sábado, 26 de janeiro de 2013

A democracia e a luta pela alma da América Latina - Michael Reid

A popularidade de Chávez tem se mantido graças aos recursos do petróleo e uma eficaz teatralidade política, mas não há dúvida de que o chavismo está na defensiva

Quando visitou a sede da "The Economist" em Londres, em 2001, Hugo Chávez entregou uma cópia de um pequeno livro azul que continha o texto da Constituição da Venezuela. Naquele tempo, ele estava muito orgulhoso da Constituição e dizia que ela era "a melhor" e "a mais democrática" do mundo. Mas logo passou a considerá-la incômoda. Em 2009, na segunda tentativa, ele venceu um referendo que abolia os limites do mandato fixados pela Carta. Infringiu reiteradamente suas cláusulas de liberdade de expressão e respeito à propriedade. Começou a se referir à Constituição como "La Bicha", no sentido de um inseto potencialmente peçonhento.

Não surpreende, portanto, que, com Chávez doente demais para tomar posse em seu terceiro mandato de seis anos, segundo os termos da Constituição de 1999, seu regime tenha ignorado o artigo 231 da Carta, que determina que o candidato eleito "tomará posesión del cargo de presidente de la Republica el diez de enero del primer año de su período constitucional, mediante juramento ante la Asamblea Nacional", ou, se isso não for possível, perante o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ). Como ele não fez nem uma coisa nem outra, o que deveria ter ocorrido, no mínimo, seria a nomeação, pelo TSJ, de uma junta médica para examinar seu estado clínico, para determinar a existência ou não de "incapacidade fisica e permanente".

Parece pouco provável que Chávez algum dia se recupere o suficiente para retomar seu cargo de presidente da Venezuela. Mas, mesmo se o fizer, não há dúvida de que o chavismo está na defensiva. A liderança cubana está empreendendo uma ação reacionária desesperada para manter o chavismo unido e no poder sob a liderança de Nicolás Maduro, o vice-presidente (embora tecnicamente seu mandato tenha se encerrado em 10 de janeiro), que se tornou o presidente interino apenas nominalmente. Para Raúl Castro, não poderia haver mais em jogo: sem os 100 mil barris ao dia de petróleo da Venezuela virtualmente grátis, ele teria de optar por um tipo de terapia de choque, e agilizar a transição para o capitalismo, que poria em xeque o controle do Partido Comunista Cubano.

Para a democracia latino-americana, o declínio do chavismo é uma boa notícia. Sempre houve tensão no cerne do domínio de Chávez: por um lado, ele é um militar que diz estar comandando uma revolução, a exemplo de seu amigo e mentor Fidel Castro. Mas Chávez, ao contrário de Fidel, sempre extraiu sua legitimidade das urnas e da Constituição. O resultado foi uma autocracia eletiva, um regime híbrido que mantém as eleições e as formas aparentes de democracia, mas as despojou de boa parte de sua substância.

Em algumas ocasiões, durante os últimos dez anos, o modelo chavista de autocracia eletiva pareceu representar um poderoso desafio à democracia na América Latina. Quando digo democracia, quero dizer democracia liberal, representativa. Apesar de seus defeitos, a democracia representativa é o único tipo de democracia viável nas modernas sociedades de massa. Chávez dizia praticar a "democracia participativa", por meio de referendos, conselhos comunitários e uma milícia popular. Mas, como observou John Stuart Mill em 1861, "uma vez que é impossível, numa comunidade maior que uma única cidade de pequeno porte, que todos participem pessoalmente, a não ser de algumas partes muito pequenas dos negócios públicos, conclui-se que o gênero ideal de um governo perfeito é, necessariamente, o representativo."

Elementos da "democracia participativa" conseguem embelezar a de tipo representativo: os orçamentos participativos, por exemplo. Mas podem também subverter a democracia. Em 17 de março, Susana Villarán, a prefeita de esquerda moderada de Lima, será provavelmente derrubada do cargo num referendo de cassação de mandato, organizado por obscuras máfias de transportadores e comerciantes e seus padrinhos políticos, que se assemelha a um linchamento político. Susana não é uma prefeita extraordinária, mas também não é especialmente ruim, e não é corrupta.

