sábado, 12 de maio de 2012

Sem revanchismos:: Merval Pereira

O advogado e escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho tem bons motivos para estar feliz: foi indicado para compor a Comissão da Verdade, e seu livro, uma formidável biografia do poeta português Fernando Pessoa, tida como uma (quase) autobiografia no título por utilizar os próprios poemas para contar a vida de Pessoa, está em primeiro lugar na lista dos mais vendidos em Portugal.

A felicidade pelo livro é completa, já a pela indicação para a comissão é cautelosa. Ele tem a consciência de que estará ajudando a fazer a História do Brasil, mas receia as incompreensões.

Está feliz por participar de um grupo de pessoas “que torna impossível não aceitar o convite” e espera que na próxima quarta-feira, quando se reúnem pela primeira vez para definir o funcionamento da comissão, chegue-se a um consenso sobre seu alcance e a abrangência de suas investigações.

Pelas entrevistas de outros membros, e pela conversa que tive ontem com José Paulo, há uma preocupação com o período abrangido pela lei que criou a Comissão da Verdade.

Formada “com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”, estabelece que serão investigados casos em que a Constituição de 1988 concedeu anistia: “(...) no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição”, aos que “foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”.

Aí há a primeira polêmica que o grupo terá que dirimir. O período de investigação, de 1946 a 1988, parece amplo demais, e tudo indica que a tendência será concentrar o foco da atuação no período do regime militar.

Na proposta de José Paulo Cavalcanti, o período ideal para investigação da Comissão seria de 31 de março de 1964 até a eleição de Tancredo Neves, em 1985.

Outra questão delicada a ser discutida na Comissão é se devem ser investigados também os crimes cometidos pelos que atuaram na guerrilha urbana contra o regime militar, como querem setores ligados ao regime militar.

No inciso III do Artigo 3º, consta que um dos objetivos da comissão é “identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do artigo 1º e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade”.

A referência às ramificações “na sociedade” dá margem a que se afirme que a legislação quis abranger a atuação de setores civis, não necessariamente apenas os representantes do Estado.

Essa interpretação não deve prevalecer na comissão, pois as “eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade” se refeririam à ação de setores civis na repressão, seja com financiamentos ou outro tipo de ajuda aos órgãos do Estado, como a atuação conjunta de outros setores governamentais não militares, embora seja possível que atentados terroristas que tenham causado danos ou mortes sejam investigados.

Deve ser predominante a ideia de que os que atuaram na luta armada contra os governos militares já foram acusados e condenados.

Uma coisa parece estar definida: a Lei da Anistia é intocável, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, e vale para todos. A própria lei que criou a Comissão Nacional da Verdade, em seu artigo 6, afirma que ela “poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos” desde que “observadas as disposições da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979”, que é justamente a Lei da Anistia.

José Paulo Cavalcanti está convencido, pelo que conversou com seus colegas e com a presidente Dilma, de que a composição da Comissão indica a intenção clara de “não haver revanchismos” e que a ideia é escrever a História do período de regime militar.

Mas, sobretudo, ajudar a que muitas famílias encerrem seu sofrimento na busca de pessoas tidas até hoje como “desaparecidas”.

O próprio José Paulo tem uma experiência pessoal. O casal Eduardo e Rizoleta Meira Collier, que está entre os grandes amigos de sua família, perdeu seu filho Eduardo Collier, desaparecido desde 1974, quando tinha 26 anos.

Estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, foi cassado pelo Decreto-Lei 477 e indiciado em inquérito policial pelo Dops, em 1968, por ter participado do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna.

Preso no Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1974, juntamente com Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, por agentes do DOI-Codi/RJ, atuava na Ação Popular Marxista-Leninista (APML).

Desde então, está desaparecido. No Arquivo do Dops/PR, pesquisado em 1991 pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP), o nome de Eduardo Collier aparece em uma gaveta identificada como “falecidos”, mas o corpo nunca foi entregue à sua família.

Há algum tempo, Dona Rizoleta resolveu fazer uma missa pela alma do filho, e José Paulo perguntou por que fazia aquilo tanto tempo depois do desaparecimento. Ela respondeu que, quando se enterra um filho, 100% dele vão para a cova.

Mas, no caso de um desaparecido, sempre há esperança, embora a certeza da morte seja de 99,9%. Com a missa, ela queria “enterrar aquele 0,1%”.

É o que José Paulo acha que a Comissão da Verdade terá de fazer: encerrar de vez esse 0,1% da história de muitas famílias e promover a reconciliação nacional com a sua História, sem radicalismos.

FONTE: O GLOBO

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