domingo, 3 de junho de 2012

Um tiro no próprio pé

A abordagem do ex-presidente Lula ao ministro Gilmar Mendes era parte do audacioso plano do PT de usar a CPI do Cachoeira para constranger adversários, o procurador da República, a imprensa e juizes do Supremo Tribunal Federal, numa ação coordenada para atrapalhar o julgamento do mensalão

Daniel Pereira

O presidente americano John Kennedy, assassinado em 1963, deu relevo ao ditado segundo o qual "a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã". Tivesse sido bem-sucedida a estratégia de instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso e desqualificar o julgamento dos 36 réus do mensalão, na maioria petistas, sua paternidade seria atribuída ao ex-presidente Lula. Como deu tudo errado para as pretensões iniciais de Lula e do núcleo duro dos mensaleiros, a derrota agora, pobrezinha, está vagando pelos corredores do lulismo em busca de alguém que assuma a paternidade. O verdadeiro pai do desastre, Lula, como é do seu feitio, já renegou a criatura. O culto à personalidade de Lula é sagrado no petismo. Lula nunca erra. É induzido ao erro. Entre as alas do PT mais diretamente envolvidas com a instalação da CPI e a definição de seus alvos, já começou o tradicional jogo de "toma que o filho é teu". Afinal, ninguém quer ser lembrado no futuro como o cérebro aloprado por trás de um plano que, em vez de lançar uma cortina de fumaça sobre o episódio, colocou o mensalão na vitrine principal da rica galeria de escândalos de corrupção do governo Lula.

Por que mesmo fracassou a combinação do ex-presidente? Mesmo que seja para enobrecer indevidamente um episódio de política nanica, o paralelo mais exato para explicar o tiro no próprio pé disparado pelos comissários petistas é o famoso Plano Schlieffen, que deveria, em apenas duas semanas, ter dado à Alemanha uma vitória militar completa sobre a França e a Rússia na I Guerra Mundial. Como se sabe, a guerra durou quatro anos e a Alemanha perdeu. A resposta dos especialistas ao retumbante fracasso da estratégia traçada pelo conde Alfred von Schlieffen, chefe do Estado-Maior alemão, entrou para a história das guerras por sua brutal simplicidade: "Para funcionar, o Plano Schlieffen exigia que tudo desse certo para os alemães e tudo desse errado para os inimigos". A estratégia do lulismo com a criação da CPI deu com os burros n"água por essa mesma razão. São poderosas e incontroláveis as forças que se libertam quando uma CPI é instalada. Lula e seus auxiliares não conseguiram controlá-las conforme o planejado.

VEJA revelou na edição passada uma investida de Lula que, se bem-sucedida, poderia minorar o fracasso do plano principal. Em uma conversa com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente tentou convencer o magistrado da necessidade de adiar o início do julgamento, previsto para o próximo semestre. "É inconveniente julgar esse processo agora", disse Lula a Gilmar. O adiamento desejado por Lula traria dois benefícios ao PT. Uma decisão tomada em 2013 aumentaria a probabilidade de prescrição de crimes (veja o quadro na pág. ao lado). Além disso, livraria o partido do risco de disputar as eleições municipais deste ano, nas quais espera conquistar até 1000 prefeituras, com uma condenação capital nas costas.

O ex-presidente insinuou que, se Gilmar não agisse de acordo com os propósitos do PT, o ministro do STF poderia ser investigado pela CPI. A ameaça, de tão grave, provocou a reação contundente de Gilmar e de outros ministros da corte, que viram na ação do ex-presidente uma clara tentativa de intimidação da Justiça – movimento tão indecoroso que, ao contrário do imaginado pela falconaria petista, se voltou contra o partido, ao consolidar a necessidade de uma pronta decisão sobre o caso. Mais um tiro no próprio pé.

Nesta edição, VEJA revela a existência de um documento preparado pelos petistas para guiar as ações dos companheiros que integram a CPI do Cachoeira. Lendo o material, é possível imaginar a atmosfera pesada que pontuou a conversa entre o ministro e o ex-presidente, ocorrida no dia 26 de abril, no escritório de Nelson Jobim, ex-presidente do STF e amigo de ambos. O nome de Gilmar faz parte de uma lista de alvos preferenciais do PT que precisariam ser atingidos pela CPI do Cachoeira. Outro marcado na lista para sofrer ameaças e humilhações é Roberto Gurgel, procurador-geral da República, a quem caberá defender a punição dos mensaleiros na abertura do julgamento no STF. O guia de ação na CPI produzido pela liderança petista, e ao qual VEJA teve acesso, não deixa dúvida sobre as reais intenções do grupo mais umbilicalmente ligado a Lula. Os alvos preferenciais são os oposicionistas, a imprensa e membros do Judiciário que, de alguma forma, contribuíram ou ainda podem contribuir para que o mensalão seja julgado e passe, portanto, a existir oficialmente como um dos grandes eventos de corrupção da história brasileira – e, sem dúvida, o maior da República.

