Mesmo sem a chamada “prova cabal”, o STF considerou o então deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB-PA) culpado de compra de votos e formação de quadrilha, entre outros crimes. O julgamento ocorreu em setembro do ano passado.
Precedente contra Dirceu
Caso do ex-ministro da Casa Civil guarda semelhanças com ação julgada no STF que culminou na condenação de deputado federal, apesar de existir apenas evidências indiretas do crime
Ana Maria Campos
O Supremo Tribunal Federal (STF) já condenou um político acusado de um crime sem que houvesse prova cabal da ocorrência. Levou em conta apenas evidências indiretas e a Teoria do Domínio do Fato invocada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no processo do mensalão para apontar a responsabilidade do ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu. Foi o que ocorreu em setembro do ano passado quando o plenário, por maioria, considerou culpado de compra de votos, formação de quadrilha, estelionato e esterilização irregular o deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB-PA). O parlamentar acabou condenado porque seria o beneficiário de um esquema pelo qual 13 mulheres haviam sido recrutadas para fazer cirurgias gratuitas de laqueadura.
Bentes concorreu a prefeito de Marabá (PA), em 2004, e os crimes envolveram pessoas de sua relação próxima: a mulher, a enteada, o genro e um amigo. Na condição de candidato, ele seria beneficiado eleitoralmente por ter proporcionado o benefício. O deputado terá de pagar apenas pelo crime de esterilização irregular, uma vez que as mulheres fizeram a cirurgia num hospital não credenciado e sem atender às regras legais.
Por esse crime, Bentes foi condenado a três anos, um mês e 10 dias de prisão em regime aberto, além de multa de um salário mínimo. As demais acabaram suspensas porque o STF reconheceu a prescrição. A defesa do parlamentar alegou justamente o que os advogados têm sustentado no processo do mensalão: não há provas diretas de participação nos crimes descritos pelo Ministério Público. Para o procurador-geral, não houve como colher provas da participação de Dirceu porque, como suposto mentor dos crimes, ele organizava as ações "entre quatro paredes", mas não deixou digitais ou rastros.
Vencido
Asdrúbal Bentes não é médico, não acompanhou as cirurgias e os depoimentos das vítimas não atestavam a participação dele no episódio. O STF, no entanto, considerou que, em algumas situações, não há como obter evidências relacionadas diretamente aos réus, o que não significa falta de vínculo e participação nos ilícitos. Foi essa a conclusão do relator do processo, o ministro Dias Toffoli: "Ainda que não haja comprovação de que o réu tenha feito pessoalmente qualquer oferta às eleitoras e que, sob o crivo do contraditório, nenhuma das testemunhas tenha afirmado haver sido pessoalmente abordada pelo denunciado na oferta para a realização de cirurgias de esterilização, o conjunto de depoimentos coligidos aponta nesse sentido, indicando que o réu foi o principal articulador desse estratagema".
Toffoli teve a concordância do revisor, Luiz Fux, seguidos pelos ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cezar Peluso. O ministro Marco Aurélio Mello foi a única voz dissonante. Ele votou contra a condenação de Asdrúbal Bentes, deputado no sexto mandato, mas pouco conhecido fora do Pará. O argumento de Marco Aurélio foi justamente o de que não havia provas diretas que envolvessem o parlamentar no crime de esterilização ilegal, previsto no artigo 15 da Lei nº 9.263/96. Além do aliciamento de mulheres, o deputado foi responsabilizado por estelionato, uma vez que os médicos responsáveis pelas laqueaduras realizaram as cirurgias em hospital não credenciado e as lançaram como outro tipo de procedimento para efeito de ressarcimento do Sistema Único de Saúde.
Marco Aurélio discordou: "Será que é possível assentar que tinha conhecimento de que o hospital, para lograr o reembolso, utilizava uma fraude por não ser credenciado para a intervenção cirúrgica? Não o é, a não ser que se presuma a prática criminosa, que deve ser demonstrada de forma cabal". Na sustentação oral, como no processo do mensalão relacionado a Dirceu, Gurgel disse que os crimes foram dissimulados e por esse motivo torna-se impossível colher prova direta de sua autoria.
