segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Mais barulho do que história - Wilson Figueiredo

É, no máximo, inócuo dizer que o Brasil não será o mesmo depois que se assentar a poeira levantada pelo julgamento do pessoal que encenou o mensalão como espetáculo do gênero rouba mas faz. Assim tem sido, mas a oportunidade, desta vez, confirmará que já é possível dar tratamento digno ao frustrante sentimento coletivo.

A carta com que Lula se ofereceu ao povo brasileiro, depois de três insucessos nas urnas, tinha como destinatário o público seleto, que temia a chegada do PT ao poder. A classe média fazia parte da maioria que lhe barrou o acesso ao poder ao custo de três derrotas. E o que se soube, por intermédio do mensalão virado pelo avesso, ofuscou o sentido social que enfeitou os mandatos de Lula. Foi mal contado o que se passou realmente.

Faltou a Lula, para botar debaixo do braço a classe média, a capacidade de dividir equitativamente, com os seus antecessores, o saldo acumulado com que a democracia passou a contar pela soma dos governos a partir da derrubada da República Velha em 1930. Não foi capaz de perceber que a urbanização acelerada fez da classe média o lastro de uma democracia inevitável. Dissipou tempo valioso no jogo da cabra cega com o terceiro mandato e consolidou as suspeitas de tentar suceder-se indefinidamente. Lula faz mais barulho do que história. .

O Século 20 deixou saldo insuficiente, mas legou ao Século 21 herança sem esperança, tecida com os mesmos fios que revestiram de sentido social o Estado Novo, respeitado sob a Constituição de 1946 e sem atender às necessidades decorrentes da industrialização do país agrário.O direito de greve continuou a intimidar a numerosa parcela social que se contenta em ter na Constituição o direito de greve, como se fosse suficiente existir mais no papel. .

Pelo que o julgamento do mensalão encaminha, o que se entende efetivamente por classe média vive seu momento, digamos histórico, no país em que a história se repete por falta de convicção para deixá-la experimentar. O saldo político do Brasil no Século 20 tanto favoreceu a democracia quanto abonou as duas ditaduras - o Estado Novo e os governos militares - que com ela se revezaram.

Pois é com os valores da cidadania que, entre a aspiração coletiva de melhoria e a possibilidade de retroceder socialmente, a democracia viabiliza a estabilidade social e pratica a normalidade política.

A classe média não passava, socialmente, de hipótese sem condições para assumir função definida e viabilizada, no Brasil, ao longo do Século 20. Desde a liquidação da República Velha, recusava desafios e riscos. Retraía-se para não ser confundida com os níveis inferiores de remuneração (em escritórios e repartições púbicas, ou no balcão de lojas comerciais). Classe média é, antes de tudo, estado de espírito. E estava historicamente limitada a uma presença política menor, por falta de densidade social e sem peso eleitoral (pela ausência de eleições). A alfabetização era socialmente restrita e os números desanimadores. E o direito de voto excluía os analfabetos, com forte presença nos recenseamentos de caráter nacional, na segunda metade do Século 20.

O brasileiro ainda não se convenceu de que o julgamento do mensalão poderá reduzir a impunidade que sobrevive graças ao atraso político geral, mas sem a garantia de que a história se repita como privilégio. O mensalão é apenas um episódio relativo ao salve-se, politicamente, quem puder. O ciclo da impunidade entrou em declínio. A oportunidade do julgamento do mensalão apresenta a memória dos fatos e, principalmente, a classe média propriamente dita dá sinais de estar ciente da oportunidade de desempenhar a função de coro grego na montagem da peça. A expectativa contrafeita merece mais do que está em cena. Com a palavra, a eleição municipal.

FONTE: JORNAL DO BRASIL

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