sábado, 1 de dezembro de 2012

A partir da trajetória de Irineu Marinho, obra mapeia mudanças no Rio

Livro da socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho traça paralelo entre a biografia do jornalista, fundador de ‘A Noite’ e O GLOBO, e as transformações da cidade e da imprensa no início do século XX
 
Por Paulo Cezar Guimarães*
 
Irineu Marinho — Imprensa e cidade, Maria Alice Rezende de Carvalho Memória Globo Livros/Memória Globo, 232 páginas. R$ 48
 
Dia 2 de maio de 1913. Dois repórteres pretendendo ridicularizar o chefe de polícia que, dias antes, declarara à imprensa que o jogo permaneceria liberado até que o governo resolvesse o contrário, concebem um estratagema. Ao meio-dia, instalam uma roleta no Largo da Carioca, a metros da redação do jornal, e fixam um cartaz com os seguintes dizeres: “Jogo franco! Roleta com 32 números — só ganha o freguês!”. Na edição do jornal daquela tarde, os repórteres narram o ocorrido. A matéria se encerra com uma ameaça: “E cá está (na redação de ‘A Noite’) a roleta para uma nova ‘fezinha’, se o Sr. Dr. Chefe de polícia continuar a fazer declarações tão patetas”.
Dia 29 de outubro de 1916. Sob o título “O conflito do Palace Club”, o mesmo jornal noticia que brigas motivadas pelo jogo, algumas vezes sangrentas, ocorriam diariamente nos clubes “chiques” da capital federal, sem que a polícia tomasse as devidas providências. No dia seguinte, o chefe de polícia envia um ofício à imprensa, no qual ordena ao delegado do distrito que lavre auto de apreensão de todos os concernentes à prática do jogo. Ao final do texto, se encontra uma estranha recomendação: “Antes, porém, de se lhe oficiar, comunique-se lhe esta minha recomendação pelo telefone oficial”.
 
A essas duas reportagens, publicadas em “A Noite”, que mostravam claramente a profunda relação entre Irineu Marinho, fundador do jornal, e a cidade do Rio de Janeiro, é atribuída a inspiração de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, para compor aquele que é apontado como o primeiro samba a ser gravado no Brasil: “Pelo telefone”, cuja letra diz “O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. A letra é atribuída ao jornalista Mauro de Almeida, mas há uma versão entre os pesquisadores de que foi uma criação coletiva que contou ainda com a participação do compositor Sinhô, da baiana Tia Ciata e de Hilário Jovino e mestre Germano.
 
Obra documental e histórias célebres

Essas e outras histórias são contadas em “Irineu Marinho — Imprensa e cidade”, da socióloga, professora e pesquisadora Maria Alice Rezende de Carvalho, que mergulhou por dois anos em acervos da família e de coleções de jornais, correspondências, registros da vida civil e iconográficos. Irineu, que ainda tem seu nome em destaque no logo do GLOBO — jornal que fundou em 1925 — e dá nome à rua onde fica o prédio do jornal, é retratado como um excelente repórter, querido e admirado pelos chefes e colegas; e temido pelas autoridades da época. 

O livro, documentado com fotos de Irineu e da família; de companheiros de trabalho e do Rio antigo; e de reproduções de jornais e cartas, narra a trajetória do filho de um imigrante português que batalhou muito em busca de oportunidades e soube aproveitá-las. A exemplo do filho Roberto, que consolidou O GLOBO, Irineu Marinho tinha uma paixão pela comunicação “de maneira integral e abrangente”. Maria Alice destaca que, além de criar os jornais "A Noite" e O GLOBO, Irineu diversificou seus negócios. Foi dono de uma produtora cinematográfica e abriu uma editora de livros e revistas. Fora a participação em entidades filantrópicas, associações civis e organizações profissionais. O que é motivo de orgulho para seus netos, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto, que comentam na apresentação do livro: “Para nós é surpreendente e gratificante confirmar em dados históricos que o que somos hoje, como um conglomerado de mídia, e os princípios que sustentamos já estavam presentes lá atrás, como semente, em Irineu Marinho”.

