sábado, 15 de dezembro de 2012

Gravações revelam como a quadrilha de Rose tentou tumultuar o julgamento do mensalão

Documentos exclusivos mostram como turma de Rosemary Noronha e dos irmãos Vieira tentou influenciar juízes e atenuar as penas dos mensaleiros

Diego Escosteguy, Marcelo Rocha, Murilo Ramos, Flávia Tavares e Leandro Loyola

Às 9h47 do dia 12 de novembro deste ano, a chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, ou Rose, ligou para Paulo Vieira, diretor da Agência Nacional de Águas, espécie de operador jurídico da quadrilha descoberta pela Polícia Federal na Operação Porto Seguro. No telefonema de 11 minutos, interceptado pela PF e a que ÉPOCA teve acesso, os dois não discutem como vender facilidades a empresários interessados em canetadas do governo – nem a distribuição do butim da quadrilha, conforme já se revelou. Ambos discutem o julgamento do mensalão. Naquele dia, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como já se esperava, viriam a definir as penas dos principais integrantes do núcleo político do mensalão: os petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares. Na conversa, Paulo Vieira pede a Rose que consiga o apoio de Dirceu para as articulações secretas que ele, Paulo, fazia em Brasília. Elas tinham um objetivo claro: tumultuar o julgamento. Ou, ao menos, impedir que os mensaleiros cumprissem suas penas.

“Eu vou protocolar amanhã ou quarta aquela outra questão que eu queria que você mostrasse para o JD (José Dirceu). Você lembra qual é, né?”, diz Paulo Vieira no diálogo. Embora ele não tenha especificado a que “questão” se referia, naquele momento integrantes da quadrilha dos pareceres – Paulo Vieira, o deputado Valdemar Costa Neto, condenado pelo mensalão, e o empresário e ex-senador Gilberto Miranda – movimentavam-se nos bastidores para pressionar os ministros do Supremo a mudar votos, aliviar nas penas ou acatar futuros recursos dos advogados dos réus. Queriam até nomear um amigo para o STF, na vaga aberta pela aposentadoria do ministro Carlos Ayres Britto. Contavam com a proximidade de Rose com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com Dirceu, como demonstram as provas reunidas pela PF. Os delegados miravam na quadrilha dos pareceres. Acabaram acertando numa operação para melar o julgamento do mensalão.

Na conversa, Rose sabia do que Paulo falava. Mas Paulo estava preocupado com a disposição de Dirceu em articular ao lado da quadrilha: “Não sei se o JD está com cabeça para mexer com essas coisas”. Rose o tranquiliza: “Eu vou viajar com ele (Dirceu) no feriado. Nós vamos para a Bahia. Eu converso bastante com ele. (…) Ele não pode ficar preso dentro de casa, né. A vida corre. Eu falo com ele. Eu tive com ele no feriado, eu falo com ele”. Paulo pergunta, então, como está o ânimo de Dirceu. Rose diz: “Está bastante chateado. Estão preparando umas coisas. (…) É o Gilberto Miranda que está ajudando ele. Estão fazendo várias reuniões na casa dele”. Paulo conhecia essas articulações – participava delas. “Isso eu tenho mais ou menos ideia do que eles estão falando”, diz ele. Ato contínuo, Rose conta como ficou sabendo das articulações: “Ele (Dirceu) me disse… A mulher dele (de Dirceu, Evanise Santos) disse que eles têm reunião lá na casa dele (Gilberto Miranda)”. Paulo diz: “O Gilberto Miranda é muito bem (sic) para articular, viu. (…) Eu não sabia que eles estavam apostando tantas fichas dessa questão, tá”. “Parece que tão”, diz Rose.

Paulo sonda Rose sobre a eventual participação de Lula nas operações de bastidores para melar o julgamento. De acordo com a PF, quando ambos falam de “Deus”, é a Lula que se referem. Segue-se o diálogo:

– Eu não sabia que o JD (Dirceu) tava dando esse peso todo para o Giba (Gilberto Miranda), não. Mas eu continuo apostando que o melhor peso que tem é o… Deus, viu – diz Paulo.

– É, mas ele não vai fazer absolutamente nada – responde Rose.

– Você está achando que Deus não está a fim de…

– Não! Eu acho que não está a fim, não.

