segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O PT não é comunista - Renato Janine Ribeiro

De vez em quando, leio em blogs ou mesmo em cartas que recebo enquanto colunista deste jornal ataques aos "comunistas" do PT. Ora, é importante esclarecer algumas coisas. Todos têm o direito de divergir do Partido dos Trabalhadores e do comunismo. Mas é errado confundir um com o outro. Melhor aclarar alguns pontos, para que os adversários do PT ou do comunismo possam criticá-los sem incorrer nessa confusão.

O PT não é ou foi comunista, nem por seu programa nem por sua história.

Vamos ao programa ou, se quiserem, aos ideais. O princípio de todo partido ou militante comunista é a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Quer dizer que só a sociedade pode ser dona de fábricas, fazendas, empresas. Já residências, carros, roupas e hortas para uso pessoal ou familiar não precisariam ser expropriadas de seus proprietários privados. A casa em que eu moro não é "meio de produção". Menos ainda, minha roupa. Mesmo a horta, em vários países comunistas, ficou em mãos particulares. Seja como for, o ponto de partida do comunismo é: a propriedade privada dos meios de produção - fazendas, fábricas - é injusta e, também, ineficiente. Deve ser suprimida. Sem essa tese, não há comunismo.

A maior diferença é a questão da propriedade

Um parêntese: até o presente, esse projeto não funcionou. Para Marx, a questão não era moral, mas econômica. A propriedade privada acabaria se mostrando ineficiente. Seria superada por uma forma superior de propriedade, a coletiva. Ora, até hoje a propriedade privada se mostrou mais produtiva. E ninguém conseguiu mostrar na prática (ou teorizar) o que seria a propriedade "social" dos meios de produção. Houve, sim, propriedade estatal deles. Mas Marx era claríssimo: o Estado tinha que ser abolido. Nunca propôs ampliá-lo. Nem reduzi-lo. Ela ia mais longe do que os próprios liberais: queria suprimir o Estado. Era o contrário do que fizeram os Estados comunistas, que reforçaram a polícia e controles de toda ordem. Eles suprimiram a propriedade privada, mas não o Estado: criaram um monstro policial que Marx jamais aceitaria.

Pois bem, o PT namorou em seus inícios a ideia de um socialismo vago, mas nunca se bateu pela abolição da propriedade privada dos meios de produção. Daí que, nos seus primórdios, fosse até acusado de ser uma armação contra a "verdadeira" esquerda, a comunista. Dizia-se que Lula seria um ingênuo, ou um agente da CIA aqui infiltrado. Além disso, o PT nasce de um inovador movimento sindical; ora, Lênin fora áspero na crítica ao "sindicalismo", que padeceria de uma ilusão reformista, querendo melhores salários em lugar da revolução. Tínhamos um abismo entre o projeto petista e o comunista. Finalmente, o lado libertário do PT - o fato de reunir descontentes com a cultura dominante, machista, racista etc. - desagradava a quem achava que a contradição decisiva da sociedade seria o conflito do capital com o trabalho. Havia marxistas no PT, talvez ainda os haja, mas sempre foram minoria.

Daí vêm duas consequências curiosas e paradoxais quanto ao comunismo. Para ele, o fim da propriedade privada não é só um projeto. É uma certeza científica. O marxismo pretende ser a ciência das relações humanas. É científico que um dia virá o socialismo. Disso decorre que, sendo uma ciência, o marxismo no poder não admite discordância. O dissidente é um errado. E por que autorizaríamos os errados a falar? Eles só atrasarão a rota da história... Seria mais econômico e melhor, para a humanidade, calá-los. Daí, o caráter não democrático dos regimes comunistas (é por isso que, na democracia, a liberdade de expressão significa que podemos erra, renunciamos à certeza). E disso decorre, também, que os marxistas fora do poder não têm pressa. Um dia, chegará o comunismo. No poder, enfatizam que o socialismo é uma necessidade histórica. Fora do poder, enfatizam que a história não precisa ser apressada. Dão-se bem com a adversidade. Derrotados, sabiam ser serenos, para usar a virtude que mostravam em tempos nefastos: a história lhes daria, um dia, razão.

É paradoxal, não é? A mesma convicção de que o marxismo seja uma ciência leva os comunistas, no poder, a não tolerar a oposição, e fora do poder a fazer tudo o que é acordo, mesmo dos mais espúrios, a aguentar qualquer derrota, a esperar. Ora, é digno de nota que o PT nunca aceitou o pressuposto do marxismo como ciência. Por isso mesmo, também recusou suas consequências. Nunca reprimiu divergências ao feitio comunista. E sempre teve pressa (exceto, talvez, depois de chegar à Presidência). Não foi à toa que, entre petistas e comunistas, as relações nunca tenham sido fáceis. A queda do Partido Comunista tradicional, o "partidão", acaba coincidindo com a ascensão do PT. Não restou espaço ao PCB. Mudou de nome, abriu mão do fim da propriedade privada, manteve uma excelente retórica, foi para a direita.

Em suma, há muito a criticar ou a elogiar no PT, mas será errado criticá-lo (ou elogiá-lo) por ser comunista.

Depois de meu último artigo, recebi de Fernando Henrique Cardoso amável e-mail. O ex-presidente se diz leitor da coluna e, confiando na minha boa-fé, desmente que seu governo tenha restringido a apuração dos escândalos da privatização das teles e da compra de votos para a reeleição. Esta existiu, diz, mas por parte de políticos locais. É importante o seu depoimento. E lembro aos leitores que o eixo de meu artigo estava na tese de que as questões de corrupção, que pareciam tão claras quando o lado do bem se opunha à ditadura, se transformaram num cipoal desde que PT e PSDB se digladiam. Agradeço a carta e a gentileza do ex-presidente.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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