domingo, 27 de maio de 2012

O "B" e o "C":: Merval Pereira

Como não podia deixar de ser, o papel dos Brics no cenário mundial foi tema recorrente em várias palestras no encontro da Academia da Latinidade que terminou na sexta-feira aqui em Pequim. Entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, na visão do secretário-geral da academia, o cientista político Candido Mendes, os poderes emergentes se diferenciam, a começar pelo fato de que existem quatro nações em desenvolvimento e a Rússia "em franca regressão".

Dentre eles, há o protagonismo de Brasil e China, a situação brasileira reforçada pela política externa "de afirmação de independência" no Oriente Médio, de avanço nas ações africanas, mas, sobretudo, segundo ele, de "descontextualização da antiga moldura latino-americana".

Para Candido Mendes, o Brasil entra nessa globalização não hegemônica que se desenha com parceiros que seriam impensáveis há 20 anos e, nesse quadro, o protagonismo de Brasil e China pode ser constatado na expansão das atividades dos dois e na consequente competição, na África.

A China está em vários países africanos - Angola, Moçambique, Cabo Verde - e, na visão de Candido Mendes, não na velha posição demagógica de Fidel Castro, mas na perspectiva de criar uma política de desenvolvimento social e de mobilização. "Até diria que a China está avançando sobre o Brasil, mesmo na antiga África portuguesa."

Ele vê "uma parentela natural" entre as duas imensas nações voltadas para seus mercados internos. O lado discordante dessas políticas faz parte do jogo democrático, com cada país defendendo seu interesse imediato, mas há um enorme espaço, segundo Mendes, para uma parceria.

Dentre essas nações, na sua opinião, o Brasil é aquela que tem o melhor regime democrático, pois a Rússia está deixando de ser uma democracia, a Índia tem o regime dos párias, e a África do Sul tem problemas regionais dos mais graves.

Mas tem que ser levado em conta, ressalta Candido Mendes, que a China não é um país inerte do ponto de vista político e social. "Basta ver a presença universitária chinesa, a mobilização interna da China do ponto de vista cultural, 250 milhões de pessoas visitando os museus todos os anos."

Esses dois países tem posições de liderança, mas são distantes entre si, e as condições objetivas para uma provável convergência histórica ainda precisam ser montadas através do conhecimento recíproco.

Candido Mendes fala de intercâmbios universitários e culturais, a começar por um festival de cinema nos dois países. Ele acha que o aprofundamento do conhecimento das realidades será viabilizado pela nova postura da China, que sempre foi um país voltado para seu interior e agora está num processo de globalização acentuado.

O professor Enrique Larreta, diretor de Pluralismo Cultural do Instituto Candido Mendes e que tem se dedicado a estudar a China, onde passa temporadas pesquisando na Academia de Ciências Sociais de Xangai, ressalta que esse processo de globalização tem sido bem recebido pela população chinesa e começou nos anos 40 do século passado, depois da Guerra do Ópio, quando ocorreu um grande debate no país sobre como entrar na modernidade.

Um forte movimento pedia "a senhora ciência" e "a senhora democracia", estudantes queriam acabar com toda a tradição, inclusive os ideogramas.

Mao era um modernista, e desse processo nasceu a revolução marxista de 1949, que teve sua base na questão agrária, num país com quase 70% de camponeses.

O processo de modernização começou com Deng Xiaoping e prossegue nos últimos 30 anos. Um marco foi a entrada na Organização Mundial do Comércio, que foi considerada aqui uma grande vitória.

Hoje, segundo Larreta, há processos de regularização jurídica, tratados de direitos humanos assinados, com monitoramento de resultados. Há um processo de liberalização em curso, com retrocessos, muitas dimensões, mas inegável, ressalta Larreta.

A população está de acordo. E, como não é democrático, o regime chinês precisa se legitimar de alguma maneira sem ser pela força. "Aí entra a questão do bem-estar, o regime tem que ser eficaz, tem que manter o sucesso econômico e fazer o país se desenvolver", adverte, lembrando que há problemas sérios de etnias, como o Tibete, e a liberalização afeta bastante os conflitos étnicos, que são uma expressão da democracia, com espaços, mesmo que limitados, para a reivindicação de direitos.

Um bom exemplo de espaços de reivindicação numa ditadura é a reação da opinião pública, liderada pelas denúncias de jornais - todos estatais -, de crítica aos responsáveis pelo desastre do trem-bala há cerca de um ano, quando toda a burocracia responsável foi demitida e culpada pelas mortes.

O aspecto político da união dos Brics, ressaltado por Candido Mendes, foi dissecado pelo professor Walter Mignolo, da Duke University, que atribuiu o sucesso econômico do grupo à desobediência aos organismos internacionais como FMI ou Banco Mundial, assumindo uma tarefa de descentralizar a governança econômica mundial.

Ele chama a atenção para a necessidade de o grupo encontrar uma coerência política interna, o que, aliás, é um objetivo explicitado na última reunião em Délhi, na Índia.

Além disso, Mignolo vê nos Brics uma questão ética subjacente, a de ser um grupo formado por lideranças "não ocidentais", no sentido de serem países que de uma maneira ou de outra foram colonizados pelas potências ocidentais - Mignolo acha que a China com a globalização sofre com a lógica da colonização, embora nunca tenha sido colonizada diretamente - e hoje se mantêm independentes, ganhando força nos organismos internacionais anteriormente dominados por europeus e americanos.

Essa tese do professor de Duke foi rebatida tanto por scholars chineses durante os debates, pois não houve nenhum que se mostrasse insatisfeito com os progressos alcançados nos últimos 30 anos, e também por Enrique Larreta, que ressaltou que os laços culturais da China são tão fortes que o nome em chinês dos Estados Unidos (Meiguo) quer dizer "país bonito".

FONTE: O GLOBO

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