– É! Às vezes ele tem medo de arrumar confusão, né, Rose?

Antes que Rose explicasse a que problemas se referia, Paulo a interrompe. Diz que eles não podem “falar essas coisas por telefone”. Paulo, porém, não seguia o próprio conselho. Muito menos os demais integrantes da turma conhecida como quadrilha dos pareceres – uma turma que, agora se descobre, era bem mais influente do que se imaginava. ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, ao relatório que a PF preparou sobre todas as autoridades que conversavam com integrantes da quadrilha ou eram por eles citadas – aqueles que fazem jus a foro privilegiado na Justiça. No documento de 98 páginas, há um capítulo para cada uma das 18 autoridades. Cada capítulo descreve em detalhes as circunstâncias em que elas aparecem nas investigações. Estar no relatório, é bom deixar claro, não significa integrar a quadrilha; nem é prova de algum crime – embora, em alguns casos, como de Valdemar Costa Neto, as evidências sejam fortes. Como essas autoridades têm o privilégio de ser investigadas e, eventualmente, julgadas nos tribunais de Brasília, os delegados da PF enviaram o relatório, na quarta-feira da semana passada, ao presidente do STF, Joaquim Barbosa, e ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Caberá aos dois avaliar se há elementos suficientes para iniciar uma investigação.

Há integrantes das cúpulas dos Três Poderes no relatório. Isso demonstra o trânsito privilegiado da quadrilha em Brasília. Há ministros do governo Dilma, como Luís Inácio Adams, da Advocacia-Geral da União, coração do esquema na capital (leia o quadro abaixo). Há ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do STF, como Dias Toffoli, antecessor de Adams na AGU. Há seis deputados federais, entre eles Valdemar Costa Neto, além do presidente do Senado, José Sarney. Há, finalmente, prefeitos, como Gilberto Kassab, de São Paulo – ele pede a Gilberto Miranda, segundo a PF, ajuda para uma indicação ao STJ. O relatório traz, em suma, um catálogo do poder. Quanto mais se aproxima do poder, mais revela a trama para salvar os mensaleiros.

Os telefonemas e e-mails captados pela PF demonstram que a quadrilha se preocupava com os rumos do julgamento antes mesmo que ele começasse. No dia 10 de junho de 2012, às 17 horas, os irmãos Paulo e Rubens Vieira, ambos indiciados pela Polícia Federal e denunciados pelo Ministério Público, conversaram por 12 minutos sobre o mensalão. Quatro dias antes, o Supremo definira o cronograma do julgamento. Os dois tentavam antever a posição de alguns ministros no julgamento previsto para iniciar-se em agosto. Falaram sobre as expectativas de que fossem definidas penas mínimas. Paulo diz que seria interessante a transmissão das sessões. “Sabe por quê? Os ministros vão explodir de vaidade, moço. Se um ministro explodir de vaidade, vai brigar um com outro”, diz ele. Rubens concordou: “Vai, vai”. Paulo afirmou: “O ideal é isso aí, porque todo mundo já sabe que o julgamento é político e que eles não vão sair de lá ilesos. Então, o negócio agora é tumultuar o processo”.

Duas horas depois, Paulo ligou para Rose. Ela contou que almoçara com Dirceu no feriado de Corpus Christi (7 de junho). Segundo ela, Dirceu fizera uma previsão de ser condenado a quatro anos de prisão. “Ele (Dirceu) está mais aliviado que marcou. Agora, tem uma conversa que foi à revelia, sem o cara saber, que o Toffoli não sabia, tava inclusive voando para São Paulo e a Ivanise (Evanise Santos, a mulher de Dirceu) viu ele no avião, no horário da reunião”, diz Rose. Trata-se da reunião administrativa entre os ministros do STF, em que se definiu que o julgamento aconteceria no segundo semestre. Apesar da narrativa de Rose, Toffoli fora avisado da reunião pelo então presidente da corte, ministro Carlos Ayres Britto. Não compareceu.

