sábado, 17 de novembro de 2012

O Capibaribe de João Cabral de Melo Neto

Guilherme Freitas e Mariana Moreira  

Presença constante na obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), o rio Capibaribe aparece em sua poesia ora com a força de um marco da paisagem pernambucana, ora como símbolo da precariedade da vida no sertão. A coletânea “O rio” (Alfaguara), organizada pela filha do poeta, Inez Cabral, e prefaciada pelo escritor português António Lobo Antunes, reúne alguns dos principais poemas de João Cabral que tomam o Capibaribe como objeto, nos quais convivem a beleza de suas águas e a penúria trazida pela seca intermitente.


Para compor a obra, Inez buscou nos poemas elementos que mostrassem, sobretudo, a formação sertaneja do pai, durante a infância e a adolescência, entre as décadas de 1920 e 1940. A estreita relação entre o rio e poeta, conta Inez, foi selada durante este período, quando João Cabral ainda morava no bairro da Jaqueira, em Recife, e passava as tardes observando o movimento das águas.


— Meu avô me contava que o pai passava horas a fio observando o Capibaribe quando era criança. Ele chamava o rio de mestre e professor. O rio se tornou uma fonte de aprendizado. O Capibaribe era o cordão umbilical que o ligava ao sertão — lembra Inez.


Auto inédito sobre casas de farinha


A antologia — uma parceria exclusiva da Alfaguara com a Livraria Saraiva, comercializada somente nas lojas da rede — propõe um árido e afetivo passeio pelo Capibaribe. No poema “O cão sem plumas”, de 1950, por exemplo, o curso do rio é continuamente comparado a um animal: “O rio ora lembrava/ a língua mansa de um cão,/ ora o ventre triste de um cão,/ ora o outro rio/ de aquoso pano sujo/ dos olhos de um cão”. Já “O rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife”, de 1954, é narrado em primeira pessoa pelo rio que atravessa o sertão em direção à capital como uma promessa de fuga: “Gente de olho perdido/ olhando-me sempre passar/ como se eu fosse trem/ ou carro de viajar.”


A coletânea traz ainda o texto integral de sua obra mais popular, “Morte e vida severina”, de 1966, na qual o Capibaribe sinaliza a trilha incerta percorrida pelo retirante Severino em meio à seca: “Pensei que seguindo o rio/ eu jamais me perderia:/ ele é o caminho mais certo,/ de todos o melhor guia./ Mas como segui-lo agora/ que interrompeu a descida?”. Além da recém-lançada coletânea, a Alfaguara já prepara para o ano que vem a edição do inédito “Notas para uma possível casa de farinha”, título assinalado por João Cabral no manuscrito. O texto incompleto e escrito em forma de auto foi guardado por Inez, que também organiza a edição. A obra, conta ela, reflete o medo da modernização das antigas casas de farinha e as incertezas dos sertanejos no período de implantação da Sudene, na década de 1960. 

— Ele me deu o manuscrito no final da vida, quando já estava muito deprimido, quase cego. Ainda estou na fase de decifrar a letra dele para transcrever o texto — revela a filha do poeta, para quem a reedição e o inédito cumprem um papel fundamental no resgate e nas releituras contemporâneas de João Cabral. — Não quero que a obra do meu pai fique presa em bibliotecas eruditas ou em debates de universidades. Reeditar é fundamental para que a obra dele circule e permaneça viva.

Fonte: Prosa & Verso 

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