domingo, 7 de outubro de 2012

Aviso: ficou mais perigoso roubar


As decisões tomadas pelo Supremo no mensalão revelam que os julgamentos de corruptos devem ser mais duros daqui para a frente

Leandro Loyola

“Isso significa que o Brasil mudou.” À medida que o julgamento do mensalão avança, torna-se mais crível a frase dita pela ministra Cármen Lúcia no início de setembro, por ocasião do julgamento do deputado João Paulo Cunha - o primeiro político brasileiro condenado por corrupção no Supremo Tribunal Federal (STF). Na semana passada, a mais alta corte do país continuou a fazer história. Em mais uma demonstração de independência, o plenário apresentou, na segunda-feira, sua conclusão sobre uma das questões centrais do julgamento. Contrariando a versão apregoada pela propaganda do Partido dos Trabalhadores e pelos advogados de defesa, a corte afirmou que o mensalão foi, sim, um esquema por meio do qual o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva comprou apoio de parlamentares no Congresso - e não “apenas caixa dois” que também é crime. A sessão foi marcada pelo voto eloquente do ministro Celso de Mello, o decano do Tribunal. “O ato de corrupção constitui um gesto de perversão da ética do poder e da ordem jurídica, cuja observância se impõe a todos os cidadãos desta República”, disse Mello. “Quem transgride tais mandamentos, não importando sua posição estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou governados, expõe-se à severidade das leis penais, e, por tais atos, o corruptor e o corrupto devem ser punidos, exemplarmente, na forma da lei.” Ouvi-lo falar é mais um indício de que o Brasil talvez tenha mesmo mudado.

O alcance dessa mudança, no entanto, é uma questão que continua no ar. A atuação do STF no mensalão instaurará mesmo um novo padrão nos julgamentos dos casos de corrupção do país, como afirma a ministra Cármen Lúcia? Ou se trata de um “julgamento de exceção”, como diz o presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos - um caso solitário de lei aplicada com rigor, mas que não mudaria a cultura jurídica do país? Para tirar essa dúvida, é útil examinar, primeiro, o que mudou no entendimento do Supremo: por que, historicamente, era tão difícil punir corruptos no Brasil, e por que agora nesse caso específico eles são condenados aos baldes? E, em segundo lugar, é necessário verificar em que medida, e em que velocidade, as decisões do STF influenciam as demais cortes do país.

De acordo com juristas e investigadores, foram três as principais inovações do STF no julgamento do mensalão: as condenações por corrompido, não quem corrompe a punição aos que se valem de laranjas e o fim da necessidade da prova da contrapartida da corrupção, conhecida como “ato de ofício”. Sobre esse último item, ficou famosa a fala do ministro Luiz Fux, quando disse que um guarda de trânsito que recebe propina é criminoso, mesmo que não fique provado que aliviou a multa. Trata-se realmente de uma mudança cultural. O presidente Fernando Collor de Mello foi absolvido pelo Supremo em 1994 justamente pela ausência, segundo os juizes, do “ato de ofício”. Somadas, essas inovações aproximam os julgamentos dos casos de corrupção com o que acontece em países como Estados Unidos e Inglaterra, onde as punições são bem mais severas. E nos afastam dos processos “à brasileira”, onde ninguém era condenado.

Logo nos julgamentos dos primeiros réus do mensalão, os ministros concluíram que, em organizações criminosas sofisticadas, os chefes dificilmente sujam as mãos e deixam impressões digitais por aí. Em diversos países, como os Estados Unidos, indícios fortes de participação - em geral depoimentos - são suficientes para condenações por corrupção. “O Supremo despertou para um fato evidente: numa sofisticada dinâmica criminal, exigir o elemento livresco do ato de ofício é uma tolice”, afirma o procurador Alexandre Camanho, presidente da Associação dos Procuradores da República. Camanho ocupa um dos amplos gabinetes do “Brindeirão”, o prédio de formas arredondadas projetado por Oscar Niemeyer. Sentado numa confortável cadeira de madeira de espaldar alto, de calça jeans, camisa verde e sapatos pretos, Camanho exulta a nova postura do STF. “O Supremo está se reconciliando com a República. Suprimiu uma jurisprudência nefasta para o país. Era preciso que o bandido usasse a máscara dos Irmãos Metralha para ser visto como tal.”

O Supremo também deu um sinal ao condenar alguns réus por corrupção ativa. Em geral, os agentes corrompidos são processados, mas seus corruptores ficam fora (leia o quadro acima). “Ao enfatizar essa punição, o Supremo muda um paradigma”, diz o jurista Luiz Flávio Gomes. “A polícia e o Ministério Público podem ter mais apoio para denunciar os corruptores” O Supremo avançou também ao julgar alguns réus por lavagem de dinheiro. Esse crime passou a ser considerado independente da corrupção passiva - antes, os dois se fundiam. Além disso, os que se valem de laranjas passaram a ser condenados também, como ocorreu com os réus que enviaram terceiros para sacar dinheiro no Banco Rural e não escaparam da condenação. Até uma reforma recente na legislação, o Brasil era acusado de ser leniente com a lavagem de dinheiro, um crime repudiado internacionalmente por fortalecer o terrorismo. O jurista Joaquim Falcão, professor na Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, esteve recentemente com executivos de bancos e fundos de investimento estrangeiros. Colheu deles impressões positivas sobre o julgamento. “O grande efeito da decisão do STF é que os estrangeiros percebem que as instituições aqui funcionam” diz Falcão. “Isso indica um ambiente estável para os negócios, exatamente o que eles querem.”

Por se tratar da mais alta instância da Justiça, as mudanças expressas nos votos dos ministros poderão, sim, ter consequências para futuras decisões em casos de corrupção. O entendimento dos ministros será aplicado a outros casos no Supremo. Mas não só. Poderá influenciar desembargadores e juizes, responsáveis pelas instâncias inferiores. Mudará também o trabalho de promotores, procuradores e policiais responsáveis por investigações que envolvem corrupção.

Eis um exemplo de como isso funciona na prática. Sebastião Lessa é um delegado aposentado da Polícia Federal. Ele foi contratado pela Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal para acompanhar todas as sessões do julgamento e descrever os votos dos ministros sob a ótica dos interesses da Polícia Federal. O resultado será usado para um seminário, após o julgamento, em que os policiais discutirão a repercussão das decisões para seu trabalho. “O Supremo adotou posições de vanguarda”, afirma o delegado Marcos Leôncio Ribeiro, presidente da associação. A principal delas, segundo Ribeiro, foi ter reduzido as formalidades para aceitar provas no caso do mensalão. Isso diminui as brechas para chicanas jurídicas, como anulação de provas, capazes de atrasar julgamentos.

É preciso, no entanto, ter cuidado com visões ingênuas sobre mudanças rápidas. “Não podemos nos iludir que uma sentença vai mudar unia cultura”, afirma Luiz Flávio Gomes. Tudo o que o Supremo decidir sobre o mensalão levará tempo para fazer efeito. Mesmo dentro do STF, ainda há quem interprete as leis pelo estilo antigo, caso do ministro Ricardo Lewandowski. Em seu voto da semana passada, ele absolveu o ex-ministro José Dirceu por julgar que não havia provas suficientes. Mas, após anos de impunidade, gerada em parte pelos julgamentos de corrupção “à brasileira” é possível que em pouco tempo o espírito das palavras do ministro Celso de Mello predomine no Brasil: “Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o rigor das leis desta República”.

Fonte: Revista Época 

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