domingo, 16 de setembro de 2012

O crivo de quem usa a cidade

Entrevista - Boris Fausto

Um eleitor com cabeça de consumidor alavanca Russomanno e sepulta antigos mitos da política

Laura Greenhalgh

"Moro sozinho e não pretendo sair daqui", já foi anunciando o dono da agradável casa no bairro do Butantã, à saída da Cidade Universitária, em São Paulo. Aos 81 anos, viúvo, filhos criados e netos idem, o historiador Boris Fausto ordenha a cafeteira elétrica enquanto decreta seu desejo de continuar vivendo sozinho na residência projetada por Sérgio Ferro, lá nos anos 1960, quando das pranchetas de jovens arquitetos saíam moradias de inspiração comunista e conforto burguês. Pois no ano passado tombaram a casa do professor. Com ele dentro e meio século de memórias por todos os cantos. O tombamento inesperado, e nunca desejado, como é de costume, acabou por levar o morador a voltar-se ainda mais para a administração da cidade onde nasceu, em 1930. Até de Plano Diretor passou a entender. E assim, entre experiências pessoais e vasto conhecimento acumulado, Boris Fausto concedeu esta entrevista na quinta-feira, provocado a refletir sobre o processo eleitoral que se descortina em torno de um dos mais cobiçados postos da política nacional: a Prefeitura de São Paulo.

Entrevista delicada, até pela indefinição do quadro eleitoral, mas repleta de comentários vindos de um observador que faz questão de pensar com independência. Para Fausto, a dianteira nas pesquisas do candidato Celso Russomanno (PRB), a dificuldade de alavancagem de Fernando Haddad (PT), um afilhado de Lula, e a impressionante rejeição de José Serra (PSDB) têm a ver com as novas feições do eleitorado paulistano, tantas vezes rotulado de conservador. Aponta a emergência formidável de uma classe C que vai se constituindo como sujeito político, para quem o julgamento do mensalão, com seu palavrório empolado, não incomoda tanto quanto o dia a dia numa metrópole emperrada, extenuante, cujos serviços não funcionam. Assim, seria um cidadão consumidor, e não o cidadão eleitor propriamente dito, quem hoje etiqueta Russomanno como uma novidade na política. E lhe promete o voto.

Formado em direito no Largo de São Francisco e com todo um percurso acadêmico em história na própria USP, Boris Fausto é autor de um clássico das ciências sociais, A Revolução de 30, além de uma vasta obra recentemente acrescida de Memórias de um Historiador de Domingo (ed. Companhia das Letras). Na entrevista que se segue, o professor também se detém em analisar o chamado "voto religioso", atrelado particularmente às igrejas evangélicas, e em minimizar a importância do horário gratuito, com seus programas enfadonhos, onde a disputa por um minuto a mais de exposição "leva os candidatos a fazerem acordo com o diabo e a Virgem Santíssima". Independentemente do que as urnas eletrônicas poderão cravar em breve, Boris Fausto admite que o processo eleitoral em curso já está dando importantes recados à classe política brasileira. Prestar atenção será questão de sobrevivência.

A despeito da relevância da disputa que se trava, a campanha para prefeito em São Paulo resvala num debate de segunda. Ou de quinta, para muitos. Por quê?