Não é coincidência que a lei que permite referendos de cassação de mandatos de prefeitos no Peru tenha sido aprovada em 1994, no auge do regime populista de Alberto Fujimori. No mesmo sentido, na Venezuela a "democracia participativa" é, na verdade, um governo plebiscitário de gênero bonapartista, no qual "o povo" é convocado a dar periodicamente seu beneplácito ao exercício do poder autoritário. Os conselhos comunitários são criações de cima para baixo: todas as decisões importantes são (ou foram) tomadas por Chávez no Palácio Miraflores.

O que tornou o chavismo tão poderoso foi o extraordinário sucesso de Chávez em manter o apoio da maioria do povo venezuelano na maior parte dos últimos 14 anos, como ficou evidenciado, mais recentemente, por sua vitória, por 11 pontos, nas eleições presidenciais de outubro.

É claro que as eleições na Venezuela deixaram de ser um jogo limpo. Chávez mobilizou descaradamente todos os recursos do governo em suas campanhas, instaurou o que ele chamou de "hegemonia" sobre o rádio e a TV, e usou várias formas de intimidar os candidatos e os eleitores de oposição. No pleito de outubro, Henrique Capriles, o candidato de oposição, reclamou ser Davi enfrentando Golias. Mesmo assim, as eleições expressaram, em maior ou menor grau, a vontade popular (embora a possibilidade de Chávez se sair vitorioso se não tivesse mentido, dizendo estar em boa saúde, seja uma outra questão).

Houve dois motivos principais para a duradoura popularidade de Chávez. O primeiro, e maior, foi o petróleo. Ele teve a imensa sorte de assumir o poder pouco antes do boom da commodity. Em termos reais, entre 2000 e 2012 a receita total do petróleo da Venezuela ficou mais de duas vezes e meia maior do que era durante o período de 13 anos anterior - os anos de austeridade, pobreza e desemprego que lançaram no descrédito a democracia bipartidária anterior. Sem o boom do petróleo, Chávez teria se tornado uma nota de rodapé da história. Com ele, conseguiu custear uma enorme expansão da folha de pagamentos do setor público, e as "missões", seus programas de saúde e educação de concepção cubana.

O segundo grande fator que contribuiu para seu sucesso foram os notáveis dons políticos de Chávez. Ele apelou para a tradição latino-americana do populismo e se transformou no herói de sua própria telenovela. Ele era do povo, e o povo passou a acreditar que ele também atuava em seu favor. Seu regime é corrupto e incompetente: o chavismo destruiu a economia da Venezuela, aprofundando sua dependência do petróleo e dos produtos importados (dos quais o Brasil é um crescente fornecedor). A infraestrutura do país está se esfacelando: fora de Caracas, os venezuelanos sofrem cortes regulares de energia elétrica há anos. A criminalidade violenta subiu para os níveis da América Central. Mas Chávez tem o toque Teflon: muitos venezuelanos lhe atribuem o mérito da implementação de políticas sociais e culpam outros pelas deficiências do país.

A fórmula de Chávez é copiada, sob vários aspectos, por Rafael Correa no Equador e por Evo Morales na Bolívia. A exemplo de Chávez, eles usaram uma nova Constituição para assumir o controle das outras instituições de Estado (os tribunais, a autoridade reguladora eleitoral etc.). E, a exemplo de Chávez, eles, principalmente Correa, intimidaram a mídia. Em menor grau, Cristina Kirchner, na Argentina, adotou práticas chavistas, porque o chavismo e o peronismo são, em si, primos irmãos.

