domingo, 19 de agosto de 2012

O risco de banalizar o ilegal - Míriam Leitão

Todo caixa dois tem um crime antecedente. Um dos piores resultados possíveis do julgamento do mensalão seria a aceitação do caixa dois como fato da vida ao qual deveríamos nos resignar. Aceitá-lo como espécie de subcrime porque “política é assim mesmo”. Empresa que doa de forma clandestina tem propósito inconfessado ou dinheiro de origem criminosa.

Tempos atrás, quando surgia denúncia de que havia caixa dois numa campanha política a notícia ocupava espaço nos jornais e o país se indignava. Agora se infiltra uma cultura de aceitação resumida na frase “isso foi só caixa dois”. Se isso ficar confirmado em sentenças amenas para esse crime, o Brasil estará abrindo uma enorme brecha para que o crime de corrupção se alastre.

O que levaria uma empresa a preferir a doação de campanha não declarada? Vários motivos, nenhum deles lícito. Pode estar imaginando auferir vantagens num possível governo futuro e por isso não quer deixar rastro. Pode ser um dinheiro não declarado que está em caixa por negócios escusos anteriores. Pode ser pela exploração de algum ramo de negócio ilegal. Um dinheiro que circula fora do sistema bancário em espécie, em grandes volumes, está correndo um risco óbvio. Só pode estar fugindo do perigo maior que é ser detectado pela estrutura de controle dos meios de pagamento. Lícito não é.

A atitude implícita na naturalização do crime de caixa dois é o maior perigo que está surgindo no julgamento do mensalão. Desde que Delúbio admitiu “o dinheiro não contabilizado”, e após o ex-presidente Lula ter dito a famosa frase de que “o PT fez o que é feito sistematicamente neste país”, construiu-se a convicção de que é aceitável o que não é.

O advogado de Delúbio Soares, Arnaldo Malheiros Filho, ao falar no Supremo admitiu que seu cliente quando tesoureiro do PT distribuíra dinheiro de caixa dois. E por isso é que o fez pelas vias tortuosas descritas nos autos. “O procurador pergunta: por que não se faziam transferências bancárias? Porque era ilícito. Deram despesas sem nota. Quem tem uma vivência de eleições no Brasil sabe que o que circula é a moeda sonante. Era ilícito mesmo. Delúbio é um homem que não se furta a responder por aquilo que fez. Ele fez caixa dois de campanha, isso ele não nega. Agora, ele não corrompeu ninguém.”

O primeiro ato não tem sujeito. Ele diz que “deram” dinheiro sem nota. O raciocínio oficializa o divórcio entre caixa dois e corrupção. O problema é que aceitando-se isso e transformando o caixa dois numa espécie de crime tolerável, inúmeros outros podem estar sendo encobertos e oficializa-se o manto protetor ao corrupto.

Já é difícil combater o dinheiro ilegal na campanha, ficará impossível se ele for tratado como parte da paisagem da política no país, uma espécie de efeito colateral inevitável.

A proposta de solução leva ao risco de aumentar a prática. O financiamento público exclusivo de campanha pode levar, diz Cláudio Abramo, da Transparência Brasil, a um aumento das doações clandestinas. Se proibidas essas doações, os partidos continuarão indo nas grandes empresas e todo o caixa um virará caixa dois.

O problema pode acontecer em qualquer país e já houve muitos escândalos no mundo por doações não contabilizadas. Um deles colocou Helmut Kohl no eterno ostracismo. O que difere um país de outro é o rigor da punição que recai sobre esses políticos. É esse o momento em que estamos decidindo: se aceitaremos mais rigor nas punições ou se vamos tratar com leveza um crime que é a ponta do iceberg de outros crimes.

FONTE; O GLOBO

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