Um pouco tem a ver com a política em âmbito municipal. Quando se vai para o plano federal, a falação, o bate-boca, as pegadinhas, isso tudo faz menos sentido. A disputa municipal convida a uma política mais localizada, mas esse aspecto também não é explicação suficiente para o que temos visto. O problema é mais complexo. Tem a ver com o fenômeno da banalização da política e a introdução do marketing nas campanhas. O marketing televisivo, principalmente esse, se transformou numa espécie de mito. O candidato faz acordos com o diabo e a Virgem Santíssima por um minuto no horário eleitoral gratuito. Mas, interessante notar, a televisão não está tendo a importância que se atribui a ela. As pessoas vêm demonstrando cansaço desses programas engessados, enfadonhos. Veja o caso do Celso Russomanno, que está na dianteira folgada das pesquisas e tem pouquíssimo tempo de exposição no horário gratuito. Você poderá dizer "ah, mas a fama dele vem do trabalho radiofônico que desenvolveu, trabalho que o ajudou a montar a imagem de defensor dos consumidores". Sim, sem dúvida, mas o desempenho dele agora não está associado diretamente à exposição na TV. Nos dias atuais a construção de uma candidatura passa por outros meios. Fora isso, o eleitorado mudou muito. Qual o sentido dos comícios hoje em dia? Especialmente numa metrópole como São Paulo, com computadores por toda parte, a internet influencia muito mais o processo, e nós precisaríamos medir melhor isso. Não se aguenta mais aquele programa eleitoral em que temas importantes passam ao largo e o candidato é apresentado apenas por suas virtudes, endossadas por alguns populares caídos do céu. Ora, ninguém quer ver isso. Ou pouca gente vê.

Por que, mesmo com a amplitude da internet, o lado paroquial da política se mantém?

Porque mesmo numa metrópole como São Paulo não se pode desconsiderar o aspecto da regionalização. Além das subprefeituras, que têm uma importância imensa do ponto de vista administrativo, ainda existem os chamados "caciques de bairro". Você ainda encontra essa figura por aí. Então é natural que se lide com reivindicações específicas, locais. Isso pode definir em parte a política paroquial, para usar sua expressão. Mas também o termo "paroquial" hoje nos remete à influência do voto evangélico, algo que avança muito nesta cidade. Tenho observado o crescimento e sei que se trata de uma experiência sociológica interessante, porém não posso deixar de apontar a manipulação das pessoas num nível muito grave ao ver os programas religiosos eletrônicos. Esse fenômeno se converte em força política, certamente. E numa força política plural, pois vão aparecendo diferentes denominações religiosas. Ainda bem que não constituem uma força monolítica! O fato é que o grau de negociação dessas igrejas com os candidatos é intenso e acaba por comprometer o discurso. Quem, com esse tipo de apoio, vai discutir direito ao aborto? Quem vai tratar de homossexualidade? Ninguém, a não ser um candidato de um partido menor, sem nenhuma chance de vitória. Os candidatos que estão no páreo são obrigados a adotar posições ambíguas ou até mesmo contrárias às suas convicções para contar com o apoio dessas igrejas. Isso gera uma distorção tremenda. Quando Russomanno falou em abrir uma igreja em cada esquina, pensei: como seria aborrecido...

São Paulo já teve administrações voltadas para obras, outras voltadas para o social e agora surge um quadro mais difuso com a emergência do chamado "voto religioso".

Estamos atravessando um período, que eu prefiro acreditar provisório, de relativa regressão política. A procura desesperada por votos imprime essa marca esquisita, como se o processo eleitoral fosse convertido numa concorrência mercadológica entre pessoas. Ao longo desse processo, figuras políticas perdem força. Havia por aqui duas correntes definidas: uma direita oportunista, Adhemar, Maluf, Pitta - eu posso não gostar deles, mas tinham uma definição - e tinha uma corrente mais social, Covas, Erundina, lembrando, contudo, que Lula não ganhou em São Paulo. Hoje a novidade vem da emergência da classe C, um contingente muito grande que, ao que parece, em boa parte está se identificando com o Russomanno. Essa classe representa uma nova figura social e infelizmente não se procurou saber ao certo em que candidato ela iria votar. Russomanno está sendo identificado não como o preferido pelo cidadão eleitor, mas como o preferido por um cidadão consumidor. O fato de ter tido processos, ter sido amigo do Maluf, isso não está contando neste momento.

O que o senhor quer dizer com esse cidadão consumidor?