Gurgel, então, sustentou a Teoria do Domínio do Fato, segundo a qual é autor do crime quem tem o poder de decisão sobre o fato. Assim o deputado seria o chefe da quadrilha que contava com pessoas próximas. Segundo o procurador-geral da República, a certeza da autoria deve ser extraída do contexto probatório e da análise conjunta de todas as provas colhidas. Para Toffoli, não é possível que Asdrúbal Bentes não soubesse o que ocorria. E ressaltou: "Não se pode admitir que o denunciado desconhecesse tal realidade, até porque, se efetiva concorrência não houvesse, certamente, logo que viesse a tomar conhecimento desses fatos, teria condições de determinar a imediata cessação dessas condutas".
O que foi dito
Confira trechos da discussão do caso do deputado Asdrúbal Bentes (foto), no Supremo
"O delito de corrupção via de regra permite que seus autores, mercê da falta de suficiente lastro probatório, escapem pelos desvãos, em manifesta apologia ao fantasma da impunidade, e com sério e grave comprometimento do processo eleitoral. Bem por isso, vem se entendendo que indícios e presunções, analisados à luz do princípio do livre convencimento, quando fortes, seguros, indutivos e não contrariados por contraindícios ou por prova direta, podem autorizar o juízo de culpa do agente"
Trecho da decisão que condenou o deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB-PA) por corrupção eleitoral, esterilização cirúrgica irregular, estelionato e formação de quadrilha
"Ainda que não haja comprovação de que o réu tenha feito pessoalmente qualquer oferta às eleitoras e que, sob o crivo do contraditório, nenhuma das testemunhas tenha afirmado haver sido pessoalmente abordada pelo denunciado na oferta para a realização de cirurgias de esterilização, o conjunto de depoimentos coligidos aponta nesse sentido, indicando que o réu foi o principal articulador desse estratagema, visando à captação ilegal de votos em seu favor no pleito que se avizinhava, no qual pretendia, como de fato ocorreu, concorrer ao cargo de prefeito municipal"
Ministro Dias Toffoli, relator da ação penal
"Será que é possível assentar que tinha conhecimento de que o hospital, para lograr o reembolso, utilizava uma fraude por não ser credenciado para a intervenção cirúrgica? Não o é, a não ser que se presuma a prática criminosa, que deve ser demonstrada de forma cabal"
Ministro Marco Aurélio Mello, vencido no julgamento ao absolver o deputado por considerar que contra ele não havia prova direta
Data vênia
Teoria do domínio do fato
É uma análise da responsabilidade quando não há uma prova direta relacionada ao mentor do crime. Trata do autor intelectual que dá os meios para a concretização do ilícito, controla a ação, sem praticar nenhuma atividade diretamente. Para que tal conduta seja analisada, é necessário avaliar um conjunto de indícios que apontam a autoridade do réu sobre quem pratica as ações criminosas e os benefícios obtidos com o crime.
Ato de ofício
É um ato praticado por funcionário público dentro de suas atribuições que, em geral, provoca algum efeito. Por exemplo, uma multa aplicada por um guarda de trânsito; a liberação de recursos ou assinatura de um contrato por parte de um gestor; a liberação de um alvará de funcionamento pelo administrador. Se a prática ou omissão desse ato for motivada por algum interesse escuso, em troca de vantagem, é caracterizado o crime de corrupção.
Dosimetria da pena
É o cálculo das penas a serem aplicadas em caso de condenação. Leva em conta os prazos mínimos e máximos estabelecidos para cada crime no Código Penal e as circunstâncias do fato, além do grau de culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente e as consequências do crime.
Concurso material
Ocorre quando uma pessoa é condenada a mais de um crime, idênticos ou não. Essas condutas provocam mais de um resultado. Nesse caso, as penas aplicadas são somadas. Na denúncia do mensalão, a Procuradoria Geral da República pediu que o processo seja analisado sob essa ótica, de forma que cada situação seja considerada isoladamente. As penas deverão ser somadas. Exemplo: Marcos Valério foi denunciado por 65 ações de lavagem de dinheiro. Em caso de condenação na pena mínima, de três anos, a conta final seria de 195 anos.
Crime continuado
Ocorre quando uma pessoa, por meio de uma ação, pratica dois ou mais crimes relacionados, sendo que um é a continuação do outro. Nesse caso, aplica-se a pena de um dos crimes, se forem iguais, ou a do mais grave, com aumento de um sexto a dois terços. Levando-se em conta o exemplo de Marcos Valério com a imputação de 65 atos de lavagem de dinheiro: com pena mínima, o resultado final seria 3 anos e seis meses. É o que esperam os advogados de defesa no processo do mensalão.
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE