Em visita a Moscou, em 1952, Sinval Palmeira (1ª à esq.),
Graciliano Ramos (de braços cruzados) e Dalcídio Jurandir (à dir. de
Graciliano)
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Muitos me perguntam, já perdi a conta de quantas vezes respondi, mas não
conheci Graciliano. Vim ao mundo no começo do ano seguinte à sua morte,
primeiro nascimento na família após a partida do autor alagoano (1892-1953).
Dizem que foi grande a alegria, festejaram bastante a minha chegada.
Entusiasmo por pouco não transformado em tragédia; fardo dificílimo carregaria
para o resto de minha pobre vida se me batizassem como pretendiam.
No início, aventaram a possibilidade de me homenagear com o nome de
vovô, ou o contrário, nunca entendi bem a quem seria o tributo. O fato é que,
se tivesse vingado, este texto seria assinado por Graciliano Neto. Felizmente
minha mãe preferiu presentear o marido --nasci no dia do aniversário de meu pai
e virei Ricardo Filho.
Minha avó Heloísa Ramos, recém-viúva, afeiçoou-se demais a mim. Parentes
maldosos, versados em Freud, apressaram-se em diagnosticar tanto carinho como
transferência. Nunca me importei, até porque só fui precisar do psicanalista
austríaco bem mais tarde. Aproveitei ao máximo o convívio com vó Lozinha. O
velho Grace, embora avô desconhecido, acabou por tornar-se íntimo, pois vovó
falava nele o tempo todo.
Para mim, era um herói igual aos encontrados nos gibis. Tinha muito do
Fantasma, a cadela Baleia era o seu Capeto. Imaginava-o um Tarzan nordestino,
encontrava-o no Príncipe Valente e no Robbin Hood. Só imaginando-o em uma
Sherwood alagoana, aliando-se aos pobres contra os ricos, consegui entender por
que tinha sido preso. Da mesma forma que o Popeye não largava o cachimbo, meu
avô não desgrudava do cigarro: era assim que o via em todas as fotos.
Como acontece com a maioria das pessoas, cresci. E, ao entrar em contato
com a obra de Graciliano Ramos, mudei minha relação com ele. É claro que fiquei
impressionado. Como é que alguém podia assinar um texto sem assinar?
Seu jeito característico de arranjar palavras, tão pessoal na maneira de
dizê-las, permitia-me encontrá-lo com facilidade em qualquer página avulsa
escrita por ele, mesmo sem identificação.
De certa forma, aquele herói tão próximo afastou-se. O respeito
instalou-se e virou reverência. Embora tivesse muito carinho pelo primeiro, o
segundo transformou-se em exemplo importante, matéria de estudo, referência.
Ao olhar a foto presente na edição de "O Velho Graça", de
Dênis de Moraes, que está saindo pela Boitempo, vejo o escritor. Recupero
misturadas informações lidas e familiares. Ouço minha mãe referindo-se ao mau
humor dele nas vésperas de partir para o estrangeiro, provavelmente inseguro
ante perspectiva tão assustadora.
Lembro-me do início de "Viagem", onde ele conta que em abril
de 1952 embrenhou-se em uma aventura singular. Foi a Moscou e a outros lugares.
Para ele, homem sedentário, resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento
era indispensável, não deve ter sido fácil.
Sair de sua toca e entrar em um avião, aparelho assassino, atravessar o
oceano e conviver com pessoas diferentes, tendo a necessidade de entendê-las e
precisando de intérpretes, encontrar uma polícia que, em vez de levá-lo para a
cadeia, como lhe parecia natural, ajudava-o, todas essas experiências novas me
parecem marcadas em sua silhueta magra de braços cruzados.
Atento, curioso, divertindo-se com o discurso da menina de sobrancelhas
"lobatianas". Vejo no corpo frágil o esforço físico necessário para
estar ali. Talvez por eu conhecer seu destino --em menos de um ano, 20 de março
de 1953, estaria morto.
Imagino-o mergulhado em seu humor característico ácido, irônico,
inteligente, atento ao que ocorria a seu entorno e tirando suas conclusões. Não
encontro o cigarro em seus dedos e sei o quanto deve estar sentindo falta.
Um Dalcídio Jurandir empertigado à sua direita e o amigo Sinval
Palmeira, o primeiro à esquerda na foto, também não me parecem confortáveis. Ao
vê-lo nessa antiga fotografia em preto e branco, recupero o meu avô
desconhecido.
Com carinho e respeito.
Ricardo Ramos Filho, 58, é roteirista de cinema e escritor.
Fonte: Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Belo texto, de uma sensibilidade que chega a me fazer entrar no texto e resgatar uma época, resgatar um escritor que deixou nome gravado na história do nosso país.
ResponderExcluirGosto muito do que você escreve e acredito que trouxe esta singularidade nas veias.
Parabéns pela reverência ao 'avô desconhecido'- foi covardia do tempo que não poupa.
Abração e sucesso, sempre.