Nessa febre de consumo que se vê por aí, num país tão desigual e com educação ainda tão precária, a figura do Russomanno compõe bem. Até porque existe uma grande irritação na cidade com os serviços. As pessoas vivem irritadas. Veja a rejeição à administração do Kassab, algo que está pesando sobre os ombros do Serra. Ora, se alguém aparece como paladino do consumidor, como defensor do usuário da cidade, alcança repercussão. O que se espera do administrador municipal também parece ter mudado. São Paulo conviveu durante muito tempo com prefeitos que buscavam encarnar a imagem do tocador de obras. O Adhemar de Barros dizia que São Paulo precisava de gerente. Pois ele conseguiu calar adversários justamente ao se posicionar, e entrar para a história, como o construtor do Hospital das Clínicas, muito embora quantos hospitais poderiam ter sido construídos com o dinheiro que ele levantou para fazer o HC... Maluf marqueteou o tempo todo obras que fez, muitas ainda polêmicas. Hoje a cidade se diversificou e candidato que ficar falando em construir ponte, viaduto, avenida, já não vai atrair tanto. Porque o eleitor não está preocupado com a expansão e sim com o funcionamento da cidade. Até acho bom que o discurso "tocador de obras" já não cole mais. O que incomoda as pessoas é o transporte público deficiente, o trânsito infernal, o atendimento ruim à saúde... Quem resolver esse tipo de problema não precisará, a meu ver, ser de direita ou de esquerda. Aliás, as tinturas políticas também estão se diluindo, esse é outro dado do nosso tempo. Os brasileiros perceberam que voto direto não resolve tudo, como lhes foi prometido lá trás, na redemocratização. Claro que o voto direto é bom, mas não resolve tudo. Uma parte da descrença na política vem dessa constatação inevitável.

Vamos pensar na vassourinha janista. Ou na reação das pessoas diante dos rombos financeiros dos anos Maluf-Pitta. O tema da corrupção ainda é decisivo em São Paulo?

Já que você mencionou o Jânio, talvez ele tenha sido o primeiro a perceber que o ataque à corrupção não era um movimento reacionário, nem pequeno-burguês, mas que havia campo para trabalhar politicamente a ideia. Então ele veio com as vassourinhas contra corruptos, aqueles jingles todos, ousou uma campanha interessante, ainda que altamente manipuladora. Deixou o exemplo, tanto que a campanha do Collor à Presidência, com toda a ênfase em caçar marajás, era uma reedição da ideia janista. Hoje é possível ver que tanto o tema da boa gestão quanto o do combate aos corruptos continuam significativos em São Paulo. E em outras capitais também. Mas arrisco um palpite. Mesmo com o julgamento do mensalão em curso, não creio que o tema da corrupção esteja despertando tanto interesse assim em setores da opinião pública. Talvez não vá haver uma conexão direta entre o resultado do julgamento e o resultado das urnas. Precisamente é o que eu penso. Pergunto: ao definir classe média com critérios tão rebaixados, como se tem feito no Brasil, como é que essa gente que está dando duro para melhorar um pouco de vida vai se interessar pelo que é dito naquelas longas sessões do Supremo? Eu acho o debate que se trava lá interessantíssimo, mas eu sou eu, você é você, somos uma fração da população.

Maluf posou com Lula em apoio a Haddad. Mas o malufismo parece olhar noutra direção, ou seja, para Russomanno. O senhor diria que o ex-presidente selou acordo com uma liderança oca, um Maluf sem malufismo?

Talvez. É interessante rever as razões do Maluf ao posar naquela foto nos jardins de sua casa, ao lado dos petistas. Primeiro, acho que o Maluf pensou que ainda seria capaz de arrastar segmentos da população para o candidato que ele indicaria. Depois, ele claramente quis saborear a vitória de ver o ex-inimigo entrando na casa dele, praticamente para lhe beijar a mão. Ainda se saiu com verve, e enorme cinismo, ao dizer que "direita não sou eu, é o Lula". Isso tudo deve ter lhe dado um prazer imenso. De qualquer forma, esse episódio foi esclarecedor sobre até que ponto pode ir um líder com virtudes, mas com inúmeros defeitos, como é o caso do Lula.

De onde vem toda essa rejeição ao Serra?