O documento foca em especial Gilmar Mendes. São dedicados a ele quatro tópicos: "O processo da Celg no STF", "Satiagraha, Fundos de Pensão, Protógenes", "Filha de Gilmar Mendes" e "Viagem a Berlim". São referências a episódios em que Gilmar Mendes tem culpa no cartório? Não. São todas questões já levantadas contra o ministro pelos mensaleiros e seus defensores e que, uma vez esclarecidas, se mostraram fruto apenas do desejo de desqualificar um integrante do STF que os petistas consideram um possível voto contra seus companheiros réus. Se Lula foi mesmo induzido ao erro por relatórios dessa natureza, é uma questão ainda em aberto. Mas que ele se entregou de corpo e alma ao erro não há a menor dúvida. Na conversa com Gilmar, depois de dizer que controlava a CPI e insinuar que poderia proteger o ministro de uma eventual investigação, o ex-presidente citou um dos tópicos do documento: "E a viagem a Berlim?", perguntou. No documento do PT está escrito que "há notícias de que Cachoeira esteve na Europa" na mesma data que Gilmar. "Estamos lidando com gângsteres, com bandidos que ficam plantando essas informações", reagiu o ministro do STF, que foi obrigado a explicar que viaja sempre para Berlim, onde mora sua filha.

Lula bem que tentou. Dispensou as liturgias esperadas de um ex-presidente, brandiu obscenamente versões como se fossem fatos, atropelou a lei, mandou às favas os bons costumes, a educação e a civilidade. Tudo para tentar o impossível: apagar da memória recente da nação que sob seu governo se deu o maior escândalo de corrupção da história da República. Foi patético. E inútil. Revelada sua abordagem a Gilmar Mendes no escritório de Nelson Jobim, a resposta de Lula veio por meio de uma nota curta e vacilante, em que se dizia "indignado". Foi um tiro no próprio pé. A necessidade de julgar o mensalão tornou-se ainda mais premente. Disse Carlos Ayres Britto, presidente do Supremo: "O que a sociedade quer é compreensível: o julgamento do processo, sem predisposição, seja para condenar, seja para absolver. O processo está maduro, chegou a hora de julgá-lo". Alguns ministros tornaram pública sua opinião a respeito do encontro entre Lula e Gilmar. Com exceção do ministro Marco Aurélio Mello, para quem Lula, como líder do PT, tem todo o direito de abordar o tribunal e expor sua insatisfação com a coincidência do julgamento com as eleições municipais de outubro, os outros que se manifestaram o fizeram de modo crítico. O mais contundente foi o ministro Celso de Mello, decano do tribunal: "Se ainda fosse presidente da República, esse comportamento seria passível de impeachment". Em inusitada demonstração de autonomia, alguns petistas discordaram, à boca pequena, claro, da atuação de Lula. Esses descontentes lembraram que é errado dar como certo o voto de Gilmar Mendes na condenação dos mensaleiros. Eles lembram que Gilmar Mendes votou contra a inclusão de Luiz Gushiken, ex-ministro de Lula, na lista de réus do mensalão. Gilmar também deu voto contra a abertura de inquérito para apurar a responsabilidade do ex-ministro Antonio Palocci no famoso episódio da quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Sob a proteção do anonimato, é muito mais fácil hoje do que há algumas semanas encontrar petistas fortemente críticos da estratégia de atacar a imprensa e envolver o procurador Roberto Gurgel na CPI do Cachoeira. No documento feito pelos petistas empregados na liderança do partido no Congresso, Gurgel é falsamente acusado de engavetar o caso conhecido como Operação Vegas, em que a Polícia Federal investigou o jogo ilegal no Brasil. O documento do PT dá como fatos as mais absurdas invencionices contra a imprensa. Falácias fartamente marteladas criminosamente por blogs sustentados por verbas públicas de instituições dominadas por petistas. A avaliação de deputados e senadores do PT, confirmada por pesquisas de opinião, é que o partido, até agora, é o maior perdedor na CPI do Cachoeira.

Na semana passada, a comissão de inquérito aprovou a convocação do governador Agnelo Queiroz, do PT de Brasília. O plano inicial de Lula era levar à CPI apenas o governador tucano Marconi Perillo, de Goiás, também convocado. Os integrantes da CPI decidiram ainda quebrar o sigilo da empreiteira Delta em nível nacional – quando o plano original de Lula era circunscrever a apuração do propinoduto da empresa a suas atividades no Centro-Oeste. Como se verá na reportagem seguinte, a CPI do Cachoeira poderá ser chamada agora de CPI da Delta. Um tiro de bazuca no pé do PT.