As primeiras semanas do julgamento, entre agosto e setembro, mostraram quão equivocada era a relativa confiança da quadrilha de que Dirceu e Valdemar se safariam. Naquele momento, as condenações sucediam-se diariamente. Estava evidente que os principais réus, aqueles de quem Paulo e seus comparsas dependiam politicamente, seriam condenados. Paulo resolveu, então, “cuidar da parte política”. O primeiro alvo, segundo as gravações, foi o ministro Dias Toffoli. Na noite de 27 de setembro, a PF interceptou um e-mail entre carla.margarida@bol.com.br e guatapara.sp@bol.com.br. Os dois endereços eletrônicos eram usados por Paulo para se comunicar com diferentes advogados próximos à quadrilha. A PF não conseguiu identificar a quem Paulo se dirigiu ao escrever o e-mail. Na mensagem – Assunto: “Urgente”–, discutiu-se o julgamento do mensalão e o caso de Valdemar. De acordo com o texto, Valdemar, já condenado pelo crimes de lavagem e corrupção passiva, precisaria de quatro votos favoráveis na acusação de formação de quadrilha. Isso abriria espaço para recurso. “Gostaria de conseguir o voto do ministro Toffoli, pois assim conseguimos completar, pois o Marco Aurélio irá votar a favor dele”, diz o texto. Toffoli seria o primeiro a votar na sessão seguinte. O e-mail se encerra com um apelo: “É uma questão de vida ou morte, minha irmã (…) Fale que ele já ajudou muito um familiar seu, que você ama muito”. Não se sabe se o e-mail foi endereçado a uma advogada ou a Rose.

O voto de Toffoli, naquele momento, não era óbvio. Lewandowski, com quem Toffoli sempre votava, condenara Valdemar nesse crime. Toffoli votou por sua absolvição do crime de formação de quadrilha. Fez o mesmo em relação aos demais réus do núcleo político. Valdemar, ao fim, pegou sete anos e dez meses de pena – condenação que o livra, por pouco, da cadeia. Não há evidência no relatório de que o “trabalho político” de Paulo tenha tido qualquer influência na decisão de Toffoli. Caberá a Gurgel decidir se é o caso de investigar o assunto. Procurado por ÉPOCA, Toffoli afirmou que não tem conhecimento dos diálogos da Operação Porto Seguro e que não tem “relacionamento” com Paulo Vieira. Ele afirmou que “conhece Rosemary Nóvoa de Noronha e Evanise Santos, sendo que ambas trabalharam na Presidência da República”, onde Toffoli também trabalhou no primeiro mandato de Lula. Quanto às menções ao julgamento do mensalão, Toffoli afirmou que recebeu os advogados de defesa dos réus para entrega de memoriais, incluindo o advogado Marcelo Bessa, defensor de Valdemar. “Tal fato é da rotina do julgamento de qualquer processo”, disse. No início de novembro, quando os ministros terminavam de definir as penas dos réus já condenados, a quadrilha entrou em pânico. E bolou novas formas de livrar os mensaleiros. Paulo e Valdemar, que trocaram ao menos 38 telefonemas e se encontraram múltiplas vezes no curso do julgamento, eram os mais preocupados. É nesse momento que foi acionado o empresário Gilberto Miranda. Segundo a PF, ele patrocinava as propinas do grupo e usava a influência que detinha junto aos senadores do PMDB para fazer negócios no governo – e tentar ajudar os mensaleiros.

No dia 1º de novembro, Miranda entrou em ação. Receberia Sarney para um jantar em sua casa, de modo, segundo Miranda, a conversar sobre a defesa dos mensaleiros – e, segundo Paulo, a “segurar” o julgamento. No final da tarde, Sarney ligou para Miranda e confirmou presença no jantar. Naqueles dias, Miranda trabalhava para que o jurista Saulo Ramos apresentasse recursos no processo do mensalão. A atuação de Ramos, segundo Miranda, poderia “segurar em três anos” a execução da pena de Valdemar.
Por meio de sua assessoria, o senador José Sarney afirmou que não conversou com Valdemar Costa Neto nem atuou para que o amigo Saulo Ramos entrasse em sua defesa. “O jantar foi rotineiro encontro social entre amigos. Saulo e Gilberto são amigos de muitos anos do presidente Sarney. Vez por outra jantam juntos. O presidente Sarney não faz gestões para que Saulo Ramos atue em defesa de ninguém.” Valdemar diz que conversou com Sarney sobre a contratação de Ramos – mas que, até agora, nada prosperou. Ramos não confirma ter ido a um jantar com Sarney e Miranda, embora admita ser “íntimo” de ambos.