Serra alcança um nível de rejeição que de fato torna problemática sua eleição e faz da ida para o segundo turno uma incógnita. Pois bem, a rejeição será pelo fato de ele ter deixado a Prefeitura antes do término do mandato? Não me parece, porque depois ele concorreu em outras eleições com alto desempenho. Rejeição por que ele não é simpático? Mas ele já passou por outras eleições nas quais ninguém perguntou se ele era simpático ou não, se era careca ou cabeludo. Há quem fale em fadiga de material. Pode ser, isso de fato ocorre em política. É quando o eleitorado vai buscar o novo. O que se vê agora é um número maior de pessoas etiquetando Russomanno como novo, e ironicamente o mesmo não acontece com Chalita nem Haddad, ao mesmo tempo em que um expressivo número de pessoas etiqueta Serra como o velho. É isso, a política é feita de agonia e gozo. Insisto que tudo tem a ver com a transformação dessa nova classe social em sujeito político.

O tempo é mais de agonia do que de gozo?

Deixe-me ser um pouco mais otimista na minha fala. Aqui em São Paulo ainda vamos passar por tropeços muito grandes no que diz respeito à forma de fazer política na cidade, mas já estão lançados os dados estruturais de uma metrópole altamente complexa, que vem elevando seu patamar de educação e tem o desejo do novo. Isso, projetado num prazo mais longo, poderá ser bom. São Paulo continuará sendo uma rampa para políticos que aspiram à projeção nacional, o que é legítimo dada a importância da cidade, embora o que se vê no Brasil hoje em dia é a busca por cargos elevados com muita rapidez, no meu entender. Enfim, essa eleição haverá de nos mostrar muitas coisas. Se o Haddad se der bem, ficará evidente que o padrinho funcionou. Ou melhor, os padrinhos, pois, além de Lula, ele terá sido catapultado por Dilma, que vem construindo prestígio próprio. Se não se der bem, entra em xeque a figura do padrinho político. No plano nacional, a emergência do Eduardo Campos lá em Pernambuco, bem como o crescimento do PSB em vários pontos do país, aponta para a crise já visível do PSDB e o baixo desempenho do PT em capitais. Hoje tende a se firmar um partido, o PSB, que não se descola totalmente do projeto da presidente, mas trata de montar o seu. Veja como as eleições municipais estão sinalizando novos arranjos políticos. Quem me garante que esses dois partidos que se digladiaram tanto, o PT e o PSDB, no fundo já não entraram em crise? Falo de ambos, mesmo considerando o grande trunfo do PT, que são as benesses do poder, e ele de fato está no poder. Não só isso: o prestígio de Dilma cresce.

Analistas atribuem o quadro em São Paulo, se pudéssemos bater uma fotografia dele agora, como a afirmação do traço conservador do seu eleitorado. O senhor concorda?

Não compro a tese do conservadorismo até porque esse eleitorado mudou muito. Pense no pré-30, no anos do Estado Novo e no período seguinte. Pois bem, aquele eleitorado que era antigetulista se transforma a partir de 1945 sob o efeito da industrialização, das transformações demográficas, dos contingentes humanos que vêm de Minas, de várias partes do Nordeste... Agora já estamos falando de um outro eleitorado. Há algumas continuidades com o passado? Claro que há, mas o eleitorado vem mudando, num país que também se move muito. Hoje grupos socialmente definidos como elites sentem que perderam lugar. Veja a afluência de pessoas indo ao centro da cidade só para ver obras dos mestres impressionistas. Quando isso aconteceria no passado? São pessoas partindo avidamente para o consumo cultural e isso é bom de ver. Olha, eu posso ser utópico, mas deveríamos ter nesta cidade um plano voltado para o futuro. Um plano que fosse um consenso firmado numa determinada época, feito para atravessar algumas prefeituras, um projeto de longo prazo, intergeracional mesmo. Não seria um compromisso de governo, mas de Estado. Isso é o que precisaria ser feito, recuperando a grandeza do interesse público. Mas interesses econômicos muito fortes, como os do setor imobiliário, por exemplo, criariam dificuldades. O que vai acontecer quando se discutir o próximo Plano Diretor da cidade? Não sabemos. Que interesses vão prevalecer? Não sabemos. Apenas brincando, acho que precisaríamos de uma rainha para dizer "ninguém mexe mais nos meus jardins".

FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO

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