Os mensaleiros e o risco da prescrição

Se os principais réus forem condenados à pena mínima, apenas três terão de cumpri-la

Se o julgamento do mensalão acontecesse hoje e os principais réus fossem condenados à pena mínima de prisão pelos crimes de que são acusados, apenas três deles (o empresário Marcos Valério, o deputado João Paulo Cunha e o ex-deputado Roberto Jefferson) teriam de cumprir a decisão. Os demais estariam livres, dado que suas penas já teriam prescrito. A prescrição é um instrumento do Código Penal que tem por objetivo proteger os cidadãos da morosidade da Justiça – e não provocar a impunidade. A lei entende que ninguém pode ser processado por tempo indeterminado e, portanto, ter sua vida paralisada, sua idoneidade mantida em dúvida sem um pronunciamento final da Justiça. A prescrição pode ocorrer até mesmo antes do julgamento, com base em um cálculo que considera a pena máxima prevista para o crime, a pena em abstrato. Nessa circunstância, o prazo é contado a partir do recebimento da denúncia. No caso do mensalão, só haveria risco de prescrição antes do julgamento se ele não se realizasse até 2015, o que é improvável. A prescrição que ocorre depois do julgamento varia de acordo com a pena efetivamente recebida. Quanto menor a pena, mais curto o prazo de prescrição. Para escolher a extensão da pena, os juizes obedecem a critérios atenuadores. Réus primários e de bons antecedentes, caso da maioria dos mensaleiros, tendem a receber a punição mínima prevista no Código Penal. Mas quem é condenado por mais de um crime no mesmo julgamento, risco que corre a maioria dos mensaleiros, pode ter a pena agravada.

Jobim mata a cobra mas não mostra o pau

Há duas semanas, em duas conversas telefônicas com VEJA, Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-ministro da Justiça, relutantemente, confirmou ter sido o anfitrião do agora famoso encontro do ex-presidente Lula com Gilmar Mendes, ministro do STF. Na primeira conversa, Jobim negou tudo, usando como prova a data (errada) do encontro. Naquele dia, disse Jobim, ele não podia ter se encontrado com os dois em Brasília pois estava em São Paulo participando de um evento promovido pela Federação das Indústrias do Estado, a Fiesp. De posse da informação correta sobre a data do encontro, 26 de abril, VEJA voltou a ligar para Jobim. Sem outro pretexto para encurtar a conversa, Jobim confirmou que Lula e Gilmar se encontraram e conversaram em seu escritório no Lago Sul de Brasília. Sustentou durante algum tempo que o encontro fora fortuito. Lula antecipara a data de uma visita a ele prometida havia muito tempo e calhou de cumprir a promessa justamente no dia em que Gilmar também estava no escritório de Jobim. Confirmou depois que, sendo amigo de ambos, patrocinou a conversa. "Eles falaram sobre o julgamento do mensalão?" Jobim respondeu: "Até onde eu sei, foi uma conversa amigável sobre temas de interesse institucional e atualidades da política, coisa normal em se tratando de um ex-presidente e um ministro do STF". VEJA insistiu: "Lula disse a Gilmar que seria mais adequado adiar a votação do mensalão?". Jobim respondeu: "Não teve pedido nenhum". Como a pergunta não queria calar, Jobim perdeu a paciência: "Me deixa fora disso. Tenho uma boa relação com Lula e quero preservá-la". Na edição da semana passada, VEJA publicou a história do encontro conforme dele se recordava Gilmar Mendes. Jobim foi citado na reportagem no exato contexto acima. Ouvido pelos jornais depois da publicação da reportagem de VEJA, Jobim disse, em linhas gerais, a mesma coisa que revelou a revista – no que foi interpretado como tendo desmentido o teor da conversa. A dois políticos de sua confiança, um do PSDB e outro do PT, Jobim contou que a versão mais próxima do encontro foi aquela relatada por Gilmar Mendes. Lauro Jardim, no Radar desta edição, revela que o próprio Lula disse a um presidente de partido que faria gestões sobre o mensalão junto aos ministros do STF. Como ensinava Lyndon Johnson, o presidente americano, "a coisa mais importante que um homem tem para lhe dizer é justamente o que ele está tentando não dizer". Em uma corruptela do ditado popular brasileiro, pode-se afirmar que Jobim "matou a cobra mas não quis mostrar o pau".

FONTE: REVISTA VEJA

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