A autora destaca ainda, como observado no prefácio assinado pelo acadêmico José Murilo de Carvalho, que Irineu Marinho “não conseguiu manter-se alheio à política”. “‘A Noite’ já nasceu crítica do governo Hermes da Fonseca, o que rendeu uma viagem forçada a seu dono e família em 1914 e represálias contra o jornal. Em 1922, agora sob suspeita de simpatia pelos tenentes revoltosos, Irineu Marinho foi preso e, já no governo de Artur Bernardes, compelido a uma viagem à Europa que visava tanto tratar da saúde como fugir às ameaças do estado de sítio que vigorou no país por boa parte daquele governo”, ressalta Carvalho.
 
As histórias do Irineu jornalista, que começou a carreira como suplente de revisor aos 15 anos, até chegar a dono de jornal também vão seduzir os leitores, especialmente repórteres, estudantes de jornalismo e amantes da profissão em geral. O modo de elaboração das notícias e a utilização de recursos dramatúrgicos por “A Noite”, considerados à época uma “revolução”, eram singulares.
 
Reportagens como “A comédia do casamento”, em que um repórter se disfarçou para denunciar irregularidades no âmbito dos cartórios, envolvendo escrivães e oficiais dos registros; “Como é fácil roubar”, em que dois repórteres denunciaram a fragilidade do sistema de proteção às obras de arte, aos livros e aos objetos históricos de museus e bibliotecas da capital federal, simulando alguns furtos; e a célebre “A sensacional história de um faquir”, que pretendeu denunciar o charlatanismo, as ciências ocultas, os quiromantes e outros tipos de adivinhos que, de acordo com o jornal, “colonizavam a imaginação de todas as classes sociais no Rio de Janeiro” são exemplos típicos do chamado jornalismo investigativo tão badalado hoje em dia.

 “(...) Um mês antes da publicação da matéria (...) foi preparado o cenário em que ela teria vigência. Primeiro, a equipe do jornal alugou uma casa (...) para servir de consultório ao faquir hindu Djogui Harad, ‘interpretado’ pelo repórter Eustáquio Alves. Durante um mês, o faquir terá atendido 385 clientes”, conta a autora no livro, lembrando ainda que o “faquir” fez conferências no Rio de Janeiro, em Juiz de Fora, Belo Horizonte e Friburgo sobre os exploradores da credulidade dos brasileiros.
 
Como tudo no Brasil acaba em samba, no carnaval daquele ano a história foi rememorada e o próprio “faquir” desfilou no bloco Tenentes do Diabo. O “episódio do faquir”, lembra Maria Alice, “deixou uma marca forte” na relação que “A Noite” manteve com a cidade.
 
Quando se ausentou do país com a família no final de 1924 para fugir das perseguições políticas e cuidar da saúde, Irineu Marinho acabou perdendo o comando do jornal. A autora relembra: “Antes, então, de embarcar, realizou uma transação com Geraldo Rocha (credor de Irineu e acionista de ‘A Noite’), de que não se tem completa informação. Das duas uma: ou, segundo a versão mais aceita, lhe vendeu o controle acionário de ‘A Noite’, sob a promessa de que, na volta, poderia recuperá-lo, ou lhe extraiu um empréstimo, deixando como garantia as suas ações do jornal, igualmente condicionadas a uma retrovenda. De qualquer modo, Irineu Marinho viajara destituído da condição de acionista majoritário de ‘A Noite’”.
 
Irineu resolve então voltar para o Brasil e deixa “A Noite”. Alguns meses depois, em julho de1925, dá a volta por cima e funda O GLOBO, que não chegou a dirigir: morreu poucos dias depois da inauguração do jornal, aos 49 anos de idade. O destino da nova empreitada recairia sobre o filho mais velho, Roberto Marinho. Mas aí já é outra história.
 
Paulo Cezar Guimarães é jornalista, professor de jornalismo da Facha e autor do livro “Edição de impressos”
 
Fonte: Prosa & Verso / O Globo

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