Desses discípulos, Correa é o mais forte no momento, graças ao petróleo (embora ele tenha feito uma pré-venda de uma parte da pequena produção futura do petróleo do Equador à China, em troca de dinheiro antecipado). Tudo indica que conquistará um novo mandato nas eleições do mês que vem. E Morales permanece inconteste na Bolívia. Mas nenhum deles tem os recursos ou o carisma para assumir o papel de Chávez como o dirigente de uma suposta revolução subcontinental. E, embora o chavismo deva sobreviver na Venezuela, tanto quanto o peronismo subsistiu à morte de seu fundador, ele se defronta com um número crescente de problemas econômicos.

No Equador, Rafael Correa, como Evo Morales na Bolívia, copiou a fórmula Chávez de autocracia

A exemplo de Chávez, Morales e Correa afirmam governar para as massas "excluídas" pela elite "branca". Há, ao mesmo tempo, verdade e exagero nessa afirmação. Mas não é necessário ser um chavista para representar os excluídos. Lula pôde fazer a mesma afirmação, mas conseguiu instaurar mudanças sociais no Brasil pela articulação de coalizões e consensos dentro do quadro da democracia representativa, e não por meio do confronto e da autocracia.

A autojustificativa subjacente para o chavismo foi o ponto de vista, herdado da Revolução Cubana, de que apenas uma ruptura radical com "a oligarquia" e "o imperialismo" (ou seja, os Estados Unidos) poderia superar a desigualdade socioeconômica e a pobreza generalizada resultante, que são os pecados originais da América Latina herdados do período colonial.

Nas últimas duas décadas, porém, os regimes democráticos da região expuseram esse ponto de vista como anacrônico e falso. Sim, a pobreza e a má distribuição de renda caíram rapidamente na Venezuela, Bolívia e Equador, mas também no Brasil, Peru e Chile. Serão necessários muito mais anos de crescimento estável da economia e de progresso social para que populistas e caudilhos se tornem coisa do passado na América Latina. Mas os reformadores democráticos estão ganhando o que denomino "a batalha pela alma latino-americana" contra o chavismo.

A democracia latino-americana demonstrou que consegue enfrentar alguns dos problemas prementes da região. Naturalmente, está longe de ser perfeita. Sofre de falhas de concepção: a combinação entre presidencialismo, representação proporcional e sistemas partidários fracos e fragmentados é, com excessiva frequência, uma receita para a paralisia e para a delegação de poder a variadas forças que exercem o veto, sejam coronéis ou sindicatos. Como o Brasil bem sabe, a reforma política é ao mesmo tempo urgente e aparentemente inalcançável. E o financiamento de campanha é um atoleiro. O Estado democrático, tanto central como em nível regional, muitas vezes não tem capacitação técnica. O combate à corrupção e ao abuso de influência e de poder é uma batalha interminável.

Mas a forma de superar esses problemas é o debate aberto, a costura de consensos e a tentativa e erro. Todos esses elementos são hostis ao chavismo. Embora ele tenha dito estar implementando o "socialismo do século XXI", em essência o regime de Hugo Chávez é profundamente antiquado. Sua visão de mundo é a do "bem limitado", como o antropólogo americano George Foster descreveu o conceito, comum em sociedades tradicionais, de que a economia e o intercâmbio são esferas em que só se ganha quando o outro perde.

Num momento em que as sociedades latino-americanas se tornam mais igualitárias, menos pobres e mais classe média, seus cidadãos estão exigindo dos governos bens públicos mais sofisticados. Querem saúde e educação de melhor qualidade, e não apenas de acesso mais amplo; querem melhor policiamento, infraestrutura avançada e fim da corrupção; e, acima de tudo, igualdade de oportunidades e meritocracia autênticas. Para todas essas reivindicações, são os reformadores democráticos, e não os chavistas, que têm a resposta.

(Tradução de Rachel Warszawski)

Michael Reid é editor da seção das Américas de "The Economist". É autor do livro "O Continente Esquecido: A Batalha pela Alma Latino-Americana" (Editora Campus Elsevier).

Fonte: Valor Econômico

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