistas, as histórias ficam sem graça. Represar Cachoeiras não é tão díficil e fascinante quanto cassar estrelas da República como deputados, senadores, governadores e pô-los atrás das grades.

Políticos devem seus mandatos ao voto dos eleitores e ao dinheiro de seus financiadores. Não há eleição grátis. Na última década, a escalada de contratos conquistados pela Delta com o setor público cresceu à proporção de seu investimento em campanhas políticas Brasil afora. As doações, que eram pouco mais de R$ 60 mil, em 2002, passaram a R$ 2,3 milhões, em 2010.

É fácil prever que entre as lições que serão tiradas da CPI estará a condenação do modelo atual e a sugestão do financiamento público de campanha. É a proposta defendida há anos pelo PT, sob o argumento de que o sistema em vigor favorece quem tem acesso privilegiado a grandes doadores e porque cria uma relação de dependência dos candidatos individuais em relação aos financiadores.

Tudo isso faz sentido. Mas nada garante que grandes esquemas de corrupção sejam barrados pela interrupção de apenas um entre tantos canais possíveis de negociações escusas. O lobby de Carlinhos Cachoeira e da Delta para aprovar contratos e projetos - como a liberação dos bingos - ocorreria de um jeito ou de outro. Há inúmeras maneiras de se fazer os chamados "pagamentos laterais". O registro das doações, ao menos, permite identificar relações possivelmente suspeitas.

O financiamento exclusivamente público está associado à mudança para a lista fechada, modelo pelo qual os cidadãos votam apenas em partidos. É o sistema no qual o PT acredita que levaria maior vantagem, por liderar, de longe, a preferência do eleitorado em relação às demais legendas. Na lista fechada, porém, os políticos têm o mais baixo incentivo de cultivar laços com os eleitores.

O mais provável é que imagens de homens públicos estreitando laços com grandes empreiteiros em festas de gosto duvidoso pela Europa se tornassem ainda mais comuns. Os interesses das construtoras sempre existirão - enquanto o poder do eleitor de interferir e punir candidatos seria podado.

A crítica à lista fechada, por outro lado, não significa que o problema do financiamento privado esteja solucionado. Em entrevista ao Valor por ocasião da aprovação do Código Florestal, o ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, apresentou um bom ponto ao ser questionado se a força dos ruralistas no Congresso significaria que eles são mais bem organizados politicamente do que os ambientalistas. Ele reconheceu.

"Eu diria que o modelo eleitoral brasileiro leva a isso. As campanhas são cada vez mais caras. O modelo viabiliza aquele que é capaz de mobilizar mais recursos. E essa capacidade tem a ver com o setor privado e, portanto, há um círculo vicioso. Aquele que defende o interesse privado tem mais chance efetivamente de obter recursos para a sua campanha e, logo, muito mais chance de estar representado", respondeu Capobianco.

O argumento é interessante e pode ser resumido pela seguinte lógica: o financiamento privado leva à primazia dos interesses privados - em detrimento dos interesses públicos.

Inúmeros filósofos e cientistas políticos já se dedicaram ao tema, cujo dilema maior deságua na questão crucial: existe um interesse público - ou uma "vontade geral", a la Rousseau - ou a sociedade é feita de uma pluralidade de interesses que precisam se contrapor e competir (Robert Dahl)?

É provável que a melhor saída esteja entre um e outro extremo. A própria bandeira verde não está imune à manipulação de setores privados.

Quanto à CPI, a única lição, que já deveria ter sido aprendida, depois de tantas passadas, é como punir, de fato, os culpados.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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