Nos momentos finais do julgamento, a quadrilha tornou-se agressiva nos comentários – e nas ofensivas aos ministros. Num diálogo de 4 de novembro, Miranda afirma, sobre os ministros Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa: “Lewandowski é muito fraco, é uma porcaria, ficou atabalhoado, e aquele ‘crioulo’ (sic) ficou citando página tal, página tal, que não tem nada a ver”.

No dia 22 de novembro, pouco antes de a Operação Porto Seguro ser deflagrada, os diálogos revelam a tentativa da quadrilha de influenciar o voto de Lewandowski sobre Valdemar. Paulo Vieira chama essa tentativa de “missão São Bernardo”, referência à região de origem de Lewandowski e às boas relações entre as famílias dele e de Luiz Marinho, atual prefeito da cidade paulista. Nos telefonemas, Paulo orienta Valdemar a pedir ajuda a Marinho e diz como ele deveria conversar com Marinho: “É que o senhor precisa de uma força. Ele (Marinho)…com uma palavra resolve isso aí. As famílias são próximas, entendeu?”. Quatro dias depois, Lewandowski daria seu voto em relação à aplicação da pena a Valdemar, já condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Quase três horas depois dessa conversa, Valdemar liga para Paulo Vieira, a fim de contar como foi a reunião com Luiz Marinho. Diz que ele (Marinho) já havia entrado em contato com o cara (Lewandowski). “Já mandou levar...porque não dá tempo, né, Paulo? É segunda-feira”, afirma Valdemar. “Já mandou levar o memorial lá, já falou com o cara, que trabalha..que o cara nomeou um lá. Ele mandou por torpedo. Aí o cara eu já mandei, falei que vai o Fabeti. Eu liguei pra Fabeti pra levar o material na mão dele (…) Você tinha razão.”

A PF grafou equivocadamente o nome do advogado Rafael Favetti, que integra a equipe jurídica de defesa de Valdemar no processo do mensalão. Procurado por ÉPOCA, Favetti afirma ter sido orientado por Valdemar a procurar o ministro Lewandowski no dia seguinte. “Entreguei o memorial a um assessor do ministro Lewandowski. Mas entreguei o memorial a outros ministros também”, disse Favetti. Lewandowski nega ter sido procurado por Marinho, embora o conheça. “Fui rigoroso no julgamento com o deputado Valdemar. Se havia alguma articulação, o tiro saiu pela culatra”, afirmou. Lewandowski condenou Valdemar a sete anos e dez meses pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Foi seguido pela maioria dos ministros. Apesar da clareza dos diálogos, Valdemar e Marinho negam ter conversado sobre o mensalão no encontro.

A ousadia dos mensaleiros também veio a público na terça-feira da semana passada, quando o jornal O Estado de S. Paulo publicou detalhes do depoimento que o operador do esquema, Marcos Valério, deu à Procuradoria-Geral da República (PGR) no dia 24 de setembro. Nele, Valério incrimina o ex-presidente Lula. Diz, entre outras coisas, que Lula deu um “ok” para a liberação do dinheiro do mensalão – e que pagou suas despesas pessoais. Lula e os demais envolvidos negaram com veemência as acusações de Valério.

Nos últimos dois meses, ÉPOCA investigou, com seis pessoas próximas ao caso e a Valério, os bastidores desse movimento desesperado. Valério decidiu entregar à PGR o que dizia saber sobre Lula não para tentar diminuir sua pena no mensalão, mas nos demais processos que ainda enfrenta por causa do esquema. E também, ao menos na avaliação de Gurgel, para tumultuar o andamento do julgamento do mensalão. Há três semanas, Valério prestou novo depoimento ao MP, contando mais detalhes e apresentando mais provas do que disse. Gurgel, porém, ainda acha inconsistentes tanto a versão narrada por Valério quanto as (poucas) provas apresentadas até agora por ele. A cautela de Gurgel, aparentemente, tem razão de ser. A dois amigos, Valério disse que não entregou tudo o que tem ao MP. “Eu morro se fizer isso”, disse a eles. Valério também disse a Gurgel que morreria se contasse tudo. “Acho que ele quer apenas tumultuar o julgamento”, disse Gurgel a colegas. Não é o único.

Fonte: